30/09/2021

O REPENTE NORDESTINO Diogenes da Cunha Lima Nenhuma região do país é tão pródiga na inventividade como o Nordeste. A arte do repente identifica a nossa região. É o exercício da poética popular, do sertão ao litoral, com versos de fazer inveja a poetas eruditos. O repente nordestino é duelo verbal de cantadores com o acompanhamento de viola, rabeca ou pandeiro (embolada). Em todas as suas formas, participa do rico Patrimônio Imaterial do Brasil. É o diálogo do improviso e da liberdade vocabular. Muito se discute sobre a sua origem. Como sempre, Câmara Cascudo vai mais longe. Para ele é o desafio oriundo do canto amebeu, grego, do tempo de Homero. É canto alternado, obrigando resposta às perguntas do companheiro. Muitos poetas cantadores tornaram-se célebres. Pinto do Monteiro (sempre considerado o mestre da cantoria), um dia, recebeu Lourival Batista, crescente em versos quentes. Glosaram os dias da semana com o humor produzido por trocadilho. Pinto: “No lugar que Pinto canta/não vejo quem o confunda. / Que o rio da poesia/o meu pensamento inunda. /Terça, quarta, quinta e sexta, /sábado, domingo e segunda”. Lourival respondeu: ”Sábado, domingo e segunda, /quarta e quinta. / Na sexta não me faltando/a tela, pincel e tinta/pinto pintando o que eu pinto. /Eu pinto o que o Pinto pinta”. Ninguém sabe dizer melhor das coisas da região do que o poeta mossoroense Antônio Francisco. É sempre expressiva a sua linguagem para fazer pensar. Brevíssimo exemplo: Falando sobre a fome, ele começa: “Engoli três vezes nada...”. Fabião das Queimadas, escravo que tangia bem o verso e a rabeca, foi provocado para falar sobre a paga dos seus vinténs arrecadados. Que seria um poeta? Ele explicou: “Canta longe um passarinho/do outro lado do rio, /uns cantam porque têm fome, /outros cantam por ter frio. /Uns cantam de papo cheio, /outros de papo vazio”. Não era cantador, mas poeta popular, popularíssimo. Aliás, Renato Caldas foi um lírico, improvisador, bem-humorado. Pediram-lhe que fizesse saudação ao escritor e pintor Newton Navarro. Versejou: “Adão foi feito de barro/mas você Newton Navarro foi feito de inspiração. / Dos passarinhos, das cores/da noite feita de amores/do luar do meu sertão”. Certa vez, o poeta tomou café em uma residência na cidade de Angicos e ao guardar suas coisas, distraidamente, incluiu uma colherinha. Já na sua cidade, em Assu, verificou o equívoco e voltou. Desculpou-se dizendo: “Eis aqui, dona Chiquinha, /devolvo sua colher. / De coisa que não é minha/eu só aceito mulher”. Na função de conselheiro do Iphan, esforçar-me-ei para que o Repente Nordestino seja reconhecido como Patrimônio Imaterial Brasileiro.
Umarizal e a devoção ao Coração de Jesus Padre João Medeiros Filho Eis uma das devoções mais antigas do catolicismo. Nasceu aos pés da Cruz, quando “um dos soldados lhe abriu o lado com uma lança, jorrando sangue e água.” (Jo 19, 34), simbolismo da Eucaristia. No século XVII, a freira Margarida Maria de Alacoque deu impulso ao culto, posteriormente difundido pelos jesuítas e membros do Apostolado da Oração. Este, desde 2013, integra com o Movimento Juvenil Eucarístico (Cruzada Eucarística) a Rede Mundial de Oração do Papa, cujo símbolo é o Coração de Jesus, ícone do amor de Deus pela humanidade. “Eis o coração que tanto amou os homens”, segundo a visão de Santa Margarida, em Paray-le-Monial (França). O Apostolado da Oração originou-se em Vals-les-Bains (França), num colégio jesuíta, dirigido por Padre Gautrelet, em 1844. No Brasil, o seu primeiro núcleo foi fundado na Igreja de Santa Cruz do Recife, em 20 de junho de 1867. Entretanto, foi em 1871, na cidade de Itu (SP), que o movimento religioso se solidificou, graças ao empenho de Padre Bartolomeu Taddei, S.J. O Cardeal Dom Sebastião Leme, quando arcebispo do Rio de Janeiro, assim se expressou: “O renascimento espiritual do Brasil é obra do Apostolado da Oração”, o qual intensificou a vida eucarística com a prática sacramental das primeiras sextas-feiras. Marcou a espiritualidade e vivência litúrgica de muitas paróquias. Revitalizou a prática religiosa individual e familiar, por meio da consagração dos lares ao Coração de Jesus. O Brasil também lhe foi dedicado por ocasião do XXXVIº Congresso Eucarístico Internacional, celebrado em 1955, no RJ. A solenidade litúrgica do Coração de Jesus é celebrada na sexta-feira, oito dias após a festa de “Corpus Christi”, entre maio e junho. Todavia, várias comunidades católicas comemoram-na, no mês de setembro. Isso acontece há cento e vinte anos em Umarizal, onde se mantém forte apelo devocional ao Sacratíssimo Coração. Existe uma explicação histórica para isso. Entretanto, cabe primeiramente lembrar que o Brasil conta com dezesseis dioceses que têm o Sagrado Coração como padroeiro, sediadas em diversos estados. No Rio Grande do Norte, existem cinco paróquias e dezenas de templos com esse orago. A primeira paróquia potiguar com tal título foi erigida em Mossoró, em 1926, por decreto do bispo diocesano de Natal, Dom José Pereira Alves. Em 1964, Dom Gentil Diniz Barreto a suprimiu, incorporando parte de seu território à recém-criada freguesia do Alto de São Manuel. Deste modo, a paróquia de Umarizal passou a ser no RN a mais antiga e tradicional com esse patrono, criada em 04 de janeiro de 1959, no episcopado de Dom Eliseu Simões Mendes. No entanto, a antiga capela com tal invocação data de 1902, construída no lugarejo Gavião por Padre Abdon Odilon Malibeu de Lima. No ano de 1901, em sua primeira desobriga pastoral naquela localidade introduziu a devoção ao Coração de Jesus. Aquele sacerdote (também bacharel em Direito) era natural de Campina Grande (PB). Recém-ordenado, fora nomeado pároco de Piancó e, pouco tempo depois, transferido para Martins, onde permaneceu, até 1904. De lá, foi exercer o sacerdócio em Cametá (PA), a convite de seu conterrâneo Dom Santino Maria da Silva Coutinho, escolhido bispo de Belém (PA). Dentre as comunidades que celebram a festa do Coração de Jesus, em setembro, Umarizal é fiel aos fatos, à história e tradição. Há um acontecimento determinante. Aos 18 de setembro de 1864, Pio IX beatificou Margarida Maria. Seus devotos brasileiros começaram a rezar uma novena, rogando a Deus pela sua canonização, ocorrida em 1920. O novenário era coroado com uma missa solene, no dia 28 do referido mês. Assim, explica-se a centenária festa do Sagrado Coração de Umarizal, em setembro. Acrescente-se a esta motivação histórico-religiosa o período da safra nos sertões nordestinos, perdurando até o último trimestre do ano. Isso facilitava os festejos do padroeiro, pois proporcionava maior poder aquisitivo à população. Bíblica e liturgicamente o Coração de Jesus é a expressão do amor misericordioso, da solidariedade e ternura de Cristo. “Vinde a Mim vós todos que estais sobrecarregados e eu vos aliviarei. Meu fardo é leve, meu jugo, suave.” (Mt 11, 29).

27/09/2021

Marcelo Alves Um inimigo dos loucos Henrik Ibsen (1828-1906), o genial dramaturgo, nasceu numa pequena vila portuária da Noruega. Mas o seu teatro (ele foi também diretor) e a sua poesia não mimetizaram a gelidez da sua terra natal. Ao contrário, ele foi um dos precursores do realismo e do modernismo nas artes cênicas. Fez escândalo, na verdade. Era um “denunciante” de falsos moralismos e coisas que tais. Algumas de suas peças são conhecidíssimas: “Peer Gynt” (1867), “Casa de Bonecas” (1879), “Um Inimigo do Povo” (1882), “O Pato Selvagem” (1884) e por aí vai. Alguns dizem ser ele, no seu métier, o segundo, apenas atrás de Shakespeare (1564-1616). E gigantes do teatro, gente como Gerhart Hauptmann (1862-1946), George Bernard Shaw (1856-1950), Oscar Wilde (1854-1900) e Eugene O’Neill (1888-1953), lhe pagaram tributo. Ibsen perambulou muitos anos pela Europa. Sobretudo pela Itália e Alemanha. Quem viaja, se sabido, enxerga longe. Faleceu, em glória mas já inválido, na capital Oslo. Para se ter uma ideia do tamanho de Ibsen, colho um trecho do “Ensaio sobre Henrik Ibsen”, de Otto Maria Carpeaux, que consta de um pequeno livro de bolso, intitulado “Seis Dramas” (parte 1), coleção “Mestres Pensadores”, da Editora Escala: “Henrik Ibsen é o maior dramaturgo do século XIX. O superlativo – superlativos têm sempre qualquer coisa de exagero – justifica-se desta vez, com toda facilidade. Goethe, Schiller e Alfieri pertencem inteiramente, ou pela maior parte da obra, ao século XVIII; Tchekov significa um crepúsculo melancólico; Strindberg já é o século XX. E na época entre o começo e o fim do século? Os epígonos não contam; a glória do teatro romântico francês já passou. Kleist, Georg Buechner e Gogol, três gênios dramáticos, que não se realizaram inteiramente. Quem há mais? O teatro realista francês, Augier, Dumas Filho, só tem hoje interesse como precursor de Ibsen, que lhe tomou emprestados os processos cênicos e os ambientes burgueses; Hauptmann e Shaw já confessam que o próprio Ibsen foi o ponto de partida das suas obras. Ficam ainda dois grandes nomes: Hebbel e Bjørnson. Em Hebbel a crítica literária reconhece hoje a substância ibseniana, prejudicada pelos artificialismos do epigonismo classicista; Hebbel desapareceu do palco onde apareceu Ibsen. Bjørnson, o patrício de Ibsen, e seu companheiro e inimigo inseparável durante a vida inteira, empalideceu cada vez mais ao lado do rival maior; dia virá – já veio talvez – em que a vida e a obra de Bjørnson servirão apenas para esclarecer melhor a vida e a obra de Henrik Ibsen”. O genial dramaturgo participa de todas as virtudes (e dos defeitos também, claro) do seu século. Um século, o XIX, que se orgulhava de ser o “século da ciência e da técnica”. Ibsen se preocupava com as descobertas da ciência, com as maravilhas e as angústias que os processos científicos provocam, e tinha a esperança, em razão das intervenções da ciência, num futuro melhor para a humanidade. E aqui jogo luz sobre a peça “Um Inimigo do Povo”, de 1882, cujo protagonista é um médico local que casualmente descobre e investiga a contaminação das águas de um balneário de uma pequena cidade norueguesa. O médico imagina ser aclamado por haver descoberto, através da ciência, a verdade. Por salvar a todos, locais e turistas, da infecção/doença generalizada. Mas “algo” fala mais alto. Do negacionismo a outros interesses menos confessáveis. Os habitantes se viram contra ele, o “inimigo do povo”. E a desgraça, individual e coletiva, está feita. Pelo menos para os de bom-senso, lembrando que a ciência, dizia o nosso Rubem Alves (1933-2014), nada mais é que o bom-senso organizado. Se evitar contaminação e doenças parece bom-senso – pelo menos para os de bom-senso –, isso não se mostra tão óbvio para aqueles outrora chamados de fanáticos loucos, e hoje, eufemisticamente, apenas apelidados de negacionistas. Se na fábula de Ibsen foi assim, hoje, quem alerta para a gravidade da nossa situação sanitária, para o número absurdo de mortes, para o charlatanismo de remédios ineficazes, para o impacto atual e futuro da política/visão negacionista, inclusive sob o ponto de vista econômico, é taxado por alguns de torcer pelo “quanto pior, melhor”, pelo “vírus” ou de outras baboseiras/loucuras mais. É luta. Afirmar a dura verdade e a ciência, ou simplesmente o bom-senso organizado, nos torna “um inimigo dos loucos”. Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL 0 comentário

21/09/2021

Marcelo Alves Embora seja sua face mais brilhante, no que toca à presença do direito, não é só de Franz Kafka (1883-1924) e do seu “O processo” (1925) que é feita a literatura em língua alemã. Outros rostos devem ser iluminados, como o de Jakob Wassermann (1873-1934), em especial pelo seu romance “O Processo Maurizius” (1928). Jakob Wassermann nasceu em Fürth, cidade industrial próxima de Nuremberg, na Alemanha. Era filho de modestos comerciantes judeus. Abandonou o comércio e foi viver sua juventude aventureiramente. Começou a escrever artigos, contos e pequenas novelas. Era um democrata. Como judeu, sofreu bastante com o antissemitismo da época. Com o nazismo, foi para o exílio, sendo também destituído de sua cadeira na então Academia Prussiana de Letras. Faleceu em Alt-Aussee, na Áustria. Wassermann é considerado um representante maior da ficção psicológica. Seu primeiro romance foi “Os Judeus de Zindorf”, de 1897, no qual ele trata da história judaica na Alemanha, o que vem, claro, a ser uma temática comum nos seus primeiros textos. Mas é sobretudo uma “segunda fase” na carreira literária de Wassermann que nos interessa, esta focada na relatividade e nos problemas da Justiça. Começa com “Caspar Hauser ou A Preguiça do Coração”, de 1900. E “Christian Wahnschaffe”, de 1918, obra já à moda de Dostoiévski (1821-1881), coloca seu nome definitivamente nos círculos intelectuais de então. É dessa segunda fase, já em 1928, a sua obra-prima “O Processo Maurizius”, que, em síntese, cuida da estória de um erro judicial e do empenho de um jovem idealista (Etzel Andergast) para libertar o homem (um tal Otto Leonardo Maurizius, que dá título à obra) condenado injustamente, há quase duas décadas, à pena de prisão perpétua, pelo seu próprio pai (o íntegro promotor/magistrado Wolf Andergast). O jovem Etzel não admite o contraditório. Ele quer a justiça perfeita (e ela existe?) em lugar da justiça possível. E, sobretudo, sua luta padece de uma ilegitimidade original: sua motivação principal não é fazer justiça, mas se vingar do pai, a quem atribui os males do mundo, inclusive os padecimentos da mãe adúltera. Para o direito, “O Processo Maurizius” é interessante por incontáveis aspectos. De logo, segundo registra a minha edição do dito cujo (Abril Cultural, 1982), “o romance constitui um soberbo retrato da época da República de Weimar”, e sabemos nós a importância dessa república na história do direito, sobretudo pela sua célebre Constituição, tida pioneira na previsão dos direitos fundamentais sociais e cujo legado acabou se espalhando mundo afora. Ademais, é obra inspirada por um grande senso ético e de Justiça (perfeita ou imperfeita). Como anota Otto Maria Carpeaux (1900-1978), em “A história concisa da literatura alemã” (Faro Editorial, 2013), trata-se de “um romance deliberadamente tendencioso, ético, como o são de tendência ética todos os grandes romances da literatura universal”. E mais: “Der Fall Mauritius [seu título no original] precede por pouco a ruína da sociedade alemã pelo nazismo”. Não obstante as nuanças da trama, sobretudo as motivações e intransigências das personagens, “O Processo Maurizius” deve ainda ser interpretado como uma advertência – e mais do que isso, como um libelo – contra o erro judiciário, que é tão desprezado por um certo grupo de pessoas, sejam juristas ou só idiotas da aldeia, que passam a vida ruminando ódio. Erro judicial, proposital ou não, isso não importa, devemos repeli-lo, já que ninguém – ninguém mesmo – deve ser condenado, assim privado de sua liberdade, ainda mais levado à morte (da qual, que eu saiba, não há volta), injustamente. Por fim, de interesse mais geral, temos os aspectos geracionais e os motivos psicológicos que condicionam a trama/processo, condições que o autor conhecia e fabulava tão bem. Duas mentalidades. Duas motivações. Duas faces da Justiça? Dois direitos? E tudo forjado por um drama familiar na forma de diversos conflitos. Mas isso aí já lembra outro grande russo, Tolstói (1828-1910), e a sua Ana Karênina (1877): “Todas as famílias felizes são iguais, mas as infelizes o são cada uma à sua maneira”. Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
A DANÇA DEMOCRÁTICA Diogenes da Cunha Lima Não vou tratar da dança política que, geralmente, é feia, sem graça. Cuido de autêntica dança, verdadeiramente popular, participativa, que expressa a identidade nordestina, brasileira. A Ciranda Nordestina acaba de ser reconhecida como Patrimônio Imaterial do Brasil pelo Instituto Histórico do Patrimônio Nacional- Iphan. A decisão baseou-se em primorosa resenha de pesquisadores da Instituição e da exata relatoria da Conselheira Ângela Gutierrez. A ciranda tem a sua primazia pernambucana, brilha também na Paraíba e em Alagoas, mas se manifesta em diferentes modalidades de ritmo e melodia nos demais estados nordestinos. A nossa ciranda tem origem portuguesa e chegou aqui, no início do século XIX, trazida pela Corte Real. Em Portugal, inicialmente, não era uma dança de roda, mas em fila com dançarinos infantis. Os cortesãos dançaram suas lembranças afetivas. É dança de roda em que os participantes se dão as mãos e movimentam-se ao ritmo de variados instrumentos de percussão: zabumba, ganzá e caixa. Às vezes, soam triângulos, pandeiros e raramente sanfona e instrumentos de sopro. É canto, dança e palavra. As pessoas entram na roda e saem dela à vontade. Não há vestimenta especial. Os passantes são, normalmente, convidados a entrar na roda e ser bailarinos (há improvisos de passos e poemas). Canta um mestre: “Por isso, dona Rosa, /entre dentro dessa roda, /diga um verso bem bonito, /diga adeus e vá se embora”. Semelha a sardana da Catalunha também dançada em roda na rua, musicada por instrumentos de sopro. A sardana migrou para as artes plásticas, como no famoso quadro de Henri Matisse. O nosso bailado também se trasladou aos melhores artistas plásticos. O povo carece de alegria, divertimento. A dança é vadiação nas praias, na cidade, no campo. Em ciranda recifense, o cantor avisa: “Estou aqui pra vadiar”. A Ciranda tem sido poderoso instrumento da educação. Pelo seu exercício nas escolas, as crianças aprendem a arte da convivência, além de música e poesia. É estimulada na sua afetividade e percebe o encanto da participação comunitária. Dançar junto é pertencer. A criança sente-se pertencer à terra comum, a nosso país. Porque cirandar é estar por dentro do seu grupo. No Rio Grande do Norte, estado eminentemente musical, a ciranda multiplica-se em composições musicais. A Missão de Pesquisas Folclóricas, inspirada em Mario de Andrade, registrou a presença da ciranda no Piauí, no Ceará e no Maranhão. E de outras danças populares. Já naquela época, ficou comprovado o acerto de Mario de Andrade: “O Brasil realmente não conhece a sua música nem seus bailados populares, porque, devido a sua enorme extensão e regiões perfeitamente distintas umas das outras, ninguém se deu ao trabalho de coligir essa riqueza”. Não distinguindo a condição social, cor, sexo, idade de seus múltiplos participantes, a Ciranda é prova da vocação democrática do Brasil.
O Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa Padre João Medeiros Filho Há algumas semanas, foi lançada a sexta edição do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa – VOLP, atualizando as palavras do idioma nacional e sua grafia, somando agora 382 mil verbetes. A publicação anterior – que data de 2009 – voltava-se especialmente para a escrita correta das palavras, em obediência ao Acordo Ortográfico Internacional, firmado pelas nações integrantes da comunidade de língua portuguesa. A atualização revela a dinâmica do vernáculo e a inclusão de neologismos úteis aos lusófonos brasileiros. Demonstra o zelo da Academia Brasileira de Letras – ABL, como guardiã da língua pátria. Houve acréscimo de mais de mil novos vocábulos ao português que falamos e escrevemos. Desde a quinta edição, a equipe do filólogo Evanildo Bechara – coordenador da Comissão de Lexicologia e Lexicografia da ABL, responsável pela redação do trabalho – vinha se dedicando a reunir novos termos (e significados), colhidos em textos científicos, literários e jornalísticos. Houve também sugestões enviadas por linguistas. Não basta o surgimento de uma palavra para que ela seja automática e oficialmente incorporada ao VOLP. Para tanto, necessita ganhar consistência linguística, bem como ser compreendida e largamente usada. Vários termos adicionados ao Vocabulário dizem respeito à Covid-19. Inegavelmente, a pandemia mudou a vida de muitos brasileiros, inclusive no emprego cotidiano de expressões. Além de palavras técnicas, geradas em decorrência do Sars-Cov-2, foram adicionados estrangeirismos, como “home office”, “lockdown” etc. De acordo com o professor Bechara, “nos últimos anos houve uma aproximação dos países, não só em termos políticos, sociais e econômicos, mas também por conta da pandemia.” Tal proximidade abriu a porta para o acréscimo de vocábulos, oriundos de vários idiomas, especialmente do inglês. Verifica-se o caso de “necropolítica” e “necropoder”, expressões cunhadas pelo filósofo camaronês Achille Mbembe. O momento político vivido pelo Brasil gerou para o nosso idioma novas acepções de vocábulos, tais como: negacionismo, terraplanice, lacração, pós-verdade, invertida etc. Das pautas ideológicas – alheias à semântica latina e à história do vernáculo – vieram feminicídio (assunto abordado em artigo já publicado neste jornal) e sororidade, em oposição a fraternidade. No entanto, em latim, “frater” (do qual se origina fraternidade) não significa somente o consanguíneo masculino. Para indicar este familiar a genuína palavra latina seria “germanus”, originando em português irmão – “hermano”, em espanhol e “germain” (hoje pouco usual em francês) – do qual provém irmandade. Sororidade torna-se um termo redundante, por conseguinte, desnecessário, expressando mais uma carga ideológica do que semântica. O mundo digital legou-nos também criptomoeda e ciberataque. Eis apenas alguns exemplos de étimos incorporados ao VOLP. Consoante os antropólogos, a sociedade é pautada pela cultura, que varia ao longo do tempo. Por vezes, surgem mudanças comportamentais e morais, modificam-se juízos de valor, influenciados pela tecnologia. A língua segue a cultura e tende a acompanhar as suas variações. Alguns períodos da história – como o que atravessamos – apresentam mais reviravoltas. Inegavelmente, há momentos de maior estabilidade, provocando menos novidade quanto à criação de termos. Há épocas caracterizadas por transformações bruscas. Nem sempre os étimos existentes descrevem acuradamente a realidade presente e vivida. Daí, a necessidade de criar vocábulos, importar ou ressignificar palavras antigas. Isto ocorreu, por exemplo, após a Primeira Guerra Mundial e, mais recentemente, com o advento da globalização, na década de 1980. Causou estranheza a certos estudiosos do idioma nacional a demora em atualizar o Vocabulário. Argumentam que em doze anos de pós-modernidade muita coisa aconteceu. Verificam-se várias modificações individuais e sociais, causadas pelos avanços tecnológicos. Além das transformações sociopolíticas, vive-se uma transição do modelo de sociedade industrial para uma pós-industrial, desencadeando uma alteração estrutural bem mais profunda. A variação nos padrões éticos ocasionou situações difíceis de descrever pelas terminologias vigentes. Isso repercutiu sobre a cultura e, portanto, sobre a língua. Sociólogos, cientistas políticos, jornalistas e antropólogos falam de uma ressaca da globalização, proporcionando o retorno de uma fase mais conservadora e nacionalista, enfatizando maior respeito e defesa de valores morais e culturais dos quais a língua é integrante. Dessa luta resulta igualmente uma alteração na linguagem acadêmica, social e religiosa. A palavra da Sagrada Escritura faz-nos refletir: “A língua tem poder sobre a morte e a vida!” (Pv 18, 21).

19/09/2021

Honras aos médicos Daladier Pessoa Cunha Lima Reitor do UNI-RN O Conselho Regional de Medicina do RN prestou singular homenagem aos médicos que exercem a profissão e se mantêm inscritos no CRM, no mínimo, há 50 anos. Chamei de singular porque foi um evento inusitado, uma feliz ideia de prestar honras a quem dedicou ou ainda dedica uma vida inteira a esse ofício, que exige muito amor ao próximo e vontade de refazer alegrias e esperanças. Ao mesmo tempo, também pode-se chamar de homenagem plural, pois envolveu dezenas de nomes, porém, sem perder o valor intrínseco do mérito de cada um e do grupo como um todo. Aliás, esse Diploma pessoal de Honra ao Mérito pareceu até que contemplava uma corporação, dada a afinidade que unia os corações e as mentes dos agraciados, naquele instante solene, mesmo virtual, da entrega coletiva da láurea. Atente-se que essa distinção honorífica reveste-se de alto significado, porquanto foi uma concessão do órgão que assegura uma boa prática da medicina, valorizando aqueles que a exercem de forma ética. O Cremern, em boa hora, escolheu o médico Gilmar Amorim para proferir a saudação aos homenageados, em nome do Conselho. Depois da saudação de praxe, quando referiu-se ao Presidente Marcos Jácome e aos Conselheiros Marcos Lima e Jeancarlo Fernandes, Gilmar expressou o reconhecimento público e a gratidão do Conselho a todos os médicos homenageados, e afirmou que o dia 31 de agosto de 2021 se transformou num marco especial, pois possibilitou o resgate de um preito devido a muitos heróis da medicina do RN. O brilhante orador, numa sutil alusão à vida desses médicos, citou o belo trecho do Sermão da Sexagésima Hora, do Padre Antonio Vieira: “As flores, umas caem, outras secam, outras murcham, outras leva o vento; poucas que se pegam ao tronco e se convertem em fruto, só essas são venturosas, só essas são as que aproveitam, só essas são as que sustentam o mundo”. Gilmar Amorim, então, concluiu: “Muito obrigado pela doação de suas vidas em benefício da coletividade”. Na minha fala, aludi à dupla homenagem que recebera, uma pelo Diploma de Honra ao Mérito, a outra pelo convite para agradecer em nome do conjunto dos ilustres colegas. Referi-me a nossa bela profissão que tem a figura histórica de Hipócrates como símbolo maior, e ao primeiro dos seus famosos aforismos. A seguir, numa ênfase à grandeza da homenagem, voltei-me ao livro bíblico Eclesiastes, talvez o mais sábio ensinamento e a mais poderosa expressão da vida humana sobre a terra. Ao final, disse que aquela homenagem chegava no momento oportuno para resgatar e relembrar em cada um dos homenageados a certeza do dever cumprido, além do reconhecimento de quantos são testemunhas dos seus exemplos de amor à profissão, e citei alguns versos do Eclesiastes, entre os quais esses dois: “Há tempo de lutar e tempo de viver em paz. Há um tempo certo para cada propósito debaixo do céu”. Texto publicado na Tribuna do Norte, em 16/09/2021 Bom dia! Tenho a satisfação de enviar aos confrades da ANRL o texto de minha autoria “Honras aos Médicos”, publicado em 16/09/2021, no jornal Tribuna do Norte. Daladier Pessoa Cunha Lima.

14/09/2021

MISSA DE SÉTIMO DIA DO MINISTRO JOSÉ AUGUSTO DELGADO “Seremos julgados pelo amor”, assim sentenciou São João da Cruz, grande místico espanhol do século XVI, sobre o fim de nossa trajetória. Abordar o tema da morte geralmente é doloroso, porque as pessoas a concebem fora da existência. Morrer faz parte do viver. Despender tempo, energia, renunciar a algo, perder, tudo isto indica que a vida é semelhante a uma vela que se consome para produzir luz. Plena desse brilho foi a caminhada de nosso irmão José Augusto Delgado, que permanece em nossa memória. O nome que recebeu no batismo é simbólico, icônico, usando a expressão da moda. Tem o onomástico do pai adotivo do Salvador do Mundo e esposo de Nossa Senhora. Nosso inesquecível confrade é exemplo de dedicação e probidade. Augusto, pela nobreza do seu caráter, pela consciência da nossa condição de filhos de Deus. Delgado era elegante, fino e delicado no pensar e no proceder. Cônscio da limitação humana, confiava em Deus, em sintonia com o pensamento do apóstolo Paulo: “Tudo posso naquele que me fortalece, que é Jesus Cristo.” (Fl 4, 13). Sua postura revela que comungava dos sentimentos do inesquecível Cônego Luiz Monte, membro de nossa Academia: “Sem a fé, sou pequeno demais para o céu. Com ela grande demais para a terra.” Caríssimos irmãos, preparar-se para o ocaso da vida não é voltar-se para a noite da morte, mas perceber que o sol se põe nesta vida terrena, mas continua a resplandecer na vida celestial, onde o dia é eterno. Os astros cintilam nas alturas. Deste modo, o professor Delgado também brilhará no céu. Como cristãos, devemos ter consciência de que a morte é apenas o umbral da entrada na nova vida. Cristo proclamou: “Eu vim para que todos tenham vida. E a tenham em plenitude ou abundância.” (Jo 10, 10). Santo Agostinho, bispo de Hipona, proferiu esta verdade teológica: “Mors, vere dies natalis hominis”, a morte é o verdadeiro natalício do ser humano. Se pensássemos apenas na morte, colocaríamos o sentido de tudo somente no final da existência. Muitas pessoas tendem para essa posição e acabam desprezando o viver, diminuindo o sabor dos dias na terra. Contudo, a tentação maior é uma abordagem contrária: pensar somente na ilusória vida passageira. O enfoque no provisório pode gerar desespero, quando as limitações começam a aparecer. “Somos peregrinos e estrangeiros, mas, em breve, estaremos em nossa pátria”, proclamou o apóstolo Pedro (1Pd 1, 1). O cristianismo define a morte como passagem da existência limitada para a vida plena, em Deus. Trata-se de completar e consumar o que temos e vemos apenas como um esboço. “O que agora vemos é como uma imagem imperfeita num espelho embaçado, mas depois veremos face a face. Aqui, o conhecimento é imperfeito e parcial, mas depois será pleno, assim como sou conhecido por Deus.” (1Cor 13, 12). Vivemos na fé e na esperança aquilo que um dia veremos na Eternidade. Assevera ainda o cristianismo que, apesar de vivermos na limitação do tempo, já somos eternos, enquanto filhos do Deus Infinito, que um dia nos perfilhou pela sua misericórdia e ternura. Por isso, os cristãos sabem que a morte não pode separá-los de Cristo. Portanto, nosso irmão Delgado desfruta agora da herança eterna e do prêmio dos justos e eleitos. “Somos herdeiros do céu e coerdeiros com Cristo”, assegura-nos a Carta aos Romanos. (Rm 8, 17). Só é possível compreender o mistério da morte, sob a ótica e a dimensão da fé. Esta identifica tipos de presença que a corporeidade não alcança, descobre união e proximidade que o espaço sequer imagina. Ela é a marca do divino, atemporal, onipresente e espiritual. Ultrapassa os limites e as amarras, rompe os laços que nos prendem e liberta-nos das prisões. A fé conduz-nos ao amor. E este “é mais forte que a própria morte”, afirma São João (1Jo 3, 14). Porque soube amar, nosso irmão Delgado permanece vivo. E Santo Agostinho conclui: “ninguém ama sem ter fé, nem acredita sem amar.” Desde tempos remotos, já sabia de sua riqueza interior, como jurista, homem probo e de fé no Deus da Paz e da Justiça. Eu era um jovem e inexperiente padre, pároco em Caicó, em 1965. Ali, recebi a visita do saudoso Monsenhor Expedito Sobral de Medeiros, que um dia me batizou na matriz de Jucurutu. Comecei a indagar sobre a sua paróquia de São Paulo do Potengi. E ele proferiu palavras, que permanecem vivas em minha memória: “João, acabo de conhecer um magistrado, como define a Bíblia, sábio, honrado, prudente e conciliador, humanista e sobretudo temente a Deus.” E “Monsenhor Expedito tinha o faro de nossas almas”, no dizer de Oswaldo Lamartine. Existem pessoas que se engrandecem com as academias. Há outras que tornam grandes as academias às quais pertencem. Assim, na ANRL destaca-se José Augusto Delgado. Hoje, a seus familiares e amigos, cabe-nos dizer que não nos inquietemos. O amor, apesar de invisível e imprevisível, cria formas e modos diferentes de se manifestar. Pela fé e guardado no tesouro de nossa memória, ele permanecerá vivo, unido e presente. Os discípulos de Jesus não ficaram sem ver Aquele a quem tanto amaram. Ele mostrou-lhes a Sua face. Assim, os que nos precederam na casa do Pai, saberão como nos confortar em nossas angústias e inquietações, pois já encontraram a Paz definitiva. Nosso amigo Delgado pertence agora ao plano divino, alcançável pela força de nossa crença. Meus irmãos, a fé nos consola e fortalece. “Aos vossos fiéis, não é tirada a vida, mas transformada. E desfeita a nossa habitação terrena, nos é dada nos céus, uma eterna morada”, como ouviremos no prefácio desta missa. Há uma lenda entre os índios kadiwéus, de profundo sentido teológico, afirmando que “a morte leva o ser humano à vida oculta e silenciosa. Aqueles que amamos não morrem, apenas transmigram.” A saudade dói em nosso íntimo. Ela torna presente o ausente, preenchendo o vazio da solitude. Mas, Deus existe para aquietar a saudade. A palavra é pobre para falar sobre o mistério da morte. Um dia encontrar-nos-emos para celebrar o grande banquete dos eleitos de Deus. Agora, nosso confrade goza das maravilhas celestiais. Que ele descanse em paz! E junto de Deus, lembre-se de nós, peregrinos da vida. Hoje rendamos graças ao Pai Celestial pela grandeza de sua existência e sabedoria com a qual Ele o revestiu. “Os olhos jamais contemplaram, os ouvidos nunca escutaram, o pensamento humano sequer imaginou aquilo que Deus reserva para seus filhos amados.” (1Cor 2, 9). Natal, 13/09/2021. Igreja de Bom Jesus da Ribeira. Padre João Medeiros Filho.

13/09/2021

JOSÉ Diogenes da Cunha Lima José Augusto Delgado é, na expressão de minha filha Cristine, uma dessas raras pessoas que não precisam estar presentes para ser presente. É natural, pois, que ele continua entre nós. O nome é o destino. José significa “aquele que acrescenta”. Augusto é o que é elevado, eminente. Delgado quer dizer leve, sutil, de fino trato. Foi uma amizade que durou a vida inteira. Fomos colegas da “Turma da Paz” da Faculdade de Direito na Ribeira. Sabíamos ser irmãos-amigos. Desde meninos, com os nossos pais, vendíamos tecidos, chapéus e sombrinhas em Nova Cruz e Santo Antônio do Salto da Onça. Estudantes, moramos em pensões, amargando sopas e comidas requentadas. Formados, logo montamos o nosso escritório de advocacia no Alecrim. Vivíamos preocupados em pagar o aluguel da minúscula sala. Fizemos o mesmo concurso para Juiz. Aprovados, ele foi nomeado para São Paulo do Potengi e eu, depois, para Jucurutu. Ele tinha (e eu não) vocação para a magistratura. Continuei advogado. Fomos, também, contemporâneos como professores de Direito da UFRN. As nossas famílias são como se fossem uma única. Ele e a maravilhosa Zezé são “tios” dos meus filhos. Na maternidade, ele tinha ido rezar quando a enfermeira veio apresentar seu primeiro filho. Eu vi o menino e pedi a Deus que o abençoasse. Deus tem sido generoso em dar qualidades à criança, hoje um senhor juiz. Anos depois, o casal ganhou novos prêmios, Liane e Ângelo. Insisti com Delgado para que escrevesse a sua autobiografia. Cansei de esperar, e fiz a sua biografia sob o título JOSÉ, publicada pela Thesaurus Editora de Brasília. O livro é dedicado aos muitos Josés que engrandecem o nosso País. José foi homem de belo passado. Dou testemunho: para mim ele representou fidelidade, constância, afeto. José Augusto Delgado teve mais que ciência, a consciência do direito. Exerceu cidadania exemplar, como cultor e ensinante. Transmitiu a cidadania como conferencista, jurista, múltiplo doutrinador. Foi sempre reconhecido como bom juiz. O Tribunal de Justiça do RN outorgou-lhe o título de “Desembargador Honorário”. Na última homenagem prestada, o Tribunal Regional Federal declarou-o: “exemplo modelar de juiz”. O Superior Tribunal de Justiça e o Superior Tribunal Eleitoral utilizam suas decisões criadoras de jurisprudência. Aposentado, voltamos, como advogados, a fazer parcerias, mas a parceria maior foi com Ângelo, seu filho, em Brasília. Considero que o passado de pessoas boas é um dos bens da coletividade, como o do jurista potiguar José, um Homem.

09/09/2021

PABLO NERUDA, OS AMORES Diogenes da Cunha Lima O chileno Pablo Neruda (1904-1973), o mais amado poeta do século vinte, continua encantando mulheres e, também, quem costuma conjugar o verbo amar. Ao conceder-lhe o Prêmio Nobel, em 1971, a Academia de Letras da Suécia deu a razão: “Poeta da Humanidade Violentada”. Vinicius de Moraes, seu irmão de eleição, parceiro, companheiro, que, inclusive, misturou com ele o sêmen em uma mesma fonte feminina, descreveu a geografia básica dos amores de Neruda em “Cantar de Amigo e Cantar de Amor”: “A Holanda te deu Maruska; a Argentina, La Hormiguita, bela e fundida da cuca. Deu-te o México, Maria. O Brasil deu-te Marina, teu amor secreto e humilde. Mas o mundo emocionado, muito mais houvera dado, se teu Chile enciumado, não te ordenasse Matilde: A Grande Amada Matilde”. Não consegui descobrir quem foi a amante brasileira. Suponho, apenas, que foi a amada comum, oculta. Neruda e Vinícius foram diplomatas de fato e nas palavras, distinguindo a beleza fundamental das mulheres, a sua força, o seu poder. Entre tantas mulheres decorridas, Neruda casou-se com três. A primeira, em Jacarta, “Maruska”, ou Maria Antônia Hagenaar, tinha sangue malaio e tentava aprender espanhol. O Poeta apreendeu uma única palavra em malaio: “tinta”, o mesmo significado em castelhano e em português. Ela era suave, mas ele a considerava “enorme” e o casório faliu. Délia Del Carmen, artista plástica argentina, era vinte anos mais velha que o marido. Mas o amor tudo suporta. Em Madri, o Poeta reclama que ela se converteu completamente ao espiritismo. Com o poeta Rafael Alberti, encheu a morada do casal de fantasmas. Neruda acreditou que as pessoas tinham medo de visitá-los. A união terminou desfazendo-se. Matilde Urrutia, o amor definitivo. Para a amada, um livro amoroso, “Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada”, e a construção da casa de Santiago, “La Chascona”, ou seja, a descabelada, alusão à forma dos seus cabelos. Segundo Neruda, as mulheres “sorriem quando querem gritar, cantam quando querem chorar, choram quando estão felizes”. Acrescenta que elas nunca aceitam a injustiça nem o “não” como resposta. Amam incondicionalmente. E conclui: “O coração de uma mulher é que faz o mundo girar”. O Poeta dedicou sua vida a amar, ao amor, e sentia-se triste com o esquecimento. Considerava que o amor nasce da memória, vive da inteligência e termina pelo esquecimento. O amor, como a vida, é curto, e alongado é o esquecimento. A humanidade continua a louvar o seu Poeta e exaltar o amor expresso nos seus versos. Se cada ser humano se dedicasse a amar, a felicidade reinaria sobre a terra. Matilde e Pablo estão juntos, sepultados ao lado da residência Isla Negra. O amor do casal tem aroma de eternidade.
Setembro, mês da Bíblia Padre João Medeiros Filho A Igreja Católica dedica o nono mês do ano à Sagrada Escritura, em homenagem a São Jerônimo (que a traduziu para o latim) e cuja festa é celebrada no dia 30 de setembro. A Bíblia é simultaneamente palavra divina e literatura. Entretanto, apresenta peculiaridades que a distinguem de outras obras literárias. Não raro, verificam-se concepções distorcidas dos textos sagrados. Alguns os leem apenas literalmente ou de modo denotativo. Nela, Deus fala ao ser humano. Mas, isto não significa que tudo é inquestionável. Ela apresenta também um aspecto metafórico. É preciso saber até onde vão a inerrância e a inspiração bíblicas. Estas não se prendem a estilos, formas literárias, costumes e dados culturais da época dos hagiógrafos. Tais elementos constituem o contributo humano. Dir-se-ia que a Sagrada Escritura é uma obra em coautoria. O homem colabora na forma de narrar e escrever. E ali Deus revela à humanidade sua mensagem divina, universal e perene. A literatura tem uma força própria de expressar a realidade, rica de significados e simbolismos. A poesia, em especial, consegue fazê-la de um jeito que a linguagem habitual não realiza. A Bíblia é como um grande poema, todo marcado de inspiração. Num texto poético há muito mais daquilo que está escrito literalmente. O teólogo suíço Kurt Marti afirmava que “Deus muitas vezes mantém alguns poetas à sua disposição, para que o falar sobre Ele preserve a Sua inefável riqueza e beleza, que os sacerdotes e teólogos não conseguem exprimir.” A poesia chama a atenção para o fato de que nem sempre um escrito reveste-se da palavra perfeita. Com a introdução dos métodos históricos e críticos (em especial, a “formesgeschichte”, teoria das formas), tem-se uma abordagem mais realista da Escritura, enquanto produção literária, superando leituras superficiais e inexatas. Sem perder seu caráter sagrado, vai se revelando, paulatinamente, tecida por mãos humanas. A partir de novas luzes das ciências, identificaram-se nos textos bíblicos vários gêneros literários neles utilizados. Descobriram-se tradições religiosas subjacentes, métodos com os quais os autores trabalharam ao escrevê-los, estruturas estilísticas e narrativas. Assim, formam-se as abordagens escriturísticas, sob as mais diversas perspectivas: teológica, ética, literária, antropológica, social, histórica, cultural etc. São enfoques que se complementam, ajudando o leitor a aprofundar-se nos textos sagrados, captando melhor a mensagem, como Palavra divina. É preciso possuir certos conhecimentos para adentrar no mundo dos escritos bíblicos e descobrir a mensagem salvífica. Esta encontra-se também por trás das palavras, revestida de linguagem humana e carga cultural. Isto permite distinguir entre aquilo que é denominado pelos exegetas e hermeneutas: o denotativo e o conotativo. Um exemplo dessa diferença poderia ser a passagem do Levítico (cf. Lv 11,7-8). Ali, proíbe-se o consumo de carne suína ao povo da Antiga Aliança. Tratava-se, dentro do contexto daquele tempo, de uma proteção à saúde. Numa linguagem atualizada não seria recomendado o consumo de alimentos gordurosos, contaminados por agrotóxicos, impregnados de conservantes e corantes, danosos ao ser humano. A proibição religiosa de ingerir, à época, carne de porco (denotativo) traz uma mensagem: evitar alimentos nocivos à vida, dom precioso de Deus (conotativo). Assim, a Bíblia em seu aspecto literário veste-se da roupagem do que pretende transmitir. A mensagem está naquilo que é conotativo. Ali, residem a inerrância e inspiração bíblicas, ensina-nos a Igreja. A esta cabe a verdadeira exegese ou hermenêutica do Antigo e Novo Testamento. É importante saber que na Bíblia Deus se faz presente da primeira à última linha, mesmo quando não referido explicitamente. Cada livro sagrado possui estreita relação com o contexto de origem. Apesar de possuir objetivos e destinatários definidos, apresenta uma mensagem sempre atual. A Sagrada Escritura propõe modos de proceder individuais e sociais (ética), uma sabedoria que decorre da fé no Deus da vida. Este opõe-se a todo tipo de injustiça e degradação do ser humano, “sua imagem e semelhança.” (Gn 1, 26). Portanto, a Bíblia é uma literatura ungida, Palavra de Deus, revelada aos homens. “Tua palavra é lâmpada para os meus passos e luz para os meus caminhos.” (Sl 119/118, 105).
Meio século sem Monsenhor Walfredo Padre João Medeiros Filho Há meses, telefonou-me o ilustre jornalista Woden Madruga, amigo e colega de magistério na Faculdade de Jornalismo Eloy de Souza, hoje confrade da Academia Norte-rio-grandense de Letras. Transmitiu-me uma mensagem de seu irmão Florian Madruga. Este consultou-me sobre a possibilidade de escrever as memórias do saudoso Monsenhor Walfredo Dantas Gurgel (1908-1971) para integrar uma coletânea do Senado, do qual foi membro o inesquecível eclesiástico. O livro faria parte das comemorações do cinquentenário de vida em plenitude do ex-senador, em novembro próximo. Declinei do honroso convite por razões de foro íntimo e não me sentir preparado para tal missão. Apesar de não acompanhar a trajetória política do Monsenhor, admirava-o nesse mister cívico e patriota. Quando governador, dirigia-se periodicamente a Caicó (onde fui pároco) para visitar sua querida “Mãe Quininha”. Nessas ocasiões, ouvi confidências do nobre sacerdote. Portanto, estou obrigado ao sigilo sobre fatos de sua vida. Frequentemente, chegava sozinho ao Seminário Cura d´Ars, onde eu residia. Por vezes, Benedito Queiróz, seu ajudante de ordens, o acompanhava. Elegantemente, dispensava o auxiliar: “Deixe-me ficar a sós. Esta é uma conversa entre irmãos. Só preciso do testemunho de Deus.” Escutava-o atentamente. Não sabia o que dizer a um homem sábio, cheio de amor a Cristo e à Igreja. Em silêncio, partilhava minha tímida ternura e gratidão por aquele que foi também um grande educador no Seridó. Quando o sentia abatido, contava-lhe algumas anedotas de papai. Ele ria, enquanto baforava o seu cigarro encaixado numa piteira. Tantos anos são passados e ainda me emociono com a pureza de alma e retidão do padre e político. Em 1951, ele autorizou minha entrada no seminário, quando era administrador da diocese vacante. No livro “Pedaços de mim mesmo”, Dom José de Medeiros Delgado, primeiro bispo de Caicó, demonstra sua afeição pelo seu colaborador. Destaco alguns trechos: “Recordo, por exemplo, como Dom Marcolino, bispo de Natal, interveio na minha diocese e levou Mons. Walfredo a entrar na política. Era meu Vigário Geral. Não nos afastamos do respeito e da amizade mútua. Conduziu-se, por toda a vida, político e padre!” Continua aquele prelado: “[Se] castigado canonicamente poderia ter ele se desviado... talvez não tivesse conservado o espírito sacerdotal.” Dom Delgado pediu para ser sepultado na igreja do Colégio Diocesano Seridoense, por ele fundado, onde tantas vezes celebrou Padre Walfredo, seu colega no Colégio Pio Latino-americano, em Roma. Cabe explicar o engajamento político do inolvidável caicoense e a postura de Dom Marcolino Dantas. O Brasil vivia tempos sociopolíticos tumultuados. Incentivados por Dom Sebastião Leme (cardeal arcebispo do Rio de Janeiro) e Alceu de Amoroso Lima, alguns leigos organizaram a Liga Eleitoral Católica – LEC. Desejava-se maior compromisso dos cristãos na vida pública. Disso resulta também a participação de vários sacerdotes, dentre eles, Arruda Câmara (PE), Medeiros Neto (AL), W. Gurgel (RN), Clóvis Souza (MG), B. Godoy (SP) etc. Os três primeiros foram deputados federais constituintes, em 1946. O antístite natalense nutria grande admiração pelo Padre Walfredo. Desejava que ele permanecesse na diocese de Natal, ao ser criado o bispado seridoense. Via no preclaro presbítero alguém que daria uma contribuição preciosa para o seu estado. Na ocasião, Dom Delgado considerou as ponderações serenas do amigo e compadre Tristão de Athayde. Cheguei a ler suas cartas endereçadas ao bispo de Caicó, anos depois, na residência episcopal de Fortaleza. Dom Delgado coroou seu testemunho sobre Monsenhor Walfredo: “Deputado, senador, [vice-governador], governador do estado, mas padre e que padre! E para confirmação do que escrevi..., poderia invocar o testemunho de muitas pessoas que nos acompanharam em Caicó e no RN. Um deles, que gozava de minha intimidade e sempre foi meu dedicado amigo, o Senador Dinarte Mariz.” Quando residia no RJ, certa feita, nas dependências do antigo Palácio Monroe (representação do Senado naquela cidade), ouvi a seguinte declaração do parlamentar norte-rio-grandense: “A política nunca me abalou a fé e o sentimento de Justiça. Walfredo era um político digno, justo e honesto, exemplo de homem público. Fui seu opositor na política, mas o tenho dentro do coração como um amigo querido e um padre que admiro!”
Marcelo Alves Estórias filosófico-jurídicas Hoje vou misturar dois temas da minha estima: a ficção filosófica e a ficção jurídica. A primeira é a ficção que tem a filosofia como um dos seus temas principais. Nela, a filosofia é tratada de forma explícita, em primeiro plano, sendo intenção do autor fazer o leitor refletir sobre as grandes questões da vida. Já jurídica é a ficção cujos enredos têm forte ligação com o direito, porque, entre outras coisas: (i) boa parte da estória se passa perante um aparelho judicial em funcionamento; (ii) são inspiradas em casos reais ou mesmo em grandes eventos da história do direito; (iii) foca na temática da filosofia do direito, a exemplo da tensão entre a falibilidade de um sistema judicial e a noção de Justiça, que é, como na filosofia em geral, quase infinita em sua variedade. O conceito de ficção jurídica é, assim, bem amplo, podendo abarcar obras centradas em coisas tão diversas como as “personagens” do direito (o advogado brilhante ou o promotor severo), a história de um caso célebre ou os conceitos em si de direito e de Justiça. Na conceituação da ficção filosófico-jurídica, o espectro da ficção jurídica é reduzido, cuidando apenas dos enredos que têm como tema principal a filosofia do direito (subespécie da filosofia política), tratando dela intencionalmente para fazer o leitor refletir sobre suas questões fundamentais. Uma observação importante é que, para os fins deste texto, o conceito de filosofia do direito se mistura com os de ciência e de teoria geral do direito, que eu nem mesmo sei (e acredito que ninguém saiba), sem controvérsia, diferenciar. Os subtemas da ficção filosófico-jurídica são quase intermináveis. Socorro-me da lista elaborada por André Karam Trindade e Roberta Magalhães Gubert, no texto “Direito e literatura: aproximações e perspectivas para se repensar o direito”, constante do livro “Direito & literatura: reflexões teóricas” (Livraria do Advogado Editora, 2008): “a negociação da lei e a metáfora da aliança ou do contrato social (Êxodo, do Antigo Testamento), o problema da legitimidade do direito (Antígona, de Sófocles), a relação entre vingança e justiça (Oréstia, de Ésquilo), a secularização frente aos critérios morais de classificação dos crimes e punições que lhes são correspondentes (A divina comédia, de Alighieri), a obrigatoriedade de aplicação da lei penal (Medida por medida, de Shakespeare), o problema da interpretação jurídica (O mercador de Veneza, de Shakespeare), a busca de uma justiça idealizada e as adversidades inerentes à realidade (Dom Quixote de la Mancha, de Cervantes), o indivíduo e a fonte de direitos a ele inerente (Robinson Crusoé, de Defoe, e Fausto, de Goethe), as falácias da argumentação jurídica (As viagens de Gulliver, de Swift), as implicações da anistia (O leitor, de Schlink), os efeitos perversos que subjazem nas leis mais bem-intencionadas (O contrato de casamento e A interdição, de Balzac), a complexidade psicológica da culpa (Crime e castigo, de Dostoievski), as descobertas e os avanços da criminologia (A ressurreição, de Tolstói), a incoerência das formas e conteúdos que o sistema jurídico estabelece (O processo, de Kafka), o processo de submissão dos indivíduos a partir do controle social exercido pelo regime totalitário (1984, de Orwell, e Admirável mundo novo, de Huxley), o absurdo do desprezo legal pela singularidade e subjetividade (O estrangeiro, de Camus), a Lei como instrumento de interdição (O senhor das moscas, de Golding), a questão do adultério e da construção da verdade (Dom Casmurro, de Machado de Assis), a loucura e o tratamento jurídico a ela dispensado (O alienista, de Machado de Assis), os dilemas da democracia e o papel do Estado (Ensaio sobre a lucidez, de Saramago), o caos e a barbárie num mundo sem direito (Ensaio sobre a cegueira, de Saramago), o controle social e o poder ideológico exercido pelas ditaduras (A festa do bode, de Llosa), a decadência dos valores e seus reflexos na ordem jurídica (O homem sem qualidades, de Musil), a necessidade de humanização do sistema penal (Os miseráveis, de Victor Hugo), os dilemas do casamento frente aos interesses hereditários (Orgulho e preconceito, de Austen), o problema das presunções normativas (Oliwer Twist, de Dickens), entre outros tantos”. E, para ilustrar melhor o que ora afirmo, analisaremos uma dessas obras: “O processo” (1925), de Franz Kafka (1883-1924). Rogo só paciência. Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
O REPENTE NA ACADEMIA Diogenes da Cunha Lima A nossa Academia Norte-rio-grandense de Letras eleva os valores da cultura e é aberta às manifestações populares. O programa “Academia para Jovens” recebe alunos e professores para aprimorar o sentimento da importância da cultura transmitida pela educação. O improviso e o repente dos cantadores não lhe são ausentes. A prodigiosa memória do professor Lúcio Teixeira surpreendeu o inesperado. Estavam dois cantadores na casa do fundador da Academia, Luís da Câmara Cascudo, quando um besouro cascudo pousa no ombro do Mestre. Foi o bastante para um cantador versejar: “Estou vendo dois cascudos/Um do outro é diferente/Um não tem raciocínio/O outro é inteligente/No mato cascudo é bicho/Na praça Cascudo é gente”. Em cerimônia acadêmica, falava um companheiro não da simpatia do poeta Luiz Rabelo, um mestre da arte do improviso. O orador falava baixo e com alguma impropriedade de linguagem. O cachorro da zeladora começa a latir. Logo, Rabelo descreveu a sessão magna; “O acadêmico falava/Mas o cachorro latia/Era bem grande a arrelia/Nada o auditório escutava. /Assim se desenrolava a sessão na Academia/Afinal ninguém sabia (era impressão que deixava) /Se o cachorro discursava/Se o acadêmico latia”. O desafio do violeiro começa normalmente com um autolouvor exagerado de um cantador para intimidar o parceiro. Certa vez, convidei dois cantadores para uma apresentação na Academia. Sugeri o tema: A chegada do cantador no céu. O potiguar-paraibano Antônio Sobrinho discorreu sobre as suas vantagens na visita celestial, havia recebido o aplauso dos santos. O poeta pernambucano contestou. Disse que, no “céu”, o companheiro foi recebido por um anjo de rabo e chifre, que soltava fogo pelas ventas. Teria sido mergulhado em enxofre fervente. Por sorte, consegui decorar a resposta: “Viajei num transporte igual ao vento/E fui conhecer o céu empíreo/Nas mãos eu levei a flor do lírio/E nos braços levei meu instrumento/Ao chegar no céu nesse momento/Me senti o poeta mais feliz/Jesus me escutando pedindo bis/E eu repeti a mesma cena/Namorei com Maria Madalena/Não casei lá no céu/Porque não quis”. A plateia, emocionada, aplaudiu. O acadêmico Veríssimo de Melo deixou copioso legado de suas pesquisas folclóricas. Deu especial relevo à atualidade da poética popular. Entre tantos estudos, revelou a cantoria feita para a visita do Papa João Paulo II a Natal, a morte de Tancredo Neves, registrou a exposição de cordel no Museu Britânico. Muitos desafios surpreendentes. Vamos prestar-lhe a devida homenagem nos cem anos do seu nascimento. Estamos convidando dois cantadores para, em sessão aberta e com transmissão pela internet, louvarem a sua vida limpa e sua obra semeadora. A Academia trabalha com a colaboração do tempo, promovendo ensaios, valorizando experiências intelectuais, como orienta o seu lema, buscando a luz dos astros na sabedoria popular.
IMAGEM E IMAGINAÇÃO Valério Mesquita mesquita.valerio@gmail.com Não posso morrer de silêncio. Mesmo ante a impotência dos vocábulos. Em ar de conversa vou desfazendo equívocos e revolvendo arquivos desta quadra transitória. No cafezinho habitual do ponto, perguntam-me se Carlos Eduardo Nunes Alves se reelegeria prefeito de Natal? Ora, se Vilma Maria de Faria elegeu Aldo Tinôco avalie ele? Mas, nem só de pergunta vive o homem à hora do café e do crepúsculo. Li certo dia, uma crônica do amigo Rômulo Xavier uma alusão incorreta a meu respeito, a despeito dos seus generosos elogios. Trata-se de uma placa afixada em Natal que contava os dias faltantes para o então governo terminar. Esclareço que não foi de minha “verve”, como imagina o respeitável escritor e jornalista. Conheço a história e as razões que pertencem aos arquivos mplacáveis do Rio Grande do Norte. No ritmo de Zeca Pagodinho, deixando a vida me levar, deparei-me com a nova e violenta refilmagem da Paixão de Cristo. Nos confins dos anos 59, quando assistia em preto e branco aos primeiros filmes sobre o tema, eu chorava com o sofrimento de Jesus. Indagado se assisti a versão do Mel Gibson, respondi que não. Iria realimentar minha paixão antiga contra os responsáveis pelo homicídio universal. Os evangélicos já depuseram no fórum da história, apontando os culpados sobre os quais ainda hoje recai o sangue do inocente. Certa vez, ouvi do saudoso e querido padre Penha afirmar, saindo da exibição do filme, que Jesus fora vítima dos partidos políticos da época. Nível, qualidade de serviço, educação, devem ser questões pontuais das empresas que compraram as estatais brasileiras no setor das comunicações. Por exemplo: quando o usuário desejava passar um telegrama fonado é Recife que atende. Bom, até aí entendo mais ou menos. Mas o despreparo dos atendentes era lamentável e alarmante. Sempre recebia cópias dos telegramas emitidos. A maioria, chegava com erros. O último que enviei, dirigido ao ex-ministro Almino Affonso, o telegrafista (o nome é esse?) pernambucano escreveu “onorário” em vez de honorário. Lembrei-me do ex-prefeito Chico da Bomba de João Câmara: “Dr. Varela, hospício é com “o” ou com “h?”. “É com h, Chico, com h, respondi.” Na verdade o saudoso Chico da Bomba queria escrever um ofício à Sudene e usar a palavra auspício. (*) Escritor

07/09/2021

Minhas Cartas de Cotovelo – versão de 2021-40 Por: Carlos Roberto de Miranda Gomes Eis que o Sol brilha mais forte no firmamento, porque um motivo maior se alevanta – o Dia Glorioso da Liberdade da nossa terra, onde a bandeira do Brasil beija e balança. Criaturas se engalanam com as suas flâmulas para homenagear a data com amor, honrando as tradições dos nossos heróis sacrificados e que pela Pátria perderam suas vidas ou liberdades. Contudo, também será possível encontrar aqueles que, sob a máscara da falsidade e escudado, sem patriotismo, na nossa bandeira, expressem o seu efetivo desejo partidário ou ideológico, maculando a real festividade deste dia, nas ruas ou em versos falsos, que já se encontram na mídia. Para estes o melhor caminho seria o silêncio. Mas para os verdadeiros brasileiros aponto o verso do Hino da Independência: Não temais ímpias falanges que apresentam face hostil, vossos peitos, vossos braços são muralhas do Brasil. A exaltação uníssona do passado foi, ao longo dos anos, perdendo o seu vigor posto que a clava forte do poder e das ideologias exóticas foram se aninhando entre os brasileiros, manchando desnecessariamente de sangue o auriverde pendão da nossa terra, apesar de gritos isolados de alguns modernos (Cazuza) que versejaram: Grande Pátria Desimportante em nenhum instante eu vou te trair. Não vou te trair. Os que se maquiam por trás do nosso pavilhão altivo para fazer postulações estranhas – manter ou voltar com as estruturas de domínio, sem olhar para o sofrimento de um povo bom, ordeiro e tolerante, que assimila com esperança e fé dias melhores para a sobrevivência digna que ficou cravada com as expressões do Criador – a dignidade da pessoa humana. Hoje, façamos vencer o milagre da solidariedade, unidos trabalhando pela Pátria lutando num único sentido do restauro da nossa dignidade perante o concerto das Nações. Não aceitem que a intolerância presida as ações representadas nas manifestações cívicas que iremos vivenciar nesta data sagrada, mas ocorra o milagre de um só pensamento: resgate das nossas tradições e amor que foram tão presentes no tempo da Independência. Do contrário, estaremos repetindo as expressões de Castro Alves: Meu Deus! Mas que bandeira é esta, que impudente na gávea tripudia? Silêncio. Musa chora e chora tanto que o pavilhão se lave no teu pranto! Deixemos brilhar com intensidade mil, o glorioso estandarte do BRASIL.

01/09/2021

REPOSIÇÃO DE FATO HISTÓRICO Valério Mesquita* Mesquita.valerio@gmail.com Na posse do famoso coronel Estevão Moura, no século dezenove, o engenho Ferreiro Torto vislumbrou tertúlias memoráveis, visitas ilustres de presidentes da província e dignitários do império, com banquetes e bailes. Como amigo da boa mesa, todos conheciam o modo fidalgo com que o coronel tratava seus hóspedes, fidalguia herdada por todos os seus descendentes diretos, sobre os quais, assevera mestre Câmara Cascudo: “foram fiéis ao signo da hospitalidade generosa, completa, ampla, inimitável”. Com o falecimento de Estevão Moura, o engenho Ferreiro Torto, no espólio, coube a sua filha mais nova, Isabel Cândida de Moura Chaves, casada com Francisco Clementino de Vasconcelos Chaves, pais do jurista João Chaves, nascido na residência em 1875. Isabel Cândida vendeu a propriedade em 1900, para sua sobrinha Maria Suzana Teixeira de Moura, que na década de 1920, a transferiu para Francisco Coelho e depois a Bruno Pereira que se desfez do imóvel na década de 1930, alienando-o a Amélia Duarte Machado, que desde então o manteve até as terras serem desapropriadas pela prefeitura de Macaíba, em nossa gestão como prefeito (1974). Por ser patrimônio histórico, foi transformado em museu de Arte Sacra, mantido pela Fundação José Augusto, que tombou e restaurou o antigo palacete colonial, graças aos recursos da Emproturn. Depois de funcionar como sede da prefeitura de Macaíba entre os anos de 1983 a 1989, o solar foi transformado em museu municipal na gestão de Odiléia Mércia da Costa. Posteriormente fechado, reabriu como museu regional na gestão Mônica Nóbrega Dantas. Novamente fechado e após sofrer assaltos e depredações, foi reinaugurado como Complexo Turístico e Cultural, em abril de 2003, apresentando coleções de fotografias antigas da cidade da Macaíba e dos seus filhos que se destacaram nos mais variados segmentos sociais, culturais e políticos. O nome Ferreiro Torto teve origem em um coqueiro muito alto e torto, que existia bem próximo à porteira da fazenda, e quase embaixo dessa árvore um ferreiro havia montado a sua tenda e oferecia os seus serviços aos tropeiros, que por ali passavam a fim de corrigir as ferraduras dos animais. A história de sua restauração começou efetivamente em 1974, na oportunidade em que fui prefeito de Macaíba e desapropriei a área que circundava os escombros do sobradão. A questão foi ajuizada e com coragem mantive a decisão, encomendando um projeto de recuperação ao escritório do arquiteto Airton Vasconcelos, que se valeu das fotos existentes e das dicas dos habitantes mais antigos da cidade e historiadores. Em 1975, deixei a prefeitura para assumir a presidência da Emproturn. Nessa estatal, no governo de Tarcisio Maia, enfrentei contenda com o diretor administrativo e financeiro Francisco Revoredo, que defendia a alocação do recurso no valor de um milhão de cruzeiros, à época disponível, com destino a sua terra Mossoró, e não para a restauração do Ferreiro Torto, em Macaíba. A divergência ganhou as manchetes dos jornais. E por fim, com o voto de desempate do diretor técnico Valmir Targino, fomos vitoriosos. Procurei o presidente da Fundação José Augusto Sanderson Negreiros e, através de convênio, a Emproturn repassou a importância mencionada para o órgão cultural responsável (FJA) afim de adaptar ou ampliar o projeto técnico antes elaborado. Muitas dificuldades junto ao Patrimônio Histórico foram, enfrentadas em Recife. O IPHAN restaurava monumentos mas não os reconstruía. Era a norma. Polêmicas foram travadas, porém ao final prevaleceu o critério da equipe técnica da Fundação José Augusto, chefiada pelo arquiteto Paulo Heider Feijó. O Solar, foi inaugurado em 1979, com as presenças do governador Tarcisio Maia e Franco Jasiello da Fundação José Augusto, além do governador do Pará, doutor Aloísio Chaves, neto do jurista João Chaves que morou e faleceu no Ferreiro Torto. Esses fatos não podem ser esquecidos. Quando se falar sobre o Ferreiro Torto, devemos nos lembrar que sem a decisão inaugural e obstinada de desapropriar a área, conseguir os recursos e arrostar as dificuldades que se impuseram contra a reconstrução não existiria um legado tão importante da história do Rio Grande do Norte e de Macaíba. (*) Escritor