A peste do jurista
Justiniano I (483-565) foi imperador bizantino (romano do Oriente) de 527 a 565. Sua fama é enorme. Para o direito, ele é certamente o mais importante desses soberanos. Justiniano foi o compilador – ou mesmo o codificador – do direito romano antigo, com o seu “Corpus Iuris Civilis”, uma monumental obra legislativa e doutrinária composta de quatro partes: o “Código”, o “Digesto”, as “Novelas” e as “Instituições”. Ali está condensado um até então disperso direito, nos mostrando ainda como era o raciocínio e a argumentação jurídica romana (especialmente no Digesto), assim como a sua base principiológica (nas Instituições). Casado com Teodora (circa 500-548), mulher hábil politicamente, o reinado de Justiniano foi uma era de grande atividade, de reformas e de tentativa de expansão do Império, restando ele conhecido, à época, por sua energia e denodo, como o “imperador que nunca dorme”. Ele faleceu em Constantinopla (atual Istambul). E ganhou para a posteridade o apelido de “o Grande”. Merecidamente.
Mas Justiniano teve também os seus insucessos. No direito, inclusive. Justiniano pretendeu que o “Corpus Iuris Civilis” se tornasse a única fonte do direito de então, devendo ser aplicado pelos juízes do seu Império, que estariam proibidos de fazer uso de outras fontes e até mesmo de interpretar/comentar o “Corpus”. Entretanto, à sua época, o “Corpus” teve mais sucesso no Oriente que no Ocidente. No Ocidente de então, dada a conhecida invasão dos bárbaros, sua influência foi menor, tendo apenas voltado à cena no século XII, como referência do chamado “direito comum”, alastrando-se esse prestígio até os nossos dias.
Ademais, embora Justiniano tenha lutado para restaurar a grandeza do Império Romano, estimulando a administração, a indústria, o comércio, as ciências e as artes, ele falhou no que toca ao Ocidente. Ele buscou reconstruir o Império Romano indo atrás de sua porção ocidental, perdida aos bárbaros em 476. Fez isso por razões de ordem econômica e política, mas também por motivos religiosos. Para ele, Roma era a quintessência do mundo católico. Mas não deu.
Muitos atribuem esse insucesso à chamada “Peste de Justiniano”. Uma pandemia. Talvez o primeiro relato de peste bubônica da história, que afetou o Mediterrâneo e o Império Bizantino, especialmente Constantinopla, entre os anos de 541 e 544. Uma das maiores pandemias de todos os tempos, com impactos semelhantes ao da Peste Negra, no século XIV. Falam em até 100 milhões de mortos. Em uma mortandade de metade da população da Europa e de Constantinopla.
Segundo Anne Rooney, em “A história da medicina: das primeiras curas aos milagres da medicina moderna” (M.Books, 2013), vinda do Egito, a peste varreu Constantinopla, “matando até 10.000 pessoas por dia no período crítico – os mortos ficavam pelas ruas, sem serem enterrados, de acordo com o cronista contemporâneo Procópio. Por volta de 600 d.C., a praga matou cerca de 50% da população da Europa”. O império foi gravemente afetado. Depopulação arrasadora. Economia devastada pelo colapso da agricultura. Fome. Tudo isso fez Justiniano perder a esperança de soberania sobre as áreas do Mediterrâneo outrora romanas. Anos depois, isso ainda ajudou na conquista árabe das terras bizantinas no Oriente Médio e na África.
Procópio de Cesareia (circa 500-565), historiador bizantino, citado por Rooney, faz um relato tocante da coisa: “durante esse tempo, havia uma pestilência, pela qual toda a raça humana quase foi dizimada”. Ela “tomou todo o mundo, e arruinou a vida de todos os homens”. E não deixou intocada “nem uma ilha ou caverna nem um encosta de montanha que tivesse habitantes humanos”. Não sei se é exagero poético.
Mas parece ser fato, como assinala Rooney, que a peste foi uma das culpadas “pelo início da chamada Idade das Trevas, quando avanços intelectuais e culturais na Europa aparentemente chegaram a ficar paralisados durante vários séculos, pois os médicos foram incapazes de conter ou curar a doença, e por isso muitas pessoas buscaram conforto na religião”. E se isso se deu no tempo de Justiniano, o Grande, imaginem agora, quando dependemos de homens pequenos.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP