31/12/2021

LUZES QUE SE APAGAM Valério Mesquita* Mesquita.valerio@gmail.com Apagaram-se as luzes dos natais de antigamente? A avenida Rio Branco era um corredor resplandecente do Baldo à Ribeira. Abraços, cantos e risos povoavam as calçadas: Boas Festas! Feliz Ano Novo! Era um planeta diferente. Foi pensando e revivendo os velhos natais que ressurgiu na memória o antigo comércio da avenida Rio Branco com suas lojas, magazines, armazéns que constituíam a força do capital da classe produtora potiguar. Era o chamado comerciante da cidade, inscrito na Associação Comercial do Rio Grande do Norte, movido a Banco do Brasil de Otávio Ribeiro Dantas, lá da avenida Duque de Caxias, na Ribeira. Da calçada do Cinema Rex, onde Luís de Barros tocava a cigarra mandando começar o filme, contemplei, olhar acima, olhar abaixo, o mundo desaparecido de estabelecimentos comerciais fundados por natalenses e hoje substituídos por lojas de Pernambuco, Paraíba e Ceará. De frente, onde me achava, me lembrei da Casa Costa que servia o mais saboroso sorvete; Omar Medeiros e Cia., Lojas Setas; os “estrangeiros”: o Novo Continente, CêBarros, Quatro e Quatrocentos e Lojas Paulistas; J. Resende e a Casa Régio dominavam o mercado de eletrodomésticos; Casa Hollywood e Casa Garcia além do Cine-Foto Jaecy que depois foi para a João Pessoa; a resistente e desfraldada Livraria Universitária, vizinhas a Casa Duas Américas e a Formosa Syria; a Casa Tic-Tac e a Casa Rubi sem esquecer a Nova Paris; quase de frente a Casa Rio que ainda sobrevive (Rio Center), em outros locais da cidade, pluralizada e redimensionada; Ótica Brasil, a Farmácia Barbosa e juntinho o bar Granada; a casa Letière, o Armazém Natal e antes do Banco do Brasil, a lembrança mais dolorosa do velho e trágico mercado público da cidade do Natal. Tudo sumiu. As vitrines desse tempo se apagaram e com elas um grupo de comerciantes que desapareceram, permanecendo, apenas, uma foto intacta suspensa no ar e as imagens dos natais de quarenta e cinquenta anos passados. Ao contemplar a Rio Branco sem luz e sem alma da festa natalina, resolvi homenageá-los. Natal não pode esquecer jamais os pastores da noite que fizeram feliz o Natal de tanta gente. Chegam-me alguns que a memória reteve: Fuad Salha, Zé Garcia, Chafic Abou Chacra, Reginaldo Teófilo, Habib Challita, Zé Resende, Walter Pereira, Quim-quim da Farmácia Barbosa, Nagib Assad Salha, seu José e Abess da Formosa Syria, Raimundo Chaves, Heider Mesquita, Jaecy Emerenciano Galvão e Nemésio Moquecho, Quincola (Scope) Luís de Barros, Nivaldo Feitoza Bonifácio, Alcides Araújo e uma lembrança terna da Rádio Trairi do major Theodorico Bezerra que funcionava no alto do Novo Continente. Relembro os locutores: Gutemberg Marinho, Edmilson Andrade e Vanildo Nunes, em nome dos quais homenageio a todos. A cidade de Natal deve um preito de reconhecimento a todos aqueles que diretamente, através do seu ofício, se conscientizaram do seu papel, se fortaleceram e daí surgiram a Federação do Comércio, o Sindicato do Comércio Varejista e o próprio CDL. Ninguém pode contestar o pioneirismo dessas conquistas aos comerciantes da avenida Rio Branco. É preciso reacender as luzes dessa avenida para a história passar. No Grande Ponto, o olhar triste e reminiscente. A procissão de relembranças das melhores figuras de Natal, espiritualizadas no eterno bate-papo, dia e noite, como se, para mim, ali, naquele instante, tudo tivesse se reencarnado. Olhei para o chão sagrado daqueles vultos e deu-me náuseas as calçadas sujas, encardidas pela desfiguração e os pés da modernidade. Mataram o Grande Ponto pletórico e no âmbito do seu quadrilátero, rasgaram a sua história em pedaços e foram transformados os seus habitantes. Daquelas calçadas, com sol matinal batido e quente desse verão sobe as narinas um odor de sebo bovino e inhaca pestilencial. Será que o IPTU não poderia lavar aquelas calçadas onde tanta gente boa pisou antigamente? Djalma Maranhão, Alvamar Furtado, Luís Tavares, José Augusto Varela, Antonio Soares Filho, Luiz Carlos Guimarães, Newton Navarro, Veríssimo de Melo, Ticiano Duarte, Américo de Oliveira Costa, Zé Areia, Gilberto Avelino e tantos outros mortos dignos de lavarmos os pés, sem precisar nem falar nos vivos? (*) Escritor

20/12/2021

Marcelo Alves Juristas balzaquianos Fiquem calmos: não vou relatar confidências de advogadas e advogados de mais de 30 anos. Embora adore essas fofocas (quem não gosta?), a conversa hoje é mais séria. Sou literal, digamos. Refiro-me aos profissionais do direito na obra de Honoré de Balzac (1799-1850). “A Comédia humana”, herdeira do “Code Napoléon”, é pródiga em juristas. Juristas de verdade, grandes nomes da França, alguns deles professores de Balzac na Faculdade de Direito de Paris, como Hyacinthe Blondeau (1784-1854), Louis-Barnabé Cotelle (1752-1827), Charles Toullier (1752-1835) e Raymond-Theodore Troplong (1795-1869) ou os famosos quatro “redatores” do Código, Jean-Étienne-Marie Portalis (1746-1807), François Denis Tronchet (1726-1806), Jacques de Maleville (1741-1824) e Bigot de Préameneu (1747-1825), que são citados ou aludidos pelo autor em seus romances. E juristas imaginados pelo autor. Peirre-François Mourier, em “Balzac, L’injustice de la loi” (Michalon Editeur, 1996), teria contado mais de 50 “homens da lei”, todos com lugares especiais dentro da Comédia. Já em “Imaginar la ley: El derecho en la literatura” (Editorial Jusbaires, 2015), os organizadores Antoine Garapon e Denis Salas lembram: “Ali encontramos figuras de sujeitos de direito como os herdeiros de Ursule Mirouët, o ausente em O coronel Chabert, a falência em César Birotteau. O espelho que essa obra apresenta nos remete aos esplendores dos novos status da sociedade burguesa, como às suas sombras. O romance balzaquiano desvela um mundo de interesses e de crimes. (…). É o mundo de Esplendores e Misérias das Cortesãs, que celebra a mitologia romântica dos fora da lei”. Por outro lado, Balzac muitas vezes abre “um espaço positivo para a lei”, como no procurador-geral Granville, que encarna a nobreza da profissão do direito. Balzac crê nas instituições. Para ele, o juiz é um centro da sociedade, esta cheia de contradições, é vero. E se temos o juiz Popinot de “A interdição”, “pleno de modéstia e grandeza, homem justo e humilhado”, também encontramos o “flexível Camusot”, o juiz de instrução “destinado a uma carreira brilhante”. São personagens tiradas ou postas – depende de olharmos pelo ângulo da inspiração ou da criação – de/em fiéis “cenas da vida jurídica” (inclusive citando decisões reais de cortes francesas). Desses personagens e cenas, tomemos o caso do juiz Popinot, de “A interdição” (1839), talvez o mais “investigado” dos juristas balzaquianos. “A interdição” é um texto seminal. Um romance curto e denso, em que o autor retrata as realidades do quotidiano e do foro. Várias de suas personagens são achadas em outros romances da Comédia, como de estilo no “mundo” de Balzac. A trama gira em torno da busca da Marquesa d’Espard para interditar o seu marido, de quem vive separada há anos. Seria o Marquês um louco pródigo, que impede uma mãe de ver os filhos e desperdiça a fortuna? Ou seria a Marquesa uma mulher inescrupulosa, disposta a qualquer coisa? É para decidir isso que são encarregados o “íntegro” juiz Popinot e o “flexível” juiz Camusot. E, sem crise de consciência, digo mais nada. Balzac teve o seu modelo de magistrado no juiz Popinot, que José Antônio Aguirre, em “Escritores y procesos: casos reales y ficcionales del proceso penal” (Ediciones Didot, 2012), poeticamente define como “a ficção de um juiz real”. O autor retratou “este magistrado como um homem de altíssimos valores, severo, equânime, fiel à sua função judicial e de uma decência inquebrantável”. Mas, embora possuidor de numerosas virtudes, o juiz Popinot tem também defeitos (quem não tem?). O principal, embora não venal, é a sua ingenuidade. E a intromissão desse defeito nas suas qualidades faz desse juiz “uma personagem real, verossímil e crível”. É verdade que Balzac se apropriou de muitas coisas do direito: instituições (casamento, herança, falência, crime etc.), linguagem, cenas/dramaticidade, personagens e por aí vai. Mas também nos deu muito de volta. Basta lembrar a sua contribuição para a preservação de uma história contada do direito, que procuramos inutilmente nos códigos, como lembrou Henri Lévy-Bruhl em “Sociologie du Droit” (PUF, 1981). Ou para a fixação de um vocabulário da nossa ciência. E há, claro, o exemplo do juiz Popinot. Assim, acredito ser “A comédia humana” um monumento da “ficção jurídica”, sem que dois séculos de mudanças prejudiquem a relevância das suas questões de direito. E parafraseio uma advertência constante de “Balzac, romancier du droit” (direção de Nicolas Dissaux, LexisNexis, 2012): “Todo jurista deveria ler Balzac”. Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

18/12/2021

O RENASCIMENTO DE CUNHAÚ Valério Mesquita Mesquita.valerio@gmail.com Câmara Cascudo, em sua Acta Diurna publicada em "A República", em 13 de outubro de 1945, dizia: "Não há trecho de terra mais sagrado para nós. Foi o primeiro núcleo industrial da Capitania e a região mais revirada pela guerra e molhada de sangue. Ali viveram os filhos e descendentes do fundador da Cidade do Natal. Ali lutaram Felipe Camarão e Henrique Dias. Ali viveu na tranqüilidade André de Albuquerque. Lutas, festas, crimes, atrocidades, riquezas, alegrias, orgulhos, poderio, tudo passou como poeira ao vento solto. Restam as ruínas negras, guardando a lembrança sem pausa do martírio. Sem túmulo, rondam, no silêncio da noite tropical, as almas dos sacrificados. A Capela era o cemitério aristocrático dos Albuquerque Maranhão. E um altar inteiro, devocionário de religião instintiva, como os heróis que se dedicam ao Deus do Céu e ao Rei da Terra." Em 1985, a Capela de Cunhaú foi restaurada pela Fundação José Augusto com o apoio das Fundações Pró-Memória e Roberto Marinho. A tarde festiva do seu ressurgimento, foi a maior emoção que vivi ao longo dos cinco anos que passei na Fundação José Augusto. Ali há o convívio equilibrado entre o místico e o humano. Território livre da fantasia, Cunhaú é o grande palco onde melhor se revela a alma de uma época e os seus valores essenciais. Numa singular procissão de lembranças, hoje, os gestos, os passos, as silhuetas dos que povoaram o templo e as cercanias se eternizam. Cunhaú exerce sobre nós um poderoso fascínio, uma paixão obscura e recôndita, nunca aplacada nem satisfeita, a conduzir a imaginação em viagens lendárias e míticas, ao universo feudal dos Albuquerque Maranhão, dos fidalgos, dos colonos, dos escravos, dos religiosos, dos índios e dos invasores, como se tudo ainda estivesse suspenso no ar, como nos versos de Manoel Bandeira. A reflexão dessas paredes da Capela de Nossa Senhora das Candeias nos conduz a essa pátria dos sonhos, terra das ilusões, de almas taladas à ferro e a fogo, como se fora um desejado e atingível Paraíso Perdido. Enfim, evoco a Capela de Cunhaú, neste canto de página emergido do escuro nebuloso e mágico, engrandecida na reconstituição de arquitetos, engenheiros, pedreiros e serventes, todos historiadores manuais de sua magnitude esplendorosa. Hélio Galvão, à maneira proustiana, diz que o tempo perdido pode ser procurado. Talvez até recuperado. O poder da evocação pode fazer o milagre de repassar aos nossos olhos a paisagem que desapareceu, as pessoas que já não vivem ou refluir aos ouvidos a voz emudecida e trazer de novo à memória, aos pedaços, episódios, fatos, gestos, modos que não vimos nem participamos. A necessidade da restauração da Capela era um desejo acalentado há muito tempo. A decisão política culminou com a determinação do então presidente da SPHAN-Pró-Memória, Dr. Marcos Vinícius Villaça, através da visita à mesma conosco acompanhado, em princípio de 1985. Adotamos como critério a reincorporação dos elementos antigos constituintes da mesma, como a lápide, a pia de água benta, local do sino e finalmente a imagem de Nossa Senhora das Candeias, sua padroeira, com a finalidade de mantermos acesa, para gerações futuras, a chama que testemunha nosso passado histórico. Ver a Capela hoje é ouvir, é sentir. Por isso, leiamos Cascudo em 1949, pedindo a sua restauração: “O Forte dos Reis Magos e a Capela de Cunhaú tem sido constantes tão vivas e permanentes na minha atividade provinciana como os dois movimentos fisiológicos da respiração. A Capela de Cunhaú é o santuário do Rio Grande do Norte. Lugar de morte pelo ódio e em louvor da fidelidade à tríade antiga consagradora, a Deus, ao Rei e à Família.” Era a antevisão de Cascudo há 72 anos atrás. O apelo emocional depois atendido. A Fundação José Augusto, ao restaurar em 1985, aquele relicário,Es ressuscitou um desfile sonoro, a paisagem das almas, de sonhos, o chão dos túmulos que guarda os espíritos. Enfim, resgatou a memória histórica do Rio Grande do Norte. (*) Escritor

15/12/2021

O VELHO COQUEIRO TORTO Por anos e anos ofereci minha sombra, meus frutos e minha imagem que ajudava a embelezar a paisagem da praia da Pipa. Por anos e anos fui testemunha das constantes mudanças na areia da beira mar, que entre aterros e cavações, criava lindas imagens no lugar onde nasci. Por anos e anos protegi e defendi com meu forte tronco e minhas raízes bem fincadas no chão, a frente da casa onde cresci da força das vagas que rebentam com violência durante as grandes marés. Por anos e anos fui envelhecendo e naturalmente perdendo minha resistência, mas não a minha vitalidade, pois ainda continuei a oferecer sombra, frutos e a beleza de minha imagem. Um dia não consegui sustentar o peso de quem, por anos e anos, limpava minhas palhas secas, livrando-me dos fungos e insetos que me atacavam e me enfraquecia. Meus frutos, de tempos em tempos, precisavam ser colhidos, pois ao cair, podiam machucar alguém. Foi aí que tudo aconteceu. No dia 11 de dezembro de 2021, no fim da tarde, meu belo tronco, longo e torto, que a tantos encantou, cedeu ao peso de quem queria só me ajudar a continuar sadio, belo e viçoso. Quebrei e cai sobre a areia onde um dia fixei minhas primeiras raízes quando ainda era semente. Agora sou apenas um velho tronco apontando para o céu. Certamente vão me cortar e não restará nenhuma lembrança do que eu fui a não ser em fotos e filmagens. O meu irmão mais velho, que nasceu a poucos metros de mim, foi criminosamente morto. Por pura maldade, colocaram óleo diesel em seu tronco e logo ele foi definhando, as palhas foram secando até que um dia alguém chegou com um machado e o libertou daquela agonia. Prefiro que façam o mesmo comigo. Não quero ser uma lembrança triste. Prefiro que se lembre de mim como sempre fui belo e viçoso. Minha imagem estará gravada para sempre na memória dos que me apreciavam, nos milhares de fotografias, filmagens e na lembrança daqueles que me contemplava no amanhece do dia ou no cair da tarde onde minha silhueta contrastando com o por do sol, tantas vezes filmado pelo “PASTORADOR DE CREPÚSCULO". Minha imagem, que a tantos encantou, não pode simplesmente se resumir a um velho tronco sem vida apontando para o céu. Não chorem por mim. Eu estarei sempre presente na lembrança de todos vocês, nas fotos e filmagens que fizeram enquanto eu estava vivo e viçoso com minhas palhas balançando ao sabor do vento. Ormuz Barbalho Simonetti Jornalista, escritor, Presidente do Instituto Histórico e Geográfico o RN Morador da Praia da Pipa-RN - Canal no Youtube - "Praia da Pipa O pastorador de Crepúsculos"