27/07/2020


A peste do jurista
Justiniano I (483-565) foi imperador bizantino (romano do Oriente) de 527 a 565. Sua fama é enorme. Para o direito, ele é certamente o mais importante desses soberanos. Justiniano foi o compilador – ou mesmo o codificador – do direito romano antigo, com o seu “Corpus Iuris Civilis”, uma monumental obra legislativa e doutrinária composta de quatro partes: o “Código”, o “Digesto”, as “Novelas” e as “Instituições”. Ali está condensado um até então disperso direito, nos mostrando ainda como era o raciocínio e a argumentação jurídica romana (especialmente no Digesto), assim como a sua base principiológica (nas Instituições). Casado com Teodora (circa 500-548), mulher hábil politicamente, o reinado de Justiniano foi uma era de grande atividade, de reformas e de tentativa de expansão do Império, restando ele conhecido, à época, por sua energia e denodo, como o “imperador que nunca dorme”. Ele faleceu em Constantinopla (atual Istambul). E ganhou para a posteridade o apelido de “o Grande”. Merecidamente.
Mas Justiniano teve também os seus insucessos. No direito, inclusive. Justiniano pretendeu que o “Corpus Iuris Civilis” se tornasse a única fonte do direito de então, devendo ser aplicado pelos juízes do seu Império, que estariam proibidos de fazer uso de outras fontes e até mesmo de interpretar/comentar o “Corpus”. Entretanto, à sua época, o “Corpus” teve mais sucesso no Oriente que no Ocidente. No Ocidente de então, dada a conhecida invasão dos bárbaros, sua influência foi menor, tendo apenas voltado à cena no século XII, como referência do chamado “direito comum”, alastrando-se esse prestígio até os nossos dias.
Ademais, embora Justiniano tenha lutado para restaurar a grandeza do Império Romano, estimulando a administração, a indústria, o comércio, as ciências e as artes, ele falhou no que toca ao Ocidente. Ele buscou reconstruir o Império Romano indo atrás de sua porção ocidental, perdida aos bárbaros em 476. Fez isso por razões de ordem econômica e política, mas também por motivos religiosos. Para ele, Roma era a quintessência do mundo católico. Mas não deu.
Muitos atribuem esse insucesso à chamada “Peste de Justiniano”. Uma pandemia. Talvez o primeiro relato de peste bubônica da história, que afetou o Mediterrâneo e o Império Bizantino, especialmente Constantinopla, entre os anos de 541 e 544. Uma das maiores pandemias de todos os tempos, com impactos semelhantes ao da Peste Negra, no século XIV. Falam em até 100 milhões de mortos. Em uma mortandade de metade da população da Europa e de Constantinopla.
Segundo Anne Rooney, em “A história da medicina: das primeiras curas aos milagres da medicina moderna” (M.Books, 2013), vinda do Egito, a peste varreu Constantinopla, “matando até 10.000 pessoas por dia no período crítico – os mortos ficavam pelas ruas, sem serem enterrados, de acordo com o cronista contemporâneo Procópio. Por volta de 600 d.C., a praga matou cerca de 50% da população da Europa”. O império foi gravemente afetado. Depopulação arrasadora. Economia devastada pelo colapso da agricultura. Fome. Tudo isso fez Justiniano perder a esperança de soberania sobre as áreas do Mediterrâneo outrora romanas. Anos depois, isso ainda ajudou na conquista árabe das terras bizantinas no Oriente Médio e na África.
Procópio de Cesareia (circa 500-565), historiador bizantino, citado por Rooney, faz um relato tocante da coisa: “durante esse tempo, havia uma pestilência, pela qual toda a raça humana quase foi dizimada”. Ela “tomou todo o mundo, e arruinou a vida de todos os homens”. E não deixou intocada “nem uma ilha ou caverna nem um encosta de montanha que tivesse habitantes humanos”. Não sei se é exagero poético.
Mas parece ser fato, como assinala Rooney, que a peste foi uma das culpadas “pelo início da chamada Idade das Trevas, quando avanços intelectuais e culturais na Europa aparentemente chegaram a ficar paralisados durante vários séculos, pois os médicos foram incapazes de conter ou curar a doença, e por isso muitas pessoas buscaram conforto na religião”. E se isso se deu no tempo de Justiniano, o Grande, imaginem agora, quando dependemos de homens pequenos.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

26/07/2020



A carnaubeira
Tomislav R. Femenick - Jornalista

Em uma das minhas últimas idas ao oeste potiguar, deparei-me com uma visão, para mim, inusitada: na estrada, três caminhões transportavam troncos serrados de carnaubeiras. Até os anos 1960, as várzeas dos rios Açu e Apodi eram naturalmente embelezadas pelas gigantescas carnaubeiras e seu cultivo era uma atividade rendosa. As palhas da planta forneciam o pó valioso que gerava riquezas, que alimentava famílias inteiras e que faziam os proprietários ainda mais orgulhosos daquela beleza rentável. Isso foi durante o ciclo da carnaúba; sua época áurea.
Uma vez “apurado” (processo de separação do pó, que existe nas folhas da árvore), aquele pó se transformava em cera, que era exportada para a Europa e para os Estados Unidos, onde tinha o mais variado uso industrial como matéria-prima básica ou adicionada. No Brasil a cera de carnaúba também era usada em larga escala, inclusive nos discos musicais.
Não era somente a cera que gerava emprego, que tinha utilidade. A palha da carnaubeira servia como matéria prima em profissão artesanal das mais curiosas. Dela se ocupavam famílias inteiras no fabrico de esteiras, chapéus, bolsas, sacolas (urus), peneiras (urupemas) e vassouras. Nas fazendas era utilizada no aparelhamento de cangalhas e em coberturas de residências; nas salinas, na construção de baldes de solidificação do sal. Na época em que os carnaubais perdiam parte da sua beleza com a corte de palhas, ganhavam os proprietários com a venda dos produtos. Era a riqueza em marcha.
A percentagem do lucro nessas transações era alta, o que fazia crescer o interesse pelos carnaubais. Todos ganhavam: os proprietários, os trabalhadores, os agentes compradores, as firmas exportadoras e o governo, este com os impostos.
Acontece que muitos fatores conspiraram contra essa riqueza natural. Os imensos carnaubais do Rio Grande do Norte, antes elementos de beleza telúrica e produtores de riquezas, tiveram seus dias contados, como fatores econômicos. Suas palhas, seu pó, já não mais têm a procura de antes. A ciência descobriu produtos sintéticos que tomaram seu lugar. Já não mais se vê o trabalho exaustivo de homens a cortar e juntar a palha rica, a apurar o pó gerador de riquezas. Famílias já não mais se ocupam do artesanato da tecelagem de palhas.
As despesas com o corte dos carnaubais e cozimento do pó aumentaram em escala nunca esperada. Os mercados interno e externo diminuíram o consumo. A oferta de cera excedeu a procura, e as vendas dos produtos de artesanatos estavam longe de cobrir as despesas básicas de todo o processo produtivo.
Dos carnaubais saía apenas uma pequena percentagem de palha e cera. Uma tênue lembrança daquilo que foi uma atividade altamente lucrativa. Foi preciso parar para evitar prejuízos maiores. Foi o início do fim da economia da cera de carnaúba.
Diante destes fatores adversos, os produtores de cera foram perdendo interesse e, pouco a pouco, os imensos carnaubais ficaram esquecidos e isolados em sua solidão. Continuam apenas como beleza nativa.
No Rio Grande do Norte, especialmente, a atividade carnaubeira enquadrou-se no quadro de ocupações deficitárias. As despesas crescentes e a pouca comercialização do produto deixavam ocioso por muito tempo o capital empregado. Além do mais, com a demora de comercialização, a cera perdia peso, aumentando o prejuízo.
O resultado foi o abandono dos carnaubais, que estão condenados à extinção, quando muitos proprietários já iniciaram sua derrubada e a consequente “operação arranca do toco”, a fim de desocupar as terras para outros cultivos.
 Hoje a carnaubeira é simples madeira para construção; como vi naquela carga dos três caminhões.
Tribuna do Norte. Natal, 26 jul. 2020.

20/07/2020


POUCAS E BOAS DE LAVÔ

Valério Mesquita
mesquita.valerio@gmail.com

01) Campanha de 1990, para senador e governador. Cenário: Praça Pública de João Câmara em plena feira multifária e multifusa. Os dois candidatos Garibaldi Filho e Lavoisier Maia iniciaram às 10 da matina o famigerado corpo a corpo. Gari, vagaroso no andar, verdadeiro “pé de chumbo”, caminha atrasado e na dianteira, disparado, vai Lavô, o famoso beijoqueiro. Lá na frente, Gari alcança Lavô. Compassadamente, Gari cumprimenta: “Doutor Lavô, nunca se cansa. Parou por quê?”. Disfarça Lavô: “Prá lhe esperar. Pois nessa pressa já beijei até um macho!!!”.

02) Corria o bom tempo em que Lavô pontificava no Senado. Certa vez, descia sozinho no elevador da Casa e deu em cima da simpática assessorista. Insinuava-se aqui, bolinava ali e a moça sempre na retranca. Nisso, abre-se a porta do 4º andar. De pé, para entrar, o senador Mário Covas e o potiguar José Bezerra Marinho. No ar, ainda, um cheiro de assédio, quando Covas, raposa velha, pergunta ao colega: “Crau, Lavô”!!. Resposta do nosso paquerador: “Não, senador. Semi-crau!!”.

03) Com relação ao sexo oposto, todos sabem que Lavô era um cortejador que nunca perdeu uma parada. Certa feita, em Brasília, uma coroa altamente “reboculosa”, insistiu tanto, que acabou convencendo o então senador a assistir uma apresentação de certo tenor nacional. O moço era uma cópia fiel do grande Pavarotti. Lavô não se ligava muito nisso. Sua ligação era o olhar fixo nas pernas da loura. O rapaz cantava: “Con te, partiró, il mondo, etc.” A companhia quis saber sua opinião: “Não é gostoso, bem?”. O parlamentar da Alta Câmara sugeriu: “Se você acha? Eu também acho. Agora, gostoso mesmo é um forró pé-de-serra lá em Mossoró!”.

04) Acontecia num luxuoso hotel em São Paulo, uma recepção do alto PIB. O então deputado federal Lavoisier Maia, levava seu bom papo para uma linda moça que mais parecia um jumbo alçando voo. Já passava da meia noite. A garota não abria a guarda e ele então apelou para o golpe de misericórdia: “Meu anjo”, Lavô cochichou, “Se surgisse um homem rico, um jovem bonito e outro inteligente, falando em casamento para você, qual escolheria?”. A linda mulher, desesperançada, segurando o copo de um bom vinho, iluminou os olhos verdes: “Na maré que eu estou, até você serve”.


17/07/2020






CINE-TEATRO INDEPENDÊNCIA
Valério Mesquita*
mesquita.valerio@gmail.com

Há mais de sessenta anos passados, surgiu o Cine-Teatro Independência em Macaíba, situado à rua Dr. Pedro Velho. Sua fachada era típica dos cinemas interioranos. Uma bilheteria, uma entrada central para os assistentes rotulados de primeira classe, e um portão de ferro lateral para os frequentadores da segunda classe, que sentavam em bancos, sem encosto, perto da tela cujo ingresso custava quinhentos reis. Era o local da plebe rude, de onde explodiam peidos e bufas monumentais.

A exibição quase sempre era interrompida para uma fiscalização sanitária. Às vezes, um líquido quente e mal cheiroso descia pelo declive do chão para regar os pés de algum desprevenido, aqui e acolá. Palavrões e ameaças competiam com o roteiro do filme, ao vivo. A sessão única começava às 20 horas. Antes, um alto-falante fincado na janela externa superior do prédio desfilava samba-canções e boleros de Nelson Gonçalves, Dalva de Oliveira, Chico Alves, Linda e Durcinha Batista, chamando os aficionados da chamada sétima arte.

Lembro-me que, certa vez, a imensa boca de som quadrada, de madeira, despencou lá de cima, caindo na cabeça de “Abafado”, apelido de um funcionário do cinema que mostrou, com o acidente, a sua predestinação física. Antes do filme, era comum o fervilhar na calçada de vendedores de pitomba, rolete de cana, laranja e os famosos confeiteiros: drops, buzy, cigarros e chicletes que terminavam grudados na cabeça dos meninos. De repente, oito da noite. As luzes do salão se apagam. Três batidas sonorizadas e compassadas, acompanhadas de gritos histéricos da platéia, indicavam o início da sessão. Vem, primeiramente, o chamado “complemento” ou um desenho animado. Era o “jornal movietone” com notícias estrangeiras, principalmente dos Estados Unidos, narradas em português, focalizando a guerra na Coréia ou atrocidades do nazismo. Com o tempo veio o canal de notícias brasileiro que sempre terminava mostrando um clássico do campeonato carioca. Os assobios se intensificavam com a exibição exaustiva de propagandas de outros filmes. Aí uma voz anônima e entendida surgia do fundo do cinema: “O filme vai ser curto”, “Vi-se”, “Roubaram a fita!”. Após o filme, começa a série e, mais um capítulo eletrizante para a sofreguidão dos admiradores. 

Da minha infância esse foi um mundo mágico, encantado, desaparecido. Relembro tudo e todos. O velho prédio, que depois ainda nele funcionou o Cine Universal, foi se desfigurando aos poucos: supermercado, loja de automóvel, Igreja Deus É Amor, etc. Daquele tempo mítico, restou Manoel Corcino, seu antigo proprietário que quando passa na rua, tal como a canção de Noel Rosa, faz “reclame” do saudoso cine.



13/07/2020


Amados e maltratados
Kenneth Clark (1903-1983) escreveu um livro intitulado “Animals and Men: their relationship as reflected in Western art from prehistory to the present day” (Thames and Hundson, 1977). Segundo o autor, o fez a pedido da World Wildlife Fund – WWF. Bendito pedido. O livro, com mais de duzentas imagens de arte variada, muitas delas coloridas, é belíssimo. Forma e conteúdo. O meu exemplar, já usado, comprei em um dos sebos da Oxford Committee for Famine Relief – Oxfam. Bendito o que semeia livros, arte, ecologia e caridade.
Para além da análise da arte apresentada, uma das principais sacadas de “Animals and Men” é a afirmação, em forma de polida denúncia, de que “nós [a humanidade, frise-se] amamos os animais, nós observamos eles com deleite, nós estudamos os seus hábitos com uma curiosidade crescente; e nós os destruímos”.
De um ponto de vista histórico, Kenneth Clark primeiramente nos recorda que os homens vêm sacrificando animais aos deuses por milênios, quase como se fosse um dos nossos mais antigos instintos. Isso vem desaparecendo, é verdade, com algumas exceções, inclusive entre nós, infelizmente permitidas pela nossa Suprema Corte (no RE 494601/RS). Esse tipo de oferenda não passa de uma alucinação de grupo. Em nada ajuda na nossa relação com o Criador. E espero que, logo, qualquer um que realize esse tipo de sacrifício seja considerado menos como um louco e mais como um criminoso.
E os homens também maltratam animais em jogos e festividades. As clássicas arenas romanas, com os seus jogos para deleite dos instintos cruéis dos espectadores, são exemplos acabados desse tipo de maus-tratos. Nos dias atuais, é a tourada espanhola o caso mais badalado. Eu já assisti a tal espetáculo. Ele é covarde – pelo que fazem com o animal antes de o “matador” entrar em cena – e cruel. Bom, temos a nossa vaquejada. Mais uma estupidez.
A caça por esporte, legalizada ou não, ainda existe. Segundo Kenneth Clark, ela “parece satisfazer um instinto humano arraigado e tem persistido de alguma maneira até os dias atuais. Ela começou como uma necessidade; o homem primitivo caçava por comida. Mas quando, a partir do pastoreio e da criação, o apetite humano pôde ser satisfeito de maneira mais estável, a caça tornou-se o que ela é desde então, uma exibição ritualizada de excesso de energia e coragem. Ela tem sido intimamente identificada com status social”. Sofisticadamente bárbaro.
Há quem destrua a fauna e a criação por pura ganância. Direta ou indiretamente. Poluição das águas. Um continente de plástico nos oceanos. Desmatamento e queimadas que matam aos milhões. Cativeiro e contrabando de espécies variadas, muitas ameaçadas de extinção. Criação e abate de animais em terríveis condições. Criação e reprodução de animais domésticos, ditos de raça, em sofrimento, visando apenas ao lucro. E uma imensa população de cães e gatos, desassistida, vagando pelas grandes e pequenas cidades. A lista aqui é infinita.
E há, claro, quem maltrate um animal por pura maldade. Para mim, por estes dias, isso ficou muito claro ao ler a notícia – chocante, para dizer o mínimo – de um cão, em Minas Gerais, que teve as duas patas traseiras decepadas a machadadas. Brutal. Hediondo. Sem perdão.
Bom, se devo reconhecer que os sentimentos humanos em relação aos animais parecem contraditórios (medo, ganância, crueldade e indiferença do lado negativo), eu prefiro olhar para eles com respeito, admiração, deleite e amor. À moda de um Leonardo da Vinci (1452-1519) que, segundo o seu biógrafo Giorgio Vasari (1511-1574), “admirava todos os animais, os quais tratava com grande amor e paciência, e isso ele mostrou com frequência, quando, passando por lugares onde passarinhos eram vendidos, tirava-os das gaiolas e, tendo pago aos vendedores o preço pedido, deixava-os voar pelo ar, dando-lhes de volta a liberdade perdida”. Dizem às vezes que eu perco meu tempo cuidando de bichos. Podem me chamar de sentimental. Renascentista ou contemporâneo. Eu não me importo.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

11/07/2020

Espiritualidade e harmonia
Padre João Medeiros Filho

Nestes últimos meses, o Brasil se voltou intensamente para a questão da saúde. Esta se alicerça em vários pilares: biológico, econômico, social, psicológico, afetivo, religioso etc. Apesar de fisicamente saudáveis, muitos vivem espiritualmente doentes. Há uma polarização e ideologização da pandemia em torno do binômio economia e vida, como se a realização ou a felicidade humana se resumisse nisso. A unidade da pessoa fundamenta-se na íntima comunhão de corpo e espírito. Daí, todas as abordagens do ser humano (inclusive a espiritual) são interdependentes. Do equilíbrio delas dependem qualidade e estilos de vida, relacionamentos e atitudes diante dos desafios. Deus deseja o bem total de seus filhos! Assim sendo, a vivência religiosa é indispensável.
O homem vive em relação com o contexto no qual está inserido. Há condicionamentos que o influenciam: transformações culturais, tecnológicas, critérios de discernimento etc. Quando isso não é assimilado com sabedoria, poderá levar ao adoecimento interior, perdendo-se a serenidade e o equilíbrio. Viktor Flankl, observando as atitudes dos prisioneiros no campo de concentração de Auschwitz, percebeu que quase todos ali entravam com as mesmas condições físicas, mas o processo de definhamento era diferente entre eles. Concluiu que dependia da capacidade de dar sentido à própria existência naquela situação.
A experiência pandêmica provocou forte impacto no comportamento da população. O distanciamento ou isolamento social, o uso de máscara (de certa forma, despersonalizando), a inutilidade sentida por alguns de permanecer em casa atingiram várias pessoas. O medo de contágio, o pânico provocado pelos noticiários divulgando estatísticas de mortes e contaminados à espera de um leito hospitalar causaram sérios danos a muitos. O “pacto pela vida” parece ter esquecido as consequências disto. Não incluiu atendimento espiritual e psicológico dos vitimados e suas famílias. Isso leva ao padecimento do espírito. Cristo advertia: “Temei antes aqueles que podem destruir a alma” (Mt 10, 28).
A enfermidade resulta de uma série de fragilidades. Acontece quando não se consegue preservar as colunas do edifício da existência: referências biológicas, afetivas, econômicas e culturais, convicções religiosas, ideais e sonhos. Em virtude da unidade do corpo e da alma, os males sofridos interiormente, quando não tratados, podem se materializar. São as doenças psicossomáticas, decorrentes de desordens emocionais. Um mal-estar dessa ordem gera alterações internas e externas. Nesse ponto, a religião pode exercer um papel importante, ajudando os fiéis a vencer as dificuldades. No entanto, com o fechamento dos templos, parece que a vida espiritual se restringe unicamente ao culto e à liturgia. Famílias e grupos ficaram confinados, sem suporte psíquico-religioso.
Os relatos bíblicos nos iluminam e fortalecem. O Povo de Deus, orientado pelos profetas e patriarcas do Antigo Testamento, enfrentou a fome no deserto e a solidão do desconhecido. Venceu as pragas do Egito, inclusive a dos gafanhotos (que ameaça voltar). Lembraram-se pouco as palavras da Sagrada Escritura: “O Senhor irá à tua frente e estará contigo, Ele não te deixará nem te abandonará” (Dt 31, 😎. Careceu maior entrosamento das autoridades civis e religiosas em função do bem-estar dos fiéis. Um “pacto pela vida” não pode deixar de lado a espiritualidade do ser humano, qualquer que seja a sua crença. Participantes das missas do Mosteiro de Santana lamentaram: “Calaram-se os sinos das igrejas. Silenciaram os toques de esperança e fortaleza, dons divinos, emanados da vida em comunidade pela Eucaristia e Palavra Sagrada”.
Urge ensinar às pessoas a cultivar a capacidade de filtrar o negativo. Jesus, após a Ressureição, aparece aos discípulos, animando-os: “Não tenhais medo” (Mt 14, 27). Aliás, as palavras proferidas pelo anjo a Nossa Senhora – no nascedouro do cristianismo – são de encorajamento e paz: “Não temas, Maria” (Lc 1, 26). Por outro lado, infelizmente depara-se com os necrófilos. Cristo, jamais disse: “Eu sou a morte”. Afirmara: “Vim para que tenham vida, e a tenham em plenitude” (Jo 10, 10). Assim, deve-se crescer na paixão pela beleza da vida. É preciso insistir. A fé ajuda a curar. É terapêutica e confortadora. Por isso, disse o Mestre à mulher sofredora: “Coragem, filha! Tua fé te salvou. E ela ficou curada”! (Mt 9, 22).


MACAÍBA: CIDADE DOS MIGRANTES

Valério Mesquita*
Mesquita.valerio@gmail.com


Marcadamente, desde o século XIX, Macaíba, antes Coité, recebeu caudalosas correntes migratórias de dois polos emissores do Nordeste: Paraíba e Pernambuco. Tempos atrás, a TV Globo esteve em Macaíba e em Parnamirim a fim de pesquisar e registrar esse fenômeno que ocorre na área metropolitana de Natal. O fato de chegar a preocupar uma emissora desse porte ao ponto de incluir no programa “JN no Ar” os dois municípios no nível de uma investigação social reveste-se se singular importância: saber a razão e o porquê do que está atraindo brasileiros de outras regiões para cá. A reportagem apurou que hoje, nas “vizinhanças de Natal condomínios brotam mais rápido do que o mandacaru no sertão”.

Vê-se que a expansão imobiliária é um dos motivos para isso, somado a estatística de que, nos arredores de Natal, quatro cidades recebem em média vinte e oito novos moradores por dia. Investimentos públicos e privados têm abastecido a locomotiva de aumento da população. Até a indústria petrolífera, segundo a reportagem global, que gera trinta e sete mil empregos no estado, muitos escolhem as proximidades da capital para residir, apesar do engarrafamento do transito e a superpopulação da região metropolitana. Macaíba – vocacionada há dois séculos para o comércio e a indústria – as ruas centrais mais parecem um “mercado persa” ou uma Babilônia de transeuntes, automóveis e motos. As residências que conheci em um passado recente, foram transformadas em pontos de comércio, até nas calçadas, impondo-se aí a descaracterização física de sessenta, cinquenta anos atrás.

Quando visito a minha terra eu não me revejo mais. O “capitalismo” emergente transformou-a numa legião estrangeira. Ninguém conhece ninguém. São raras as fisionomias e olhos que refletem a cidade que vivi. Daí me preocupar com a preservação de sua memória histórica para que não venha perder a sua identidade. Todavia, entendo que é o preço alto da proximidade das cidades com a capital. Progresso desgovernado. Tudo começou, assinaladamente, com Fabrício Gomes Pedroza, fundador da cidade de Macaíba, em 27 de outubro de 1877. Antes, se chamava Coité (outra palmeira). Era o reduto da aristocracia rural fincada pelo coronel Estevão Moura no Engenho do Ferreiro Torto. Ocorreu aí o choque inevitável da atividade comercial chantada pelo pernambucano Fabrício no monte dos Guarapes e o latifúndio rural dos Moura que abrangia São Gonçalo e Macaíba. Comércio levou a melhor. Estava decretada a sua vocação econômica. 

Daí para frente, todas famílias que escreveram a sua história na vida municipal, os pioneiros vieram da Paraíba e de Pernambuco. Os Albuquerque Maranhão, os Castriciano de Souza, os Freire, os Mesquita, os Tavares de Lyra, os Chaves, os Garcia, os Maciel, os Alecrim, os Leiros, os Curcio, os Meira Lima, os Andrade e por aí, centenas delas que ingressaram na lide comercial, industrial, cultural, política e jurídica. Todos os macaibenses que se tornaram ilustres depois provieram dessas origens migratórias patriarcais. No século XX, da segunda metade em diante, dezenas de macaibenses originários dos citados troncos hereditários, igualmente geraram filhos ilustres, principalmente, no ramo do comércio. Até na política, Macaíba é um eldorado de correntes migratórias. Quem souber, pode, de per si, declinar quantos prefeitos e vereadores oriundos de outras plagas já comandaram o poder público local, o que reflete o caráter volúvel e também migratório do seu eleitorado.

(*) Escritor.




09/07/2020



Colhendo lírios nos campos do Senhor
Tomislav R. Femenick - Jornalista

Apesar de alguns acontecimentos tristes (a guerra fria, a guerra mais do que quente do Vietnã, os assassinatos de Kennedy e Martin Luther King, por exemplo), a década de sessenta do século passado talvez tenham sido os melhores anos da história recente. Os estudantes e os movimentos negros e feministas lutavam por direitos justos, que lhes eram negados, as ciências deram um tremendo avanço qualitativo e quantitativo. Iuri Gagarin, um astronauta russo, descobriu que “a terra é azul”. E um outro, norte-americano, Neil Armstrong, pisou na lua dando “um pequeno passo para um homem, um gigante salto para a humanidade”. O homem desceu ao piso dos oceanos, desenvolveu as bases da mecatrônica e do raio laser, descobriu a pílula anticoncepcional e sintetizou o DNA, entre outras grandes facetas.
Elvis, os Beatles, os Rolling Stones e o festival de Woodstock – e lá estavam Jimmy Hendrix e Janis Joplin – puseram a música popular de ponta cabeça. No Brasil, Chacrinha se comunicava com as massas, Roberto Carlos liderava a Jovem Guarda, a Bossa Nova se consolidava, a Tropicália (de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Rogério Duprat e Torquato Neto) e os velhos e os Novos Baianos renovavam o cenário musical brasileiro. A música que antes era só para se ouvir e dançar, agora mexia com o corpo e com a mente.
Enquanto isso, aqui a província continuava quase que totalmente provinciana. Câmara Cascudo, Verissimo de Melo e uns poucos mais eram a exceção que confirmava a regra. Ponta Negra era uma praia longínqua (não havia a avenida Roberto Freire e a Via Costeira), habitada principalmente por pescadores. As praias do Meio, dos Artistas e Areia Preta eram os lugares de encontro da juventude adoradora do sol e das ondas.
O Grande Ponto – onde tudo acontecia ou onde tudo era comentado – funcionava a todo vapor, Aluízio Alves trazia inovações em seu governo, mas a política de compadrio ainda imperava, a televisão era um sonho, os cines Rio Grande e o Rex eram os centros de diversões e na Confeitaria Cirne, ali na rua João Pessoa, tomavam-se umas “estupidamente geladas”, enquanto se jogava conversa fora. No “high society” tupiniquim imperavam o América e Aero Club.
Foi nesse ambiente que apareceram dois nomes no jornalismo natalense. Paulo Macedo, no Diário de Natal, e Jota Epifânio, na Tribuna do Norte. Eles dominavam a sociedade local, noticiando o que era importante e ditando o comportamento da alta cúpula da cidade. O meu amigo Jota Epifânio faleceu em 1999 e o meu amigo Paulo Macedo, na semana passada.
Conheci Isaac Faheina de Paulo Macedo no final dos anos 1950, porém somente firmei amizade com ele na década seguinte, quando ambos trabalhávamos no Diário de Natal; ele como cronista social e eu como repórter correspondente. Nessa época ele tinha duas atuações marcantes: a Festa das Personalidades e os concursos de Miss Rio Grande do Norte, ambas realizadas anualmente. Com a evolução dos tempos, sua coluna foi se afastando dos assuntos sociais e, mais e mais, tratando de política, do mundo empresarial e, principalmente, de cultura. Tinha uma perspicácia notável para descobrir fatos novos ou para dar nova luz a assuntos latentes. Assim, foi se distanciando do pouco relevo da crônica tão somente social e adentrando por campos mais sólidos do jornalismo. Paralelamente, começou a estudar e a publicar matérias sobre automobilismo.
Como não poderia deixar de ser, ocupou cargos na administração pública. Foi chefe de gabinete do prefeito Djalma Maranhão, secretário de turismo da Prefeitura de Natal e presidente da Fundação José Augusto. Integrava o Conselho de Cultura do Estado e era membro da Academia Norte-Riograndense de Letras, onde ocupava o cargo de vice-presidente, e compunha o Conselho Estadual de Cultura. Apresentava um programa de televisão, Sala Vip, e publicou vários livros.
Fui seu companheiro no Rotary Club de Natal Sul, para onde fui por ele levado há mais de quinze anos. Tanto no clube a que pertencíamos, como na governadoria do Distrito (que engloba o Rio grande do Norte, a Paraíba e Pernambuco), seu nome era referenciado como um dos grandes possuidores de um cabedal de conhecimento sobre a filosofia rotária; sua lógica, suas regras, seus regimentos.
Paulo Macedo era, o que se poderia dizer, um homem de fino trato. Voz mansa, nunca se alterava. Falava de coisas relevantes e fugia de assuntos constrangedores. Nunca o vi detratar ou mesmo falar com reticências sobre alguém.
Desde o fechamento do Diário de Natal e de O Jornal de Hoje, em Natal, e da Gazeta do Oeste e O Mossoroense, em Mossoró, Paulo Macedo mostrava preocupação com as perdas que isso significava para o nosso Estado. Um povo que não lê não tem intelecto, não tem saber, não tem alma. E o jornal (notadamente o impresso) é a porta de entrada para isso, pois noticia e explica – principalmente explica – os fatos, os atos e as ocorrências.
Era assim o meu querido amigo Paulo Macedo. Teria muito mais a dizer sobre ele, mas, abalado pelo seu falecimento, somente soube dizer pouco desse pequeno grande homem, que agora está colhendo lírios nos campos do Senhor.




CENTENÁRIO DE NOILDE RAMALHO Daladier Pessoa Cunha Lima Reitor do UNI-RN Em um dos seus famosos Sermões, Padre Antonio Vieira (1608-1697) escreveu: “Morrer de muitos anos, e viver de muitos anos, não é a mesma coisa. Ordinariamente, os homens morrem de muitos anos, e vivem poucos. Por quê? Porque nem todos os anos que se passam se vivem: uma coisa é contar os anos, outra vivê-los; uma coisa é viver, outra durar. (...) Enquanto agimos racionalmente, vivemos; o demais tempo, duramos.” Quanta sabedoria existe nessas palavras do Padre Vieira, escritas cerca de quase quatro séculos atrás, mas que são atemporais. A vida de Noilde Pessoa Ramalho foi não somente longeva – 90 anos – mas foi, sobretudo, vivida intensamente, incansavelmente, tendo como guias a fé em Deus e o amor à Educação. Nasceu em Nova Cruz-RN, a 19 de julho de 1920, e faleceu em São Francisco do Sul-SC, em 25 de dezembro de 2010. Com a idade de 15 anos, veio da cidade onde nasceu para ser aluna interna da Escola Doméstica de Natal. Após concluir o curso, em 1940, passou logo às funções de professora, até 1945, quando recebeu convite do Presidente da Liga de Ensino do RN, Dr. Varela Santiago, para assumir a Direção da ED, função que exerceu por 65 anos. Foi uma missão grandiosa em tempo e nas incontáveis realizações, a maior parte no campo educacional. Projetou a ED no âmbito nacional e criou uma escola mista, o Complexo Educacional Henrique Castriciano, em 1987, ambas mantidas pela Liga de Ensino do RN. Da sua inspiração de educadora integral, nasceu a ideia de criação, também pela Liga de Ensino, da Faculdade Natalense para o Desenvolvimento do RN – FARN, instalada em 1999, transformada no Centro Universitário do RN – UNI-RN, unidades de ensino sob o manto da qualidade acadêmica. Em 2004, lancei o livro Noilde Ramalho – Uma História de Amor à Educação, com 565 páginas, biografia dessa figura humana singular e inesquecível. Nesse livro, constam depoimentos de algumas pessoas ilustres da terra, as quais conheciam a história da vida da querida educadora. No transcurso do centenário de Noilde Ramalho, trago aqui trechos colhidos de quatro desses depoimentos, cujos autores também já partiram para a eternidade. Na “orelha” do livro, o registro do escritor, poeta e pintor Dorian Gray Caldas: “A Professora Noilde Ramalho é referência nacional. Méritos todos. Reconhecida por mais de uma geração; elegância e cultura, discernimento, doação. Assim é este livro, harpa sensível, harmoniosa, solidária, som e luz, encantamento.” O Cardeal Dom Eugênio de Araújo Sales escreveu: “Há pessoas, como Noilde Ramalho, que avançam em idade e em virtudes.” A escritora Ana Maria Cascudo Barreto assim se expressou: “Noilde é personagem permanente na minha galeria emocional. Seu porte de rainha é suavizado pelas flores perfumadas da ternura, recolhidas daqueles a quem dedicou atenção profunda e diária.” De Vingt-Rosado e América Rosado, escritores: “Singular personalidade, Noilde Pessoa Ramalho, na ótica dos autores, é a maior mulher do Rio Grande do Norte, depois de Nízia Floresta.” Em face das limitações decorrentes da Covid 19, a Liga de Ensino do RN, sob a digna presidência do Dr. Manoel de Medeiros Brito, adiou as celebrações alusivas ao Centenário da professora Noilde Pessoa Ramalho, mas espera realizá-las ainda em 2020. Texto publicado na Tribuna do Norte em 09/07/2020.
A nossa insignificância
Carl Sagan (1934-1996) – astrônomo, físico, biólogo, escritor, ativista e outras coisas mais – foi um dos maiores divulgadores científicos do século XX. Autor de muitos livros, para lá de vinte, ganhou um prêmio Pulitzer com “Os Dragões do Éden” (“The Dragons of Eden”, 1977). Seu romance “Contato” (“Contact”, 1985) foi adaptado para o cinema, em 1997, com título homônimo, tendo a bela Jodie Foster (1962-) no papel da protagonista. Cuidando de um tema caro ao autor, o nosso contato com extraterrestres, o filme fez sucesso. Mas acredito que Sagan é hoje especialmente conhecido, para além das suas contribuições para a ciência, pela série “Cosmos” (“Cosmos: a Personal Voyage”), de 1980, da qual ele é um dos roteiristas e o apresentador. A série deu ensejo a um livro que, confesso, ainda não li.
“Cosmos” segue o modelo das suas primas “Civilização” (“Civilisation”, 1969) e “A escalada do homem” (“The Ascent of Man”, 1973). Treze episódios de pouco menos de uma hora cada. E, como consta da apresentação que possuo, em DVDs, comprada em alguma livraria de Londres, ela “conta a fascinante história de como cerca de quinze bilhões de anos de evolução cósmica transformaram matéria e vida em consciência, de como ciência e civilização cresceram juntos e, ainda, das forças e indivíduos que ajudaram a formatar a ciência moderna”.
Estou agora revendo, encantado, a dita cuja, como havia feito, nos anos 1980, adolescente, com o meu pai. Até sugeri a ele (meu pai) fazer o mesmo. Mas recebi como resposta: “Não, ela está datada”. Não sei de onde ele tirou todo esse conhecimento de astrofísica e da estrutura do DNA para dizer que “Cosmos” está “datada”. Vá lá. Existem mais mistérios entre ele e eu do que ousa perguntar a minha vã valentia. De toda sorte, a minha versão de “Cosmos” é de 2009, restaurada e remasterizada digitalmente, com “science updates” de bônus.
Já consegui assistir a dois episódios. Foi o suficiente para tirar um par de conclusões: a nossa insignificância cósmica e a nossa fragilidade como espécie e como indivíduos. Nesses dois episódios, Sagan, na sua “Espaçonave da Imaginação”, nos mostra um Universo com trilhões de galáxias e viaja dos confins deste (se é que o infinito tem “confins”), explicando as origens das estrelas, dos planetas e de maravilhas mais, passando pelo Grupo Local de galáxias, onde estão a vizinha Andrômeda e a nossa Via Láctea, entrando no Sistema Solar e chegando à querida Terra. Somos um grão de areia na imensidão cósmica. Ele também discute a criação da vida. Das moléculas da vida, especulando se “nasceram” aqui entre nós, na Terra, ou se vieram de mundos distantes. E a origem bioquímica comum de todos os organismos terrestres nos leva à história da seleção natural e da seleção artificial. Genética, replicação e mutação. Caminhamos, alguns ficando no meio do caminho (como os gigantes dinossauros), e chegamos, por sorte e por diferenças, com a nossa inteligência, aonde estamos. Ainda assim, no calendário cósmico, nós humanos ocupamos apenas uns poucos segundos. Somos também insignificantes no tempo. Origem dos mundos e origem da vida, sabemos tão pouco.
Doutra banda, mesmo as nossas mais valiosas conquistas são perecíveis, a longo prazo ou num piscar de olhos. A série fala da escola e da Biblioteca de Alexandria, a mais badalada da Antiguidade, onde estudaram, nos seus papiros, gênios como Eratóstenes (276-194a.C.), Euclides (circa 300a.C.), Arquimedes (287-212a.C.), Ptolomeu (90-168) e, mais adiante, Hipátia (351/370-415), a primeira filósofa e matemática da história. Mesmo guardiã de tanto saber, a biblioteca foi destruída, talvez incendiada. Tudo perece, fato. Embora eu também tenha visto que a história da famosa biblioteca volta no último capítulo da série. Ansioso por lá chegar, na esperança de um renascimento.
Por fim, a própria vida/morte de Carl Sagan nos dá um alerta. Ele morreu jovem. 62 anos. Uma neoplasia na medula. Uma pneumonia oportunista. Nem toda ciência, dele e da medicina, foi capaz de contornar os desígnios de Deus ou do Cosmos.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

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03/07/2020




JOSÉ FÉLIX BARBOSA


Valério Mesquita
mesquita.valerio@gmail.com

Vinte anos são decorridos do falecimento de um dos maiores desportistas de Macaíba. Convivi com ele em várias fases da vida, na lide esportiva. Foi um dedicado, abnegado e incentivador de torneios, campeonatos, desfiles, trazendo à cidade, ao longo de muitos anos, equipes importantes, atletas renomados, autoridades civis e militares. Era a corrida de pedestrianismo Augusto Severo que ele tornou famosa no nordeste, o futebol, o voleibol, o salonismo e tantas outras atividades, as quais nunca mais se viu em Macaíba. 

As manhãs das provas de pedestrianismo hospedavam bandas de música do Exército, da Marinha, da Aeronáutica e da Polícia Militar, numa verdadeira maratona de esporte, cultura musical, congraçamento social e de lazer de raças, luzes, cores e cidadania. Quem realizava tudo isso: um homem pobre, simples e deficiente auditivo chamado José Félix Barbosa. Admirado e aplaudido por uns mas invejado e sabotado por outros, viveu e enfrentou esses ambientes de temperaturas e temperamentos. Exerceu a presidência da Liga de Desportos Amadores de Macaíba por vários anos. A esposa Francisca Amélia foi testemunha eloquente e sofredora da sua luta, auxiliando-o a suprir a dificuldade auditiva para se comunicar com todo aquele mundo turbulento de atletas, times, público, imprensa, espalhados em Macaíba, Natal e dezenas de cidades.

Devemos relembrar dele a beleza de todos aqueles espetáculos que produziu nas ruas de Macaíba, nos estádios lotados e na alegria espontânea que gerou por toda parte. Resgatemos de José Félix Barbosa o estímulo que plantou na juventude do amor à prática do esporte, à crença na “mente sã num corpo são”, afastando muitos do vício e da droga. Ele fez isso em Macaíba ininterruptamente durante décadas. Morreu pobre, esquecido e até injuriado. Quem se atreveu a realizar o que ele fez? Que homenagem de reconhecimento recebeu dos desportistas, das autoridades e do povo pelo muito que ofereceu ao esporte? Vinte anos do seu encantamento nos separa. É hora de Macaíba tributar-lhe a justa e merecida homenagem. Para Félix,
dedico-lhe essa reflexão da escritora Cora Coralina: “O que vale na vida não é o ponto de partida e, sim, a caminhada. Caminhando e semeando sempre”. Macaíba, José, colheu os frutos que você plantou, só não soube ainda agradecer.