A Arte de Viajar e o Vestibular
de ‘seu’ Né...
(*) Gutenberg Costa.
Certa feita quando fui à bela cidade histórica paraibana
de Nova Floresta, a convite do amigo e folclorista Kydelmir Dantas, fiquei
hospedado alguns dias na então residência de seu pai, conhecido em toda a
região, como ‘seu’ Né. Homem sertanejo e agricultor de fibra, a quem a
classificação euclidiana cairia muito bem: ‘sertanejo, antes de tudo, um forte!’.
Gente de barriga cheia e coração grande com todos os amigos de seus filhos.
Positivo e honesto ao máximo, sem agradar nem ao Papa. E é diante de sua sinceridade
que o visitante pode saber se um dia pode voltar a sua casa ou não. E se passou
ou não em seu ‘vestibular’, como ele gosta de se referir a sua aprovação final ao
visitante. Em companhia de ‘seu’ Né, fui à feira, entrei em bodega, tomei
cachaça com caldo de fava e comprei rapé e chá de boldo para levar para casa. Ouvi
de suas vivências histórias belíssimas, que dariam para encher um livro
volumoso. E diga-se, contadas com a arte que só eram destinadas aos contadores
antiguíssimos, nos alpendres das velhas fazendas em noites enluaradas. Ao
ouvi-lo dei risadas e também fiquei muito sério quando foi preciso. Se existe a
arte de contar, do mesmo modo existe a arte de saber ouvir!
Confesso
que tenho minhas manias de viajante e regras de hóspede, que deram certo com o
agrado do velho anfitrião e genitor do grande amigo escritor e poeta Kydelmir
Dantas: 1 - Acordo e me levanto antes do dono da casa. 2 – Vou logo dando bom
dia a todos a todos da casa e aperto sempre a mão das pessoas que lá chegam. 3
– Retiro o meu prato servido da mesa e o levo para a pia da cozinha. 4 – Deixo
a cama que durmo arrumada do jeito que encontrei a noite. 5 – Sempre compro
algo para a casa ou para os donos, quando vou ás compras. 6 – Agradeço na saída
a minha acolhida e hospedagem a todos. 7 - Retiro da cabeça minha boina ou
chapéu quando estou a mesa ou entro em um templo religioso. 8 – Não visto
calção e camisa sem mangas durante as refeições. 9 – Não discuto religião,
futebol e política com os anfitriões. 10 – Envio sempre que posso uma carta ou
cartão de agradecimento aos anfitriões, quando retorno a minha cidade.
E esses
são meus ‘10 mandamentos’, de viajante em peregrinação cultural. Teria mais
regras, mas já se dá para perceber que gentileza nos faz sempre voltar à cidade
que visitamos e ser acolhido da mesma maneira fomos, e, épocas passadas.
Aprendi com os mais velhos um dito popular e certeiro sobre viajantes: “quem
deixa sujeira na estrada não volta com vergonha!”.
Voltando a despedida da casa de seu Né, o mesmo ao
apertar bem firme a minha mão, esbravejou com toda a sinceridade sertaneja
paraibana: - “Gutenberg, dos amigos do meu filho, o senhor foi um dos poucos que
passou no meu vestibular... pode voltar a qualquer hora viu, essa casa ficará sempre
aberta a sua presença!”... E sem mais delongas, deu-me as devidas notas e explicações
para a minha aprovação em seu vestibular: - “o senhor sempre tomava café na
mesa comigo, logo cedinho. Teve gente que acordou aqui só para almoçar. O
senhor me acompanhava nos passeios na feira e na rua. O senhor me dava um ‘bom
dia’ assim que me via pela manhã e uma ‘boa noite’ ao ir se deitar. Muita gente
que já esteve aqui, até parecia que dormia comigo e não me cumprimentava hora
nenhuma. O senhor nunca me olhou de lado, atravessado e nem usou óculos escuros
dentro de minha casa, como muita gente já fez aqui”. E eu só gosto de gente que
escute a minha conversa e me olhe prestando atenção no que eu estou falando!”.
E os
outros que não passaram no vestibular de ‘seu’ Né, talvez ainda não saibam, é
que Viajar é antes de tudo, uma grande arte. Fácil, mas os ditos visitantes
pensaram que ainda não haviam saído de suas moradias. Lembram-se daquele aviso
tão importante?: “Você não está em casa!’. Ou aquele outro?: “Costume de casa
vai a praça”.
Como
é importante e necessário saber cativar e respeitar a cultura dos donos da casa
em que estamos hospedados. Observar tudo atentamente quando se chega a uma
cidade estranha e pensar muito antes de voltar da viagem, naquele velho ditado
do povo: “Em terra de sapo, de cócoras com eles!”. Se você não sabe se
comportar como príncipe no palácio do Rei ou agir como mendigo em casa de
pobre, não invente de dar uma de viajante e hospedar-se em casas alheias de
estranhos, de amigos ou até familiares. Ou seja, saber e dominar a arte da ‘adaptação’,
não é para qualquer um não!
Também
já ouvi muito na feira do Alecrim, em Natal/RN, a máxima do povo: “Cachorro
onde anda leva as pulgas com ele!”. E geralmente nossas manias ficam tão
enraizadas, que são difíceis de se desapegarem...
Uma
vez viajei com um certo ‘gaúcho’ e o vi sentar-se para
jantar a mesa, trajando calção e camisa regata, enquanto o dono da casa estava
vestido com calça e camisa social. Como se dizia antigamente: “Quebrando no
linho!”. Rapidamente e a contra gosto do sulista, o fiz sair da mesa e voltar
ao quarto para adaptar-se a tradição nordestina do dono da casa em que
estávamos hospedados.
O
velho e saudoso amigo Monsenhor Expedito Medeiros, quando me recebia por dias e
semanas em sua casa, em São Paulo do Potengi/RN, me via acordar bem cedinho e
acompanha-lo todas as manhãs as suas missas. Na volta para o café, ouvia seus
carões no caminho: “Gutenberg meu amigo, você veio pesquisar e descansar em
minha casa, não precisa acordar tão cedo e ir às missas, não senhor...”. E o amigo
santo do Potengi dava uma gargalhada e me perdoava quando ouvia minhas
desculpas para meus gestos de visitante a moda sertaneja: - Monsenhor Expedito,
saiba que em terra de cego, se anda de bengala... e em casa de Padre, missa junto
com ele!.
Um
dia esqueci uma toalha de banho e minha escova dental no banheiro e Monsenhor
Expedito achando-as, ligou imediatamente para minha residência, acusando o meu
esquecimento e foi logo dando suas santas gargalhadas ao ouvir minhas
profecias: - Pode guardá-las Monsenhor, pois é sinal que ainda quero voltar!
(*) É Presidente da Comissão Norte Rio Grandense de Folclore.
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