Testemunhos de Istambul (I)
Como
eu disse no artigo da semana passada, a atual Istambul – que já foi chamada de
Bizâncio e de Constantinopla, outrora capital do Império Bizantino ou Romano do
Oriente e, depois, do Império Turco Otomano – tem, como herança dessa
riquíssima história, para o turista de hoje, mil e uma atrações. Entre as mais
badaladas, estão o Estreito de Bósforo, o Chifre de Ouro, o Palácio Topkapi, o
Hipódromo, a Basílica (hoje museu) de Santa Sofia, as Cisternas da tal
Basílica, a Igreja de São Salvador in Chora, a Mesquita Azul, a Mesquita de Suleiman,
o Palácio Dolmabahçe, a Torre Gálata, o Bazar das Especiarias e o Grande Bazar.
Tudo lindíssimo e fácil de percorrer ou visitar.
De
minha parte, adorei o passeio pelo Estreito de Bósforo, que liga o Mar Negro ao
Mar de Mármara, separando a Ásia da Europa dentro da própria Turquia. Ele parte
da entrada do Chifre de Ouro, que é, para quem não sabe, a enorme embocadura de
um rio que deságua em Istambul e no Bósforo, utilizada como porto pelos locais
já faz muitíssimos séculos. Para além da beleza da vista, é a melhor forma de
ser ter uma visão geral da enorme cidade. As visitas aos pátios, às instalações
adjacentes e ao interior propriamente dito das grandes mesquitas – a Mesquita
Azul e a do Sultão Suleiman, o Magnífico (1494-1566), esta última obra de Mimar
Sinan (c.1490-1588), o grande arquiteto que o Império Otomano legou à história
– também são imperdíveis. Embora tenham me causado menos emoção do que em regra
me acontece com as grandes catedrais, seja porque são mais austeras ou seja
porque sou cristão, essas duas enormes mesquitas são muitíssimo belas e,
sobretudo, diferentes, se comparadas àquilo que estamos acostumados a ver no
Ocidente. E digno de nota é o impacto sonoro destas e das outras quase três mil
mesquitas de Istambul na vida da cidade, todas ressoando um canto, para nós
ininteligível, sempre a certas horas do dia. A região da Torre Gálata, em
especial a rua Istiklal Caddesi (só para pedestres), cheia de comércios e
restaurantes abertos até tarde, aparentemente mais europeizada que o restante
da cidade, é fantástica (vide artigo da semana passada). Adorei também o café
que tomamos no Palácio Dolmabahçe, à margem do Bósforo, no cair do sol, e isso
basta para dizer o quão agradável foi. Por ser mais afastada do centro, não
conhecemos a Igreja de São Salvador in Chora. Me arrependo enormemente. Um dia
pretendo bater lá, se Deus (ou Alá, como queiram) permitir.
Entretanto,
três ou quatro coisas que vi em Istambul superaram as minhas mais otimistas
expectativas de viajante relativamente experimentado. A maioria concentrada na
confluência das regiões de Serralho e Sultanahmet, próximas umas das outras,
essas maravilhas da “capital de impérios” podem ser visitadas numa só tarde ou,
se quiser fazer tudo mais calmamente, num dia inteiro.
Primeiramente,
muito mais que adorei as visitas à Basílica (hoje museu) de Santa Sofia e à sua
Cisterna adjacente.
A
Basílica/Museu de Santa Sofia é nada menos que gigante. Transformada em
mesquita no tempo do Império Otomano, foi, na década de 1930, secularizada e
convertida em museu (segundo nos foi dito, por decisão de Mustafa Kemal
Atatürk, 1881-1938, o “fundador” e primeiro presidente da República da
Turquia). Constantemente em restauração, ela sobretudo testemunha a
grandiosidade de um Império, o Bizantino ou Romano do Oriente, que durou mais
de um milênio (segundo convencionado, de 395 a 1453, tudo isso depois de
Cristo, claro). Como explica o “Guia Visual Folha de São Paulo – Turquia”
(PubliFolha, 2014): a “'Igreja da santa sabedoria', Santa Sofia, ou Haghia
Sophia, figura entre as maiores realizações arquitetônicas do mundo. Com mais
de 1.400 anos, resiste como um legado da sofisticação da capital bizantina do
século VI, e teve grande influência na arquitetura dos séculos seguintes. A
enorme estrutura foi construída sobre duas igrejas anteriores e inaugurada pelo
imperador Justiniano [o Grande, 482-565] em 537. No século XV, os otomanos a
transformaram em mesquita: minaretes, túmulos e fontes datam desse período.”. A
colossal nave, a cúpula, as galerias do primeiro andar (das quais você tem uma
real dimensão da enormidade da coisa), os mosaicos, a atmosfera de outrora,
tudo aquilo me impressionou. Eu me senti quase um Triboniano (500-547) em meio
à elaboração do “Corpus Iuris Civilis”. E, cristão, senti de fato a
emoção de fazer parte daquele legado.
Já
a Cisterna da Basílica, a maior do tipo em Istambul, é uma atração à parte,
metafórica e literalmente falando, até porque tem bilhete e entrada independentes.
Terminada em 532 (antes da Basílica, portanto), estava originalmente
relacionada ao majestoso Palácio de Bizâncio, dos imperadores romanos, do qual
restam apenas algumas ruínas, a quem fornecia água de qualidade questionável.
Também do tempo de Justiniano, o Grande, com suas 336 colunas gigantes e seu
aspecto cavernoso, é uma maravilha da ciência/arte da engenharia. A água ali
presente e a especial iluminação tornam a coisa mais exótica do que se imagina.
Percorrendo as úmidas passarelas, com um fundo musical “subterrâneo”, eu me vi
como Robert Langdon em “Inferno” ou o meu amigo James Bond em “From
Russia with Love”. Coisa de cinema, sacamos muitas fotos. Fizemos até um “book”
profissional, fantasiados de sultão e sultanesa (algo que reconheço contraditório,
já que a Cisterna data da época dos romanos). Postamos parte nos instragrans,
facebooks e whatsapps da vida. Turista, mesmo aquele um tanto experimentado, é
muito besta.
E
nessa mesmíssima região, bem pertinho da Basílica e da Cisterna, fica uma outra
atração de Istambul que atesto rigorosamente imperdível: o gigantesco Palácio
Topkapi, construído entre os anos 1459 e 1465, pelo Sultão Mehmet II, o
Conquistador (1432-1481), logo após a tomada de Constantinopla (1453), para ser
residência principal e sede de governo do recém-instalado Império Turco
Otomano. Mas sobre esse palácio, assim como sobre as demais atrações de
Serralho e Sultanahmet, eu darei meu testemunho apenas na semana que vem.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador
Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
Testemunhos de Istambul (II)
Como dito na semana passada, bem pertinho da Basílica/Museu de
Santa Sofia fica uma outra atração de Istambul que achei fantástica: o
Palácio Topkapi, construído entre os anos 1459 e 1465, pelo Sultão
Mehmet II, o Conquistador (1432-1481), logo após a tomada de
Constantinopla (1453), para ser residência principal do sultão e do seu
enorme harém, assim como ser sede de governo do recém-instalado Império
Turco Otomano. Sua localização era e ainda é estratégica, num
promontório, denominado Serralho, que supervisiona o tríplice encontro
entre o Chifre de Ouro, o Estreito de Bósforo e o Mar de Mármara.
Para facilitar as coisas, sobre a concepção e a história do grande
palácio, faço uso do “Guia Visual Folha de São Paulo – Turquia”
(PubliFolha, 2014), já outras vezes citado neste espaço: “Entre 1459 e
1465, logo após ter conquistado Constantinopla, Mehmet II construiu o
Palácio Topkapi como residência principal. Em vez de uma única
edificação, foi concebido como uma série de pavilhões contidos por
quatro pátios enormes, uma versão de pedra dos acampamentos com tendas,
como os primeiros otomanos nômades costumavam fazer. De início, o
palácio servia com sede de governo e dispunha de uma escola na qual eram
treinados funcionários civis e soldados. No século XVI, porém, o
governo foi para a Porta Sublime. O sultão Abdül Mecid I [1823-1861]
abandonou Topkapi em 1853, trocando-o pelo Palácio Dolmabahçe. Em 1924,
foi aberto ao público como museu”.
Na minha opinião, o Palácio Topkapi, hoje basicamente um “museu”
aberto à visitação, é o que há de melhor para se entender a história do
grande Império Turco Otomano, história que, com seus sultões e
grão-vizires, suas conquistas e retrocessos, está muito mais presente na
vida e no imaginário da atual Istambul do que está a sua herança romano
bizantina. De toda sorte, embora surpreso no começo, essa prevalência
turco otomana, em comparação ao romano-bizantino, me pareceu, ao final
da minha estada por lá, bastante natural. Se pensarmos bem, o Império
Turco Otomano é bem mais recente que o Império Bizantino, sem falar que
sua fé islâmica coincide – e isso é muito importante – com a orientação
religiosa da Turquia contemporânea.
Hoje cercado por parques públicos, o Palácio Topkapi, desde a Porta
das Saudações, que dá acesso à parte principal do complexo,
impressiona. Seus quatro pátios são belíssimos; seus edifícios, que são
inúmeros, mais ainda. As entradas decoradas (como a do harém), os vários
terraços, os pavilhões, os quiosques (como o da Justiça e o de Bagdá),
as salas de audiência, as câmaras, as cozinhas, os aposentos, a
Biblioteca de Ahmet III (1673-1736), são tantos espaços e tão ornados
que é quase impossível não se perder por ali maravilhado. Para além da
arquitetura, adorei as coleções de relógios, de armas e armaduras, de
trajes imperiais e, sobretudo, do riquíssimo tesouro do Palácio.
Chamou-me a atenção mais ainda a coleção de relíquias reunida pelos
sultões otomanos, tais como o cajado de Moisés, as espadas de Maomé e de
alguns dos seus companheiros na criação do Islã e até mesmo uma
“pegada” (no sentido de “marca do pé”, que fique claro) do Profeta,
coisas que, infelizmente, de papel passado, não posso atestar serem
verdadeiras. De toda sorte, apoiador da aposta de Pascal (1623-1662), eu
vi e acreditei. Por fim, encantei-me sobretudo com a sala de retratos
dos tais sultões otomanos, onde, de fato, tive a oportunidade de ter uma
visão geral da história do grande Império. E registro que ainda deu
para tomar um café no restaurante palaciano, observando o mar de Mármara
e a Istambul asiática que luziam à nossa frente.
Se não bastasse tudo isso, bem pertinho dali, praticamente colados
ao Topkapi e dentro do denominado primeiro pátio do Palácio, ainda estão
outras famosas atrações de Istambul, como a igreja bizantina de Santa
Irene (“Haghia Eirene”), do século VI (quando do reinado de Justiniano, o
Grande), mas restaurada no século VIII, curiosamente nunca convertida
em Mesquita, e o riquíssimo Museu de Arqueologia, especialmente bem
dotado no que toca a artefatos dos períodos pré-clássico, clássico e
bizantino, mas que não tivemos a oportunidade de visitar. Aliás, não sou
de necessariamente visitar museus em viagens. Falo daqueles museus
formais, claro, tipo o Louvre ou o British Museum. Museus desse tipo,
penso, são mais para frequentar do que para simplesmente visitar, quase
sempre às pressas.
Na verdade, no restante das nossas horas em Istambul, como bons
“flâneurs”, preferimos, sem destino certo mas atentos a tudo, vagar
pelas muralhas e ruínas, pelas calçadas e esquinas e pelas lojinhas e
praças das regiões de Serralho e Sultanahmet, tão cheias de história e
estórias para contar. O que elas nos disseram, isso eu confesso para
vocês na semana que vem.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP |