31/07/2021
A EXPANSÃO DO AFETO
Diogenes da Cunha Lima
Afeto é assunto do coração. A afetividade constrói, junto à função motora e à inteligência, o equilíbrio e a harmonia da vida psíquica. Nestes bicudos tempos de pandemia, as manifestações afetivas quase desapareceram. São vedados o abraço, o beijo, e até o próprio “cheiro”, tão nordestinamente brasileiro.
São tempos de expansão. Há trinta anos, o telescópio espacial Hubble provou a ampliação do universo. As fronteiras do conhecimento foram ultrapassadas. Vivemos o crescimento científico e de inovação. As artes estão se expandindo graças à tecnologia. A Inteligência Artificial (IA) ajuda o artista a criar obras de arte, inclusive pintura e poesia. Entretanto, constata-se limitações ao desenvolvimento do afeto positivo.
O Direito busca caminhos para favorecer a saúde mental dos jurisdicionados. Em todo o mundo, a lei tenta acompanhar as modificações da sociedade. A união estável homoafetiva é tão reconhecida quanto a união entre casais heterogêneos. A jurisprudência já estabelece a existência de dano moral por desamor familiar.
O filósofo francês Henri Wallon (1879-1962) provou a não superioridade da inteligência. Ela se interpenetra com as funções motora e com a afetividade. Elucida que a afetividade se expressa através da emoção, do sentimento e da paixão, que, muitas vezes, conjugam-se, interagem. Comparou a Nietzsche que disse: “Sob cada pensamento habita um afeto”.
A qualidade afetiva de uma experiência é a característica que a torna aprazível, desejável, anota o Dicionário Oxford de Filosofia.
O preconceito é o verdadeiro predador da afeição. A humanidade não tem conseguido superá-lo, ou seja, é visível a hostilidade contra os diferentes. É crescente a discriminação contra outro ser humano. Há ações fruto do sentimento negativo por conta de orientação sexual, ideológica, de raça ou etnia, deficiência pessoal, crença, idade, língua. Terríveis são os efeitos da discriminação de torcedores de futebol.
Portanto, tudo se expande, menos o afeto.
A pessoa vítima de preconceito pode perder o prazer do convívio, do sentir-se confortável em seu trabalho e fazer decair o sentimento de utilidade social ou, até mesmo, a própria alegria de viver. Só o conhecimento adquirido na família ou na escola pode transformar a atitude preconceituosa.
Temos de reconhecer que é impossível fugir aos aspectos negativos, os transtornos da existência que nos dão medo, raiva, sentimento de culpa, angústia de viver.
Afetividade positiva é condição essencial à qualidade de vida. Não há felicidade sem afeição. A expansão do afeto positivo, certamente, dará ao homem entusiasmo e gratificação de vida.
Marcelo Alves
AMANTE
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Recebi da amiga e confreira da Academia Norte-rio-grandense de Letras Lalinha Barros, emprestado (e devolverei, asseguro), o livro “Memórias esparsas de uma biblioteca” (Coedição Escritório do Livro e Imprensa Oficial, 2004), do bibliófilo José Mindlin (1914-2010). Genibaldo e Lalinha são meus vizinhos. Em tempos de pandemia, ela me disse: “Vou dar um pulo na porta do seu apartamento. Para emprestar um livro. Você vai gostar”. Eu adorei.
Mindlin, que exerceu muitos papéis na vida – de jornalista a advogado, de empresário a escritor e membro da Academia Brasileira de Letras – foi o nosso mais célebre bibliófilo. E nos dois sentidos da palavra, como colecionador de obras raras e como amante/amigo dos livros. Gente boníssima, portanto. Muito embora, cá entre nós, até para evitar mais gastos de que já tenho com livros e assemelhados, eu suplique, para a minha singela pessoa, ser apenas dotado da segunda qualidade, a de amante (de livros), sem os custos, digamos, do “casamento”.
As “Memórias” de Mindlin são cheias de histórias sobre livros que eu desconhecia. Sobre tipografias, editoras e edições raras. Sobre livrarias, sebos e antiquários. Interessantíssimas. Mas trata-se também de um livro sobre pessoas. Sobre tipógrafos/editores. Sobre bibliotecários. Sobre livreiros. Do Brasil e do exterior. Na verdade, sobre amantes de livros. Afinal, o que seriam destes se não fossem as pessoas para lê-los, mas, também, para guardá-los e adorá-los. Algumas histórias merecem destaque. E aqui o faço indo do mais distante ao mais particular.
Tocou-me a narrativa sobre os livreiros/antiquários ingleses. A Maggs Bros, Quaritch e a Francis Edward, alguns deles situados na Old Bond Street, em Londres, cujos proprietários Mindlin enfaticamente elogia pela honestidade. É uma área que conheço razoavelmente. Morei não muito longe. Mas nunca me apercebi dessas casas. Ou não entendo de antiquários de livros ou eles já haviam fechado as portas no meu tempo. Talvez as duas coisas. De toda sorte, posso assegurar o bom preço e a honestidade dos simples sebistas da capital do Reino Unido.
Adorei as referências a vultos da história “livresca” do Brasil. Como Francisco de Paula Brito (1809-1861), empresário, editor, jornalista, escritor, tradutor, ativista e muitas coisas mais. Foi talvez o nosso maior “tipógrafo” (que, a seu tempo, fazia as vezes de editora). Foi o primeiro a publicar Machado de Assis (1839-1908), e isso já diz tudo. Como Rubens Borba de Moraes (1899-1986), grande bibliotecário, bibliógrafo e bibliófilo. Pioneiro no Brasil nessa coisa de ciência dos livros e assemelhados. Foi nada menos que diretor da biblioteca da ONU, em Nova Iorque. Escreveu uma “Bibliographia brasiliana” (1958), até hoje referência no tema, e o manual “O bibliófilo aprendiz” (1965), entre outros títulos. Como um “irmão mais velho”, Borba legou sua enorme coleção de raridades a Mindlin.
A passagem de Mindlin por Natal, que junta João Cabral de Melo Neto (1920-1999), Zila Mamede (1928-1985) e outras figuras da terra, merece eco. Zila preparava uma biobibliografia do poeta pernambucano. Ela “já tinha feito uma biobibliografia de Câmara Cascudo. Era bibliotecária de profissão, mas seu maior destaque no mundo intelectual brasileiro foi de excelente poeta. Publicou vários livros que mereceram muitos elogios de Manuel Bandeira, João Cabral e Carlos Drummond de Andrade, de quem se tornou grande amiga pessoal. Infelizmente, faleceu ainda jovem, de um colapso cardíaco em pleno banho de mar. (…). Zila, por sua vez, nos convidou para ir a Natal, levando uma exposição de desenhos de Di Cavalcanti que o MAC possuía. Fomos, e através de Zila fizemos outras amizades. Entre elas com Lalinha e Genibaldo Barros, Selma Bezerra e Fran Martins, que há anos vinha publicando uma revista literária – Clan, que eu conhecia mas não possuía”. Turma boa, incluindo meus vizinhos. E fato histórico.
Por fim, comoveu-me a lição: “Não se deve hesitar quando um livro desperta interesse, e é melhor se arrepender de ter comprado do que de não ter”. Há o risco de cair-se na bibliomania, desordem compulsiva de adquirir livros desvairadamente, é vero. Mas também já se disse – e que minha mulher não escute – que a melhor forma de livrar-se de uma compulsão é render-se a ela.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Cuidando da língua materna
Padre João Medeiros Filho
Monsenhor Landim foi nosso professor de português, no Seminário de São Pedro (Natal/RN). Procurava incutir nos alunos amor e zelo pelo idioma pátrio. Explicava-nos com nuances as peculiaridades gramaticais, filológicas e semânticas. Chamava a atenção para os modismos e neologismos (semânticos, lexicais e sintáticos), que fazem parte do processo da criação de uma palavra ou expressão, fruto do comportamento da linguagem humana. Os vocábulos gerados podem provir do português ou de outros idiomas. Os modismos, por sua vez, caracterizam-se por expressões, frases e palavras, cujo emprego é mais recorrente em certos períodos e, depois parcial ou totalmente, esquecidos. Inegavelmente, a língua é dinâmica, adaptando-se aos tempos e às circunstâncias. No entanto, há que obedecer a regras e padrões linguísticos. Os filólogos acatam o uso de neologismos, quando inexistem termos com significado idêntico ou se os dicionarizados não atendem às necessidades comunicacionais. Em geral, busca-se respaldo nos latinistas e etimólogos. Isso contribuiu muito para aumentar nosso gosto e interesse pelo latim.
Cabe registrar que o Rio Grande do Norte foi celeiro de grandes conhecedores da Língua do Lácio. Primeiramente, vale destacar Cônego Estevão Dantas, autor de vários poemas, lápides e dísticos, bem como tradutor de documentos latinos eclesiásticos e civis. Segundo Cônego Jorge O’Grady, o mais talentoso foi Padre Luiz Monte. A ele deve-se o lema de nossa Academia Norte-rio-grandense de Letras: “Ad lucem versus” (voltados para a luz). Em seguida, Dom José Adelino, um dos responsáveis pela revisão linguística dos textos oficiais do Concílio Vaticano II. Monsenhor Emerson Negreiros escreveu uma História do Brasil, toda em primorosos versos hexâmetros, num puro e erudito latim. Antes de sua morte, chegamos a ver vários cadernos manuscritos, contendo o longo e belo trabalho.
No Seminário, fomos alunos de latim de Monsenhor Alair Vilar, ao qual recorria frequentemente o mestre Cascudo em suas dúvidas sobre as Odes de Horácio e outros autores. Como tarefa escolar acompanhávamos nosso docente na tradução dos textos. Certa feita, o grande folclorista potiguar apresentou uma frase atribuída a Horácio: “unguibus albam maculam mendacium facit” (A mentira deixa uma mancha branca na unha), que possivelmente serviu de base para a lenda, analisada e comentada pelo renomado pesquisador, contada por nossas mães e avós, desestimulando as mentiras infantis. Os dermatologistas poderão explicar os tipos de leuconíquia.
O que se pretende com este atalho? Não somos um purista da língua. Este artigo não é uma crítica nem reprimenda, trata-se de um desabafo, diante de agressões sofridas pelo nosso idioma. Procede o dito: “como faz falta o latim!” É preciso maior cuidado com nosso patrimônio cultural, do qual faz parte a língua. Somos cotidianos aprendizes. Entretanto, faz cócegas em nossos ouvidos, quando ecoam certos neologismos, modismos e impropriedades. À guisa de exemplo, citamos o emprego generalizado de “feminicídio”, em oposição a homicídio. Este não significa simplesmente o assassinato de um varão, mas de qualquer ser humano. A palavra latina “homo” não é especificamente masculinidade, mas ser humano (daí humanidade). Etimologicamente entendemos feminicídio como um termo impróprio, pois seria a destruição do feminino e não de uma fêmea. Seguindo-se o mesmo raciocínio e idêntica proposta, ter-se-ia masculinicídio: a morte do masculino. Segundo os lexicógrafos e dicionaristas, matar uma mulher é mulhericídio (variante de muliericídio, do latim “mulier”). Assassinar a esposa é uxoricídio (de “uxor”, correspondente latino de cônjuge) e o marido ou varão, virícidio (da palavra latina “vir”). Assim, feminicídio não seria o termo próprio para indicar assassinato de uma mulher. Hoje é usado indiscriminadamente por muitos em detrimento do termo homicídio. Os etimólogos e filólogos lançam a pergunta: vigendo a ideologia do gênero, como seriam as denominações? O apóstolo Paulo aconselhava os cristãos de Corinto: “Não vos deixeis seduzir, pois as palavras inadequadas podem vos corromper.” (1Cor 15, 33). Homicídio é o termo apropriado, a não ser que se pretenda qualificar o tipo de assassinato. A motivação para o emprego de feminicídio, com o sentido ora adotado e propagado por alguns, atenta contra a semântica. Isaías já advertia: “Os que te guiam podem te enganar e destruir o caminho dos teus passos.” (Is 3, 12).
24/07/2021
EVOCANDO CORTEZ PEREIRA
Valério Mesquita
mesquita.valerio@gmail.com
Relutei muito em escrever sobre José Cortez Pereira de Araújo. Teimava comigo mesmo em relatar a sua odisséia. A travessia do sofrimento político, os algozes, os coveiros do seu governo até a eutanásia dos seus sonhos. Decidi me deter nos instantes felizes que presenciei ao lado de um homem de cultura, de uma
cordialidade que não encobria formas perversas de indignidade e traição.
Meu pai foi seu amigo dileto e colega na Assembléia Legislativa, no período das turbulências entre o PSD versus UDN. O velho Mesquita de pé, altivo e irreverente, apontava o grupo udenista e disparava ironicamente: “Dessa bancada só presta Cortez Pereira!”. A amizade dos dois se alimentava também nos encontros semanais em Macaíba para impressões sobre a política e o inverno, como dedicados proprietários rurais.
Quando Alfredo Mesquita faleceu em abril de 1969, Cortez – a quem o velho vaticinava que um dia seria governador do Rio Grande do Norte – foi escolhido no ano seguinte. Lamentei muito o meu pai não ter sobrevivido para contemplar a face desse dia. No seu governo fui nomeado Subchefe da Casa Civil, tendo ocupado, posteriormente, após uma reforma administrativa, a Coordenação de Assistência aos Municípios e a Diretoria do Departamento de Serviço Social do Estado. Daí, me exonerei para ser candidato a prefeito de Macaíba. Eleito, Cortez Pereira levou a Telern para Macaíba, comparecendo a duas posses: a minha e a de Dix-Huit Rosado em Mossoró. Inaugurou uma agência do Bandern em Macaíba, a Casa do
Agricultor, eletrificação rural, escolas e a alegria de um dia receber em minha casa o rei do baião Luiz Gonzaga. Em 1973, foi padrinho de batizado de minha filha Isabelle.
Relembro, ainda, como seu auxiliar, os
memoráveis discursos e palestras. A da Federação das Indústrias de São Paulo empolgando Amador Aguiar do Bradesco, Mário Amato, entre outros. Era a pregação do “desenvolvimento econômico” do Rio Grande do Norte, das suas riquezas e potencialidades nos porões do PIB da paulicéia desvairada . Recordo a sua altivez ao enfrentar e resistir o autoritarismo do General Meira Matos, Comandante da Guarnição de Natal, que armou estocadas com o objetivo de tirá-lo do governo.
Evoco Cortez Pereira como professor universitário, orador, polemista, deputado estadual, Diretor do Banco do Nordeste, suplente do Senador Dinarte Mariz que encantou o Senado com os seus pronunciamentos em favor do Nordeste e do Rio Grande do Norte. Relembroo Projeto Camarão, do Bicho-de-Seda, do Boqueirão, do turismo (Centro de Turismo, Bosque dos Namorados, Cidade da Criança e a duplicação da entrada de Natal por Parnamirim). Cortez santificado pelo padecimento da dor, mas redivivo na lembrança e na admiração de tantos que conheceram a pureza dos seus sonhos. “Louvar o que está perdido torna querida a lembrança”. Shakespeare.
UM HOMEM FEITO DE BOM HUMOR
Diogenes da Cunha Lima
Vida e obra de Veríssimo de Melo tem sido celebrada no centenário do seu nascimento. Sempre admirável, exerceu eficientemente as funções como professor, antropólogo, jornalista, poeta, cultor de música.
Foi o aluno dileto e parceiro continuador da obra de Luís da Câmara Cascudo. O acadêmico Ivan Lyra lembra que o bom humor, geralmente, é atributo de gordos. Veríssimo era um magro alegre. O Mestre de Natal dizia que ele era tão magro e ágil que, em uma chuva, passava entre um pingo e outro sem se molhar. Cascudo dizia também que ele podia se esconder atrás de um i.
Foi meu amigo-irmão-camarada. Conversávamos, quase todo dia, por telefone, em meu escritório ou na Academia. Chegava a começar um diálogo reclamando: “Você tem uma mania de ...”. Eu rebatia: Calma, amigo, seja civilizado. Primeiro dê bom dia, pergunte como eu estou.
Quando fui nomeado reitor da UFRN, pensei nele como pró-reitor, pois era um grande promotor cultural. Recusou o convite. Preferia dirigir a Imprensa Universitária. Argumentei dizendo que ele ganhava mais como diretor do Museu Câmara Cascudo. E ele: “Você não sabe os meus planos. Vou publicar os meus livros, depois os seus livros e de amigos selecionados”. Contestei: Veríssimo, e os trabalhos da Universidade? A resposta inesperada: “A gente manda imprimir fora”.
O Conselho Universitário aprovou a nossa proposta para fazer Jorge Amado paraninfo de todas as turmas concluintes. O lendário escritor aceitou e acertou a sua vinda à Natal. Na última hora, não pode comparecer, e mandou o discurso para ser lido por Veríssimo perante a assembleia, na noite colorida com professores e alunos concluintes. Notei que o distraído orador “ad hoc” pulara algumas páginas. Reclamei. Ele explicou o “engano”: “Você devia era me agradecer. O seu amado Jorge, esculhamba o Regime Militar e os militares. Você seria o primeiro a ser preso...”.
O primeiro reitor da nossa UFRN, Onofre Lopes, tinha dois assessores culturais: o rígido e impecável professor Edgar Barbosa e o lírico buliçoso Veríssimo de Melo. Edgar levou ao reitor o comportamento do colega que chegava ao cúmulo de comparecer ao expediente cheio de cerveja. Depois de defender o poeta, doutor Onofre apenas sorriu: “Edgar, deixa Vivi viver”.
O livro “Folclore Infantil” alcançou êxito no Brasil e em Portugal. Foi lançado, em sessão solene, na Academia Norte-Riograndense de Letras. Fiz apresentação dizendo que o autor ampliava as pesquisas de Câmara Cascudo. A meu lado, ele, Veríssimo, soprou: “É pouco! ”. Continuei... disse que ele era um notável folclorista. Novamente, ele sussurrou que era pouco. Somente sossegou quando eu afirmei que não iria compará-lo ao Nosso Senhor Jesus Cristo.
Adquiri o terreno com o Baobá de Natal. Escreveu dizendo que, por mais que fizesse, publicasse livros, eu seria apenas reconhecido como: O homem que comprou o Baobá, um pé de pau. Fazia rir, falando com sinônimo picaresco de árvore e a dimensão da minha propriedade.
Veríssimo é uma lição de vida. Ensinava a todos que o bom humor deve comandar as nossas ações.
22/07/2021
Cascudo na Academia de Medicina
Daladier Pessoa Cunha Lima
Reitor do UNI-RN
Para proferir palestras sob o título “Cascudo: uma janela de ser e ver o mundo”, a Academia de Medicina do Rio Grande do Norte teve a honra de receber, na noite de 06 de julho/2021, as pesquisadoras Daliana Cascudo Roberti Leite e Camilla Cascudo Barreto Maurício, Presidente e Vice-Presidente do Ludovicus-Instituto Câmara Cascudo. Em ambiente virtual, as duas convidadas, netas do patrono do Ludovicus, foram fluentes na abordagem do tema proposto, bem como mostraram-se seguras quanto ao conhecimento da vasta e significativa obra de Luís da Câmara Cascudo, a quem o escritor Diogenes da Cunha Lima chamou de “símbolo de brasilidade”. Recebi da Presidente da Academia Selma Jerônimo, e do Vice-Presidente Alexandre Sales, a missão de fazer a saudação às ilustres convidadas, além de coordenar os debates. Foi uma noite memorável vivida pela Academia de Medicina, conforme as próprias palavras da confreira Selma Jerônimo, ao encerrar o evento, no qual palestrantes e participantes interagiram de forma brilhante, descontraída e animada sobre a vida e o legado cultural de um autor que soube reunir erudição clássica com os saberes da alma do povo.
Na saudação que fiz às duas palestrantes, ressaltei o grande mérito de Daliana e de Camilla Cascudo, pois têm a responsabilidade pela preservação e pela difusão do legado cultural do escritor, antropólogo, sociólogo, etnógrafo, poeta, historiador, folclorista e professor Luís da Câmara Cascudo (30/12/1898-30/07/1986). Na gestão do Ludovicus-Instituto Câmara Cascudo, ambas se desdobram para manterem o objetivo principal dessa instituição, missão exercida com muito amor, devoção e conhecimento de causa.
Relembrei que Luís da Câmara Cascudo foi casado com a senhora Dáhlia Freire Cascudo, e o casal teve dois filhos: Fernando Luís e Anna Maria. Fernando logo cedo deixou a casa paterna e se mudou de Natal, enquanto Anna Maria seguiu sempre os passos intelectuais do pai. Formou-se em Direito e integrou o Ministério Público do RN, o Instituto Histórico e Geográfico do RN e a Academia Norte-rio-grandense de Letras. Com a morte de Câmara Cascudo, em 1986, e de dona Dáhlia, em 1997, Anna se viu no dever de tudo fazer para preservar a memória cultural do seu pai, um dos maiores escritores do Brasil, de todos os tempos. Assim, Anna Maria, mãe de Newton, Daliana e Camilla, criou o Ludovicus-Instituto Câmara Cascudo, em 2010, contando com o apoio da família e, em especial, do esposo Camilo Barreto, com quem foi casada em segundas núpcias. Já viúva, em 2015 faleceu Anna Maria Cascudo Barreto e, dessa forma, as filhas Daliana e Camilla Cascudo assumem a Direção do Ludovicus, ou seja, assumem a grande responsabilidade de manterem viva uma das mais relevantes memórias culturais do nosso país, missão que vem sendo exercida com muito amor, preparo e competência. O Ludovicus-Instituto Câmara Cascudo é um orgulho do RN e do Brasil.
Texto publicado na Tribuna do Norte, em 22/07/2021
14/07/2021
Leitura teológica do Auto da Compadecida
Padre João Medeiros Filho
Entende-se por auto uma composição teatral, que remonta à Idade Média. Transita do profano ao sagrado, geralmente de cunho moralizante. Na língua portuguesa, o seu representante mais renomado é Gil Vicente, cuja obra situa-se entre os séculos XV e XVI. No Brasil, o Padre Anchieta introduziu os Autos Indianistas, considerados precursores do teatro brasileiro. Na década de 1950, o monge beneditino e acadêmico Dom Marcos Barbosa procurou divulgar este tipo de dramaturgia, com destaque em “A noite será como o dia – autos de Natal”. Em 1955, foi publicado “Morte e Vida Severina – auto de Natal pernambucano”, de João Cabral de Melo Neto. No mesmo ano, Ariano Suassuna lançou “O Auto da Compadecida”. Segundo os mais próximos, o escritor paraibano, por influência de sua esposa Zélia, abraçou o catolicismo, nutrindo especial devoção à Virgem Maria.
Os personagens da Compadecida são pessoas de moral e ética questionáveis. Verificam-se posturas luxuriosas, avarentas, violentas, soberbas, gulosas, mentirosas e preguiçosas. Trata-se de comportamentos compatíveis com os pecados capitais do cristianismo. Não nos cabe analisar a crítica social do autor. Nossa pretensão é tão somente abordar aspectos religiosos. A peça teatral culmina com o veredicto, após a morte dos partcipantes do drama. Reveste-se de elementos da escatologia cristã. Os envolvidos encontram-se no Além, recepcionados por Satanás, desejoso de enviá-los para “os quintos dos infernos”. Temeroso de ir para o Lugar de Castigo, João Grilo, representando os demais, apela para Cristo, que atua como juiz nesse pós-morte. O tribunal foi instaurado. O Demônio apresenta seus argumentos. Emanuel (Jesus) ouve as considerações. João Grilo recorre a Nossa Senhora, advogada de defesa dos indiciados.
Tudo acontece em sintonia com o imaginário religioso e o devocionário de nossa gente, formados a partir de matrizes catequéticas da colonização cristã-católica europeia. O Diabo acusa. Maria Santíssima vem em socorro dos culpados. Jesus, representante de Deus Pai, é o responsável pela sentença. Conforme a narrativa, nenhum dos personagens possuía um passado limpo e incontestável. Do relato, infere-se que, no juízo final, todos serão transparentes quanto às suas condutas. Estas deveriam ter contribuído para as pessoas serem mais honestas e justas em relação ao próximo. Ariano revela no texto a fragilidade humana, que sensibiliza a Virgem Maria. Esta é a Compadecida, invocada como “Refúgio dos Pecadores” e “Consoladora dos Aflitos”, títulos marianos da Ladainha. A obra literária descreve o cumprimento do julgamento definitivo, inserido na lei da própria vida. A maldade e o pecado são marcas de nosso destino sobre a terra. Isto é um fato – explicável pela religião – que iguala todos os humanos num rebanho de pecadores. Verifica-se neste aspecto a face da doutrina cristã do pecado original.
Ninguém escapa da morte, mas a misericórdia infinita de Deus resgata o destino de cada um na outra vida. Todos carregam seus erros e serão julgados pelo que fizeram de suas existências. A morte é o umbral pelo qual ter-se-á uma consciência mais nítida do que se fez, enquanto peregrino neste mundo. A perspectiva literária desenvolvida é suficiente para afirmar que a obra pode ser lida sob um enfoque teológico. No desfecho do julgamento, o autor esboça traços de Mariologia, especialmente de Nossa Senhora Medianeira. Após a intercessão da Mãe Celestial em favor dos acusados, Jesus os libera da condenação infernal. Para Ariano Suassuna “Maria Santíssima é a esperança dos desvalidos e a revelação da ternura divina”.
Por fim, Jesus trava um breve diálogo com sua Mãe: “Se você continuar intercedendo desse jeito por todos, o inferno vai terminar virando uma repartição pública: existe, mas não funciona”. Nesse ponto, Ariano aproxima-se do teólogo jesuíta Teilhard de Chardin, em “Le Milieu Divin”: “O inferno é uma verdade teológica, mas não creio que seja muito habitado, pois a misericórdia divina é infinita”. O teatrólogo revela um Cristo indulgente, compassivo e sensível. Ele se enternece diante dos sofrimentos e dores dos irmãos porque um dia experimentou a maldade e a fraqueza humanas, que condicionam a existência terrena. O saudoso Oswaldo Lamartine, certa feita, confessou-nos: “Vigário, se eu tivesse o amor e a fé de Ariano pela Compadecida, teria muito mais paz interior”.
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12/07/2021
As doenças de Stravinsky
Daladier Pessoa Cunha Lima
Reitor do UNI-RN
Em 1999, a revista Time listou as 100 figuras humanas mais influentes do planeta, durante o século XX, entre as quais constava o nome de Igor Stravinsky. Ele estava no grupo dos artistas, ao lado de Pablo Picasso, James Joyce, Frank Sinatra, Charlie Chaplin, Steven Spielberg, The Beatles e outros expoentes das artes, nas suas diversas formas. No meio desses top 100 da revista Time, apenas um nome brasileiro, o de Pelé, no grupo dos Heróis e Ícones. Igor Stravinsky nasceu a 05 de junho de 1882, numa pequena cidade ao derredor de São Petersburgo, na Rússia, e faleceu em Nova Iorque, a 06 de abril de 1971. Não obstante sua propensão para a arte musical, seu pai queria vê-lo formado em Direito. Somente depois da morte do pai, ele pôde se dedicar à música, graças ao apoio que recebeu do grande compositor russo Rinsky-Korsakov (1844-1908), que fez aflorar o notável talento de Igor Stravinsky.
Por volta de 1910, a estrela de Stavinsky começou a brilhar, quando compôs a peça Pássaro de Fogo, para a estreia dos Ballets Russes em Paris, que alcançou enorme sucesso. O convite para compor essa obra ele recebeu de Serguei Diaguilev (1872-1929), fundador do Balé Russo, homem culto e grande incentivador das artes e da cultura, não somente no seu país natal, a Rússia, mas também na Europa, e, em especial, em Paris. O famoso livro A Night at the Majestic (2006), do escritor inglês Richard Davenport-Hines, refere-se a jantar festivo realizado no luxuoso Hotel Majestic de Paris, em maio de 1922, que reuniu expoentes do Modernismo. Na capa desse livro, constam as figuras de Joyce, Marcel Proust, Pablo Picasso, Igor Stravinsky e Serguei Diaguilev.
A obra de Stravinsky é ampla e de alta qualidade, a começar pelas criações para balé, tais como Pássaro de Fogo, Petrushka, A Sagração da Primavera e Pulcinella. Também é autor de geniais sinfonias, óperas, outros balés, obras de câmara e concertos para piano. Era um cristão convicto, e deixou também peças religiosas, tais como missas, réquiem, com destaque para a Sinfonia dos Salmos 38, 39 e 150.
A revolução russa de 1917 sequestrou os imóveis herdados por Igor Stravinsky, fato que o levou a ser um perene exilado. Na década de 1930, conseguiu cidadania francesa, e, a partir de 1940, tornou-se cidadão norte-americano. Casou-se com a prima Katerine, em 1906, que adoeceu de tuberculose pulmonar. Em 1934, Stravinsky teve o diagnóstico de TP, ou tísica, época na qual ainda não existia antibióticos, porém, com vida longeva, deve ter sido tratado com esses fármacos. De tuberculose pulmonar, além dele próprio e da primeira esposa, também faleceram sua mãe e uma sua filha. Igor Stravinsky foi sepultado na ilha San Michele, em Veneza, ao lado da esposa Vera e dos amigos Diaguilev, do poeta modernista Ezra Pound e de outros nomes famosos.
Texto publicado em 07/07/2021
A COMADRE QUASE CEM
Diogenes da Cunha Lima
A “Peixada da Comadre” é marco nascente da gastronomia
potiguar. A atual administração, sob o comando principal do bisneto
Daniel, cuja gestão contará com outros parentes gestores,
programa a reinvenção do estabelecimento com festividades
comemorativas e realizações culturais, permanecendo a tradicional
comida boa.
Há noventa anos, a “Comadre” servia caldos de peixe no
Canto do Mangue. Sonhava estabelecer-se com uma peixada.
Pediu quatro contos de réis emprestado a Dinarte Mariz. A casa foi
comprada e apropriada à função, sob orientação generosa do
engenheiro Malef Victório de Carvalho. Economizando, dois anos
depois, a nova empresária foi liquidar o empréstimo. Dinarte
recusou: “O que que eu vou fazer com quatro contos? O dinheiro é
seu, minha comadre”.
O cardápio tem sido o mesmo durante todo esse tempo. A
cada dia é renovado o peixe, tirado do mar. São sempre estes:
sirigado, garoupa, bicuda, galo do alto e arabaiana, cozidos ou
fritos. O camarão potiguar é servido frito na manteiga ou em
omelete. Verduras e legumes têm tempero simples, especial.
Acompanham o ouro do pirão, ou o pirão coberto (de pescador).
A empresa se mantém pela participação da família. Os irmãos
ajudam. Na cozinha, Laíse e Lúcia trabalham com verduras e
tempero verde. Servem de apoio Heriberto e Gilberto, saladeiros.
No salão, os prestimosos garçons Davi, Claudio e Jerônimo.
A “Peixada da Comadre” identifica Natal. Tem clientela de
notáveis e visitantes ilustres. Por exemplo, Luis da Câmara
Cascudo (grande incentivador). São lembradas a frequência do
presidente Café Filho, governadores do Estado, senadores,
deputados, dos juristas Seabra Fagundes, Carvalho Santos,
Neemias Gueiros, dos ministros Moreira Alves e Francisco Rezek.
Muitos artistas, entre eles, Fagner e Eva Wilma. Líderes políticos do
interior não dispensavam o almoço na “Peixada da Comadre”
quando vinham a Natal. Desde o chefe João Medeiros, de Jardim
de Angicos, a Florêncio Luciano, de Parelhas.
A “Comadre” passou por crises financeiras até instalar-se
definitivamente na Praia do Meio, Ponta do Morcego, onde é
embalada pelo quebrar das ondas nos arrecifes, com bela visão do
mar. Nas dificuldades, o grupo familiar contou com o apoio de
empresários, amigos e admiradores. Destaco Issa Hazbun, Luiz
Cirne e José Lucena.
O entusiasmado Daniel explica a fortaleza e o êxito da
“Peixada da Comadre”: “O principal tempero é o afeto”.
Da programação para a redesenhada “Peixada”, consta uma
cadeira do “Imortal da Comadre”. Com nome e imagem das
personalidades que ajudaram com afeto, estímulo e presença
constante. Fixado na parede, sob foco, o livro essencial de Luis da
Câmara Cascudo: “História da Alimentação no Brasil”.
Vamos continuar provando o sabor do afeto da quase
centenária “Peixada da Comadre”.
RELEMBRANDO UBIRAJARA MACÊDO
Valério Mesquita
mesquita.valerio@gmail.com
O saudoso jornalista Raimundo Ubirajara Macêdo lançou há vinte anos passados, o seu livro “... e lá fora se falava em liberdade”, na Capitania das Artes. Bira é macaibense nascido em Jundiaí e afilhado de crisma do meu pai Alfredo Mesquita Filho. Como funcionário do antigo Correios e Telégrafos foi colega de minha mãe Nair de Andrade Mesquita ao longo de muito tempo. Os seus pais foram Antonio Corsino de Macêdo e Alice de Almeida Macêdo.
Estudou no Atheneu. Como jornalista esteve em São Paulo onde trabalhou na
Folha, Editora Abril e Rádio Piratininga. Em Natal, deixou a sua experiência e talento na Tribuna do Norte, na A República, no Diário de Natal além das rádios Cabugi e Nordeste. Com Carlos Lima publicou durante alguns anos a revista “Cadernos do Rio Grande do Norte”.
Esse foi o seu livro de estréia. Ubirajara Macêdo sempre foi um homem de idéias que enfrentou com coragem a injustiça social, o arbítrio e o desrespeito a cidadania. No curso exemplar de sua vida
jamais renegou a sua identidade com essas causas revelando-se através de sua pena a presença do humanista, solidário com o seu tempo e atenado ao sentimento do mundo. O título de Cidadão Natalense que a Câmara Municipal lhe conferiu teve a dimensão intemporal do afeto. Foi orgânica pois se integrou a estrutura intelectual e a luta do próprio homenageado em defesa de suas idéias tendo Natal como sua trincheira. Ubirajara Macêdo na lide jornalística foi uma vida
em linha reta. Simples, sem ostentações, submetido a sacrifícios extremos mais teve a sua coerência com sua posição humana e política. É a injustiça quem faz o herói. É a irresignação que acresce o lutar e retempera a luta dos bravos. Daí o seu “... e lá fora se falava em liberdade”.
Por último, lembro Leon Blay: “O sofrimento passa, mas o ter sofrido nunca passa”. Salve Bira Macêdo!
(*) Escritor
11/07/2021
O PROBLEMA NÃO É CHEGAR. É INTEGRAR
Tomislav R. Femenick - Historiador
Volta e meia, deparamo-nos com a velha arenga sobre quem descobriu a América, assunto que agora voltou à arena, por meio de um estudo, efetuado por acadêmicos de uma universidade britânica. Se considerarmos esta parte do mundo apenas como uma região geográfica e o “estado da arte” da antropologia social, o seu descobrimento deu-se pelos povos que primeiro povoaram este espaço. Dessa forma, a verdade sobre os descobridores reconheceria como tais os asiáticos, polinésios, africanos ou quem quer que tenha dado origem aos chamados povos americanos nativos. Alguns desses grupos desenvolveram-se e até criaram civilizações sofisticadas, como os Maias, Incas e Astecas, porém essas foram sociedades estanques, sem comunicação com o resto do mundo. O “descobrir” da América não tem somente o sentido de encontrar. Seu significado maior está em dar a conhecer, revelar, identificar; integrar com o resto do mundo. É com esse enfoque que se deve garimpar na arqueologia cronológica do descobrimento.
Muitos reivindicam a primazia de terem, se não descoberto, pelo menos chegado à América antes dos ibéricos. Não pelo Atlântico, porém pelo Pacífico, os chineses poderiam ter por aqui aportado, muito embora tivessem que vencer os obstáculos das correntes marítimas desfavoráveis e as longas distâncias a serem singradas. A verdade apresentada é um escrito do século V, em que se descreve uma viagem que um monge budista realizou a uma terra com arvores desconhecidas da China, onde havia cavalos e carros. Como na América pré-colombiana não havia cavalos e a roda era desconhecida (Gaibrois, 1946), essa é uma prova desqualificada.
Africanos também podem ter acostado no Novo Mundo antes das navegações espanholas e portuguesas. As verdades são muitas, inclusive as grandes estátuas de pedra dos Maias e estatuetas de barro cozido recolhidas de regiões do México, que têm feições típicas da raça negra. Alguns escritos de autores árabes apresentam verdades diferentes, porém menos sólidas. Abubákar, dirigente muçulmano do reino africano de Mali, teria enviado uma frota para explorar o Atlântico, objeto de curiosidade desde os mais antigos tempos (Ki-Zerbo, 1980; Hart, 1984), para investigar a existência de terras atrás do horizonte. Por volta de 1300, o sultão de Guiné, Mohamed Goa, teria efetuado outra expedição à América (Mellafe, 1984).
Verdade de outro quilate comprova a presença na América de Leif Ericsson, um viking que aqui fundou uma vila na ponta nordeste do que é hoje a Terra Nova, no Canadá, a Vinlândia. A presença dos nórdicos perdurou até 1020 e foi somente um ato de coragem, uma longa viagem por mares desconhecidos, que nada modificou a compreensão do mundo para eles e para ninguém e não resultou em nenhuma consequência histórica. “O mais extraordinário não foi que os Vikings tenham realmente chegado à América, mas sim que lá tenham chegado, e até nela se tenham fixado durante algum tempo, sem ‘descobrirem’ a América” (Boorstin, 1989; Lamarca, 1910/1913; Gaibrois, 1946; Céspedes, 1985). Não há a menor dúvida quanto à verdade da presença viking no continente, como provam os escritos rúnicos feitos em pedra, em Kensington, no estado norte-americano de Minnesota; espadas típicas em outros lugares no norte do continente (Padron, 1981) e o sítio arqueológico de L’Anse aux Meadows, no Canadá. Entretanto, o chamado Mapa de Vinlândia, pertencente à Universidade de Yale – tido como uma prova cabal de que os exploradores nórdicos traçaram mapas do continente, muitos anos antes das grandes viagens ibéricas – é, segundo tudo indica, falso. Análises realizadas pelo Dr. Douglas McNaughton, físico do Smithsonian Institute, evidenciou que somente o pergaminho, sobre o qual foi desenhado o mapa, data do século XV e que ele nada mais é do que uma cópia pouco alterada de outros mapas do século XVI, em uma falsificação realizada no início do século XX (Wilford, 2000). Prova de que é falsa a informação de que vikings mapearam a América, conclui o físico. É, parece que foram mesmo os ibéricos os nossos descobridores e conectores com o resto do mundo.
PS: Para mais detalhes, veja meu livro “Conexões e Reflexões sobre História”.
Tribuna do Norte. Natal, 09 jul. 2021
06/07/2021
A CONSTRUÇÃO DA SOLIDARIEDADE
Diogenes da Cunha Lima
Todos nós somos responsáveis pela preservação da dignidade humana. Há, para tanto, razões jurídicas e filosóficas. A Constituição Federal, em seu artigo primeiro, estabelece a dignidade do homem como fundamento da nacionalidade. Sob outro prisma, é mandamento para quem pensa com sabedoria.
Toda pessoa merece respeito, tem direito à honra, ao exercício dos bons costumes, à vida cultural.
O nosso confinamento, como defesa sanitária, é povoado por sentimentos e emoções, insegurança, medo, ansiedade e depressão. Desemprego. Tudo isso alimenta a consciência da nossa fragilidade, o que incentiva o reconhecimento do outro, a aproximação, bem como nos conscientiza da necessidade de ajuda mútua, independente do nosso “lugar” na sociedade.
A expressão “estamos juntos”, usada como afirmação de cumplicidade amiga, tornou-se planetária, evidenciando que nunca a humanidade esteve tão próxima.
A imprescindível solidariedade há que ser construída na família e na escola. Educar e aprimorar o sentimento dos jovens.
Na crise por que passa o País, podemos observar o crescimento da solidariedade, notadamente nas pequenas e nas mais humildes comunidades. Também se observa movimentos de cooperação das empresas e entre as mais diversas categorias profissionais.
Um belo exemplo foi dado por cem fotógrafos natalenses, sob o tema “Olhar Potiguar”, que doaram a sua arte em favor dos mais necessitados.
A solidariedade pode ser manifestada das mais diferentes formas. Usa-se a doação, o empréstimo, a participação no esforço para a solução de um problema. Até mesmo com um abraço ou um sorriso.
Guardado na lembrança: Uma mulher de mais de noventa anos que veio reclamar dos meninos da rua. Eles gritavam o seu apelido: “Gasolina!”. Ela respondia com todos os nomes feios conhecidos. Meu pai a confortou: “Não se preocupe, você não é Gasolina, você é Maria. Por isso, nada responda”. Ela replicou: “Eu sou uma pobre órfã, não tenho pai nem mãe”. E ele: “Você vai ser uma pobre órfã silenciosa. Porque não é Gasolina. Você é Maria, mesmo nome de Nossa Senhora”.
O confinamento traz consigo, também, o sentimento de solidão, mesmo em meio a outros, na multidão. Contudo, a solidão não é apenas desvantagem. Ao contrário, é, muitas vezes, a razão de ser da criatividade e do melhor uso da liberdade. Sozinho, o homem passa a monologar e nesse diálogo consigo mesmo, reconhece a sua verdadeira função, limitações, o seu destino. Ainda que não atinja a completa felicidade, afinal. É verdadeira a revelação de Tom Jobim quando afirma que “ninguém é feliz sozinho”.
Na prática, o homem não consegue viver isolado. É do seu espírito, de suas necessidades. Assim, comprova o poeta John Donne: “Nenhum homem é uma ilha”.
Até Deus constatou, como está no livro do “Gênesis”, não ser bom que o homem esteja só.
Há grande solidão cósmica, o homem estará sozinho? Jesus ensinou que a Sua casa tem muitas moradas.
Devemos fazer da terra, nossa bela morada, a vida solidária.
Estudante ou aluno?
Padre João Medeiros Filho
Atendendo a solicitações de leitores, revisamos e reeditamos o presente artigo, publicado em 2013, no extinto Jornal de Hoje. Não nos arrogamos o título de mestre em latim ou latinista, mesmo porque somos eternos aprendizes. O interesse e o gosto pelo seu estudo despertaram, durante nossa formação eclesiástica. Sabemos de sua importância na origem do idioma pátrio. Outrora, integrava os componentes curriculares da educação básica. Não obstante a sua relevância e contribuição para a aprendizagem do português, Olavo Bilac exclamou: “A última flor do Lácio, inculta e bela”. Indagado sobre o significado do adjetivo inculta, no primeiro verso do soneto, o poeta parnasiano respondeu: “o termo fica por conta de todos aqueles que a maltratam, mas que continua a ser bela”. O que diria o vate atualmente? Sem o ensino da língua latina, atropela-se ainda mais o vernáculo.
Quantas vezes, deparamo-nos com afirmações e fatos, partindo de modismos e sem base histórica. Surgem do nada e de repente obtêm trânsito livre nos “campi” universitários e até em gabinetes de órgãos educacionais. Adotou-se ultimamente a moda de usar o termo estudante, em lugar de aluno. Tenta-se transformar um sofisma em verdade, consagrando-o como certo, no intuito de convencer incautos. Trata-se do conceito inexato ou distorcido sobre a palavra aluno, divulgado por alguns intelectuais.
A nova conotação vem ocupando espaço. Propaga-se que aluno significa sem luz. Para os adeptos dessa teoria, a palavra é formada pelo prefixo grego “a” (partícula de negação), unido ao elemento “lun”, corruptela de “lumen” (luminosidade). E, por significar ausência de luz, aluno torna-se uma palavra depreciativa e antipedagógica. Assim sendo, não seria apropriado o seu emprego. Cabe lembrar primeiramente que “lumen” é um termo técnico, indicando medida de luminosidade e não designando a luz em si mesma. Nesse caso, a palavra exata seria “lux”. No entanto, convém recordar que em português os vocábulos derivam do acusativo latino. Este, em quase todas as situações, requer a partícula “ad” e não “a”, característica do ablativo na declinação latina. Na hipótese de aluno derivar de “lumen” (substantivo neutro), deveríamos ter “ad lumen” (junto à luz), como é a regra gramatical. No caso de “lux”, ter-se-ia “ad lucem” (perto da luz). No entanto, o étimo aluno não deriva de “lumen” ou “lux”, mas de “alumnus”, já conhecido, antes de Cristo. Significava criança, que se nutria unida a sua mãe. Daí, o sentido figurado. Aluno é alguém vinculado e alimentado intelectualmente por outrem.
De acordo com o professor Ernesto Faria (catedrático de latim da antiga Universidade do Brasil), Cícero empregou “alumnus”, em suas obras “Verrinas” e “De finibus”. Segundo renomados latinistas, etimólogos e lexicógrafos lusos e brasileiros, dentre eles, Antenor Nascentes, padre Augusto Magne, Cândido de Figueiredo, Carolina Michaëlis, Leite de Vasconcelos e Serafim da Silva Neto, “alumnus” provém do verbo latino “alere”, conjugado numa variante da primeira pessoa do plural do pretérito perfeito. O verbo significa: alimentar, desenvolver. Metaforicamente, tomou a acepção de crescimento ou desenvolvimento intelectual. É nesse sentido usado pelo tribuno romano em “De natura Deorum” e nas Catilinárias. Assim se verifica também nos Dicionários da Língua Portuguesa, de Houaiss e Aurélio, bem como no Dicionário Etimológico, de Antônio Geraldo Cunha. Há que se preservar a origem e a semântica do vocábulo, evitando-se que seja proscrito o seu uso secular. Do contrário, resultaria no aviltamento do idioma nacional e empobrecimento da história da educação.
Ressalte-se que na tradição brasileira, nas culturas hebraica, greco-latina e anglo-saxônica, aluno é alguém vinculado a uma instituição de ensino ou a um mestre. Por isso, são consagradas expressões como: aluno do Ateneu, Salesiano, Marista, Diocesano, dos cursos de Medicina, Filosofia, Direito, de Câmara Cascudo etc. Do ponto de vista ético e etimológico, um conceito equivocado é nocivo, pois, além da agressão ao vernáculo, poderá acarretar graves consequências. Certa feita, Dom José Adelino Dantas, exímio latinista, proferiu esta frase: “Sem conhecimento do latim, podemos nos tornar apedeutas e com certa pavonice”. É oportuno citar o apóstolo Paulo “Digo-vos isto para que ninguém vos iluda com discursos enganadores” (Col 2, 4).
O MEMORIAL DE MURILO
Valério Mesquita
mesquita.valerio@gmail.com
Terminei a última página do livro "Testemunho Político" do saudoso jornalista e acadêmico Murilo Melo Filho. Desde os estertores da República Velha (1930) até 1965, foram trinta e cinco anos de dança de vampiros. Nele qualquer leitor aprenderá a redefinir a política, o jogo ambíguo, farsante, da luta pelo poder. Já vi muita coisa na atividade pública ao longo do tempo, mas Murilo desvendou outras facetas com excepcional precisão cirúrgica. Um verdadeiro teatro shakeaspereano no qual, não é a política que é narrada somente, mas o ser humano que é caracterizado nas suas fraquezas, ambições, venerabilidades.
"Testemunho Político" não é apenas a história pedagógica e sequenciada daqueles anos tumultuados mas a exposição caracterológica dos seus protagonistas que Murilo deixou a cargo do próprio leitor descobrir. Depreendi que todos os grandes líderes ou chefes de Estado desse país morreram agarrados a sua própria angústia. Assim, aconteceu com Getúlio, Café Filho, Juscelino, Jânio, Jango, Lacerda, Tancredo, Castelo, Costa e Silva, Médici e Geisel. Quem não diagnosticaria também Figueiredo e Collor como depressivos, angustiados? E até Sarney, Itamar Franco e Temer. E mais ainda, os torturados Brizola e Lula, dignos dos cuidados do Dr. Salomão Gurgel. Isso tudo sem falar nos generais Lott, Denys, Zenóbio da Costa, Kruel, Mourão Filho, Gois Monteiro, Murici e Jair Bolsonaro, todos pacientes dessa república de sobressaltos. A ordenação dos fatos políticos entremeados com a própria história do autor, conferiu um sentido especial e estilístico a narrativa com o selo da autoridade de quem não apenas foi espectador privilegiado da cena, mas, em algumas vezes, protagonista.
Após a leitura, lembrei-me do saudoso jornalista João Batista Machado. A nível de Rio Grande do Norte, ele foi o nosso reporte político, testemunha e analista dos nossos embalos paroquiais e já comprovou isso com o lançamento de três livros. Murilo, veterano no campeonato nacional e Machadinho aqui, no estadual, representavam as duas melhores vertentes jornalísticas do memorialismo político da contemporaneidade brasileira e potiguar, respectivamente. Ambos foram historiadores dessa atividade enfermiça. Sim, porque não posso deixar de crer que todo político é um fronteiriço.
A ambição, a vaidade, corrompem o homem por dentro e por fora. O político recebe poderosas deformações caracterológicas no desabrido jogo pelo poder. Não me julgo nenhuma autoridade nesse assunto até porque fui político, interno também do mesmo hospital. Mas a visão global da política que o livro de Murilo nos resgata ou nos restitui, é de uma dramaticidade inquietante. Aqui, vale, contudo, lembrar a história, me contada pelo professor Alvamar Furtado. Ainda no limiar dos anos sessenta, o Dr. Creso Bezerra, ex-prefeito de Natal, ex-deputado estadual, deixou inopinadamente a política. Indagado pelo seu amigo Alvamar sobre o motivo tão repentino da sua atitude, ele explicou que fora a frase de um matuto da Paraíba. "Dr. Creso", disse o filósofo sertanejo, "política é negócio só para rico besta e pobre sabido".
04/07/2021
Pequeno Tributo ao Café São Luiz
Café São Luiz, tradicional ponto da Cidade Alta, em Natal – Foto: Brechando
Gutenberg Costa – Escritor, pesquisador e folclorista
Hoje, venho lembrar de um finado que não teve o direito a uma missa de corpo presente. De sétimo dia e nem de mês ou ano. Em sua calçada, nem uma vela acesa, bilhetes ou flores de despedidas e lamentos. O sino da catedral nem dobrou. Literalmente, nem choro, nem velas ou fitas amarelas, apenas lamentações dos seus antigos frequentadores. Natal não rima com tradicional. O que eu vi no meu tempo de criança e adolescência, só em raras fotografias em preto e branco. Digo sempre aos mais chegados que na terra em que nasci, só estou vendo escapar fedendo o seu Forte dos Reis Magos, isso porque não é de ferro, como aquela velha ponte ‘rapinada’ que servia de minha saída para Macau e Pendências.
Fico demasiadamente envergonhado quando sou indagado pelos amigos e amigas ligadas a cultura, que vêm a também cidade de Câmara Cascudo: “Gutenberg, aonde fica o tradicional Café da cidade do Natal?”. Assim faço quando chego em uma cidade e procuro pelos seus tradicionais mercados, feiras e Cafés. O que dizer-lhes, sobre tantos monumentos demolidos? Eram particulares? E o nosso velho estádio de futebol ou o Hotel dos Reis Magos? Não tenho motivos sérios para desculpas sobre meu passado quase todo destruído! O que justificar aos meus netos disse tudo? Como ficarei ao mostrar-lhes as fotografias que guardo como velhas recordações do que já existiu da ‘Natal do já teve’…
Demolição do Estádio Machadão, em Natal/RN
Recentemente, o amigo pesquisador César Barbosa, um dos assíduos degustadores do cafezinho fraterno do saudoso Café São Luiz (o finado de quem hoje estou lamentando o desaparecimento nesse meu pequeno relato), me mandou uma foto histórica de 2005, na qual estávamos em uma mesa para um bate papo e cafezinhos, incluindo o professor Normando Bezerra e o folclorista Severino Vicente. Todos ficamos indignados com o descaso aos prédios particulares e públicos, os quais desapareceram nas caladas das noites, sob o silêncio oficial dos que ganham em nome da cultura do município e do Estado. O machado e a picareta não andam sozinhos. Todo crime tem executor, mandante ou indiretamente os omissos. Pilatos preferiu lavar as mãos e por pouco não foi canonizado.
César Barbosa, Gutenberg Costa, Severino Vicente e Normando Bezerra
Arquivo: César Barbosa
Juro que não acreditei em seu assassinato e fui correndo ainda ao Grande Ponto da Cidade Alta, na rua Princesa Isabel, em 2017. Infelizmente encontrei a sua derrocada aos pedaços. Até lembrei na ocasião daquela canção tão triste e realista, cantada pelo grupo Demônios da Garoa, chorando a debandada da saudosa maloca:” …cada tábua que caia, doía no coração…”. Mas, em Natal, parece que não adianta reclamar a mãe do bispo, nem antes ou depois das ferramentas pararem as demolições. Vou sugerir aos meus amigos fotógrafos, um museu da fotografia do que já desapareceu nos últimos tempos. E diga-se que lei no Brasil tem pra tudo. O que talvez não se tenha é uma lei para se criar ‘museus de memórias’ de nossos santuários arquitetônicos e tradicionais de uma cidade beirando seus 500 anos, que existiram há poucos anos.
Demolição do Hotel dos Reis Magos, em Natal/RN
Em cada bairro nosso, centenas de lugares históricos já foram demolidos. Em cada rua, dezenas. Crimes sem ‘BO’, sem processos e, o pior, sem culpados. Eu tenho até medo de ir para a cadeia ao ficar do lado dos tradicionalistas e saudosistas ainda de plantão. Hoje é crime, nessa desgraceira da modernidade até perguntar: O que funcionava nesse terreno de estacionamento? Um edifício? Um Casarão de fulano de tal? Aqui era o Bar do seu sicrano? Era a casa em que nasceu ou morou aquele escritor Beltrano?
Mas o nosso querido finado ‘Café São Luiz’, que em vida, cujo pai em seu registro foi o empresário Luiz Veiga, teve sua história biografada pelo padre e escritor José Luiz Silva (1928-1991). Este religioso irreverente, contou sua história do nascimento até os anos 80, do século passado, em livro intitulado ‘Na Calçada do Café São Luiz’, edição de 1982.
Café São Luiz – Foto: Brechando
Nos anos 70, o amigo padre referido me apresentou a muita gente naquela famosa calçada, entre elas: Chisquito e Chico Traíra. Chico, ex tocador de viola e vendendo seus folhetos em cordel. Chisquito, mesmo com sol forte, óculos de grau bem forte e todo empalitozado, sempre baforando seu inseparável cachimbo.
Várias autoridades foram fotografadas tomando o seu cafezinho, como o governador Monsenhor Walfredo Gurgel. Diz ainda o primeiro historiador que esse já teria nascido no rastro do acirramento político entre Dinarte Mariz e Aluízio Alves: “A Calçada do Café São Luiz é o território livre dos potiguares… é doce escutar os passos da vida. E onde reside a vida? Não é nas calçadas?”.
Governador Monsenhor Wanfredo Gurgel, no Café São Luiz
Reprodução do livro de Zé Luiz (1982)
Não posso esquecer o meu tempo e os amigos que lá me faziam companhia e conversas. Existia o grupo da ‘porrinha’, mas eu como nunca gostei de jogos, ficava na roda das conversas culturais com o intuito de ouvir e aprender. Sei que não dá para enumerar tanta gente boa e, em parte, já saudosa. Ali, naquela universidade realmente democrática, nunca paguei sequer um cafezinho quando o jornalista Eugênio Neto estava presente. Esse distribuía amizade e fichinhas aos amigos.
Fui um dos privilegiados desse e de outros afetos gestos amigos. Ouvi aulas sobre música popular brasileira quando chegava perto do doutor Grácio Barbalho, inclusive depois passando a ser o seu mais novo confrade no centenário Instituto Histórico e Geográfico do RN, em 1997. Ouvi verdadeiras palestras e conferências sobre literatura do RN e mundial.
Marcos Maranhão e Gutenberg Costa, no lançamento do livro
‘Personagens Populares em Natal (1999)
Marcos Maranhão, Gutenberg Costa e Leide Câmara, no lançamento do livro,
na calçada do Café São Luiz (1999)
Aprendi muito com Pedro Grilo, Edmilson de Andrade, Palocha, Osório Almeida, Meroveu Pacheco, Chico Macedo, Francisco Bezerra, Franklin Jorge, Jarbas Martins, Severino Vicente, César Barbosa, Normando Bezerra, Vital Oliveira, Severino Galvão, Catolé, Mery Medeiros, Luiz Rabelo e o guerreiro Miranda Sá, outro pagador contumaz de meus cafezinhos.
Ali perto, comprei alguns poemas feitos na hora do poeta Milton Siqueira. Escutei a rabeca do Zé André, em sua esquina. Quando precisei de um advogado, chamei o Sebastião Soares, que lá vivia falando sobre poetas e suas memórias vividas no Rio de Janeiro. Presenciei desafetos discutirem e quase que se atracando. Ouvi discursos de direitistas e esquerdistas. Tudo depois se transformando em abraços e cafés. O milagre da amizade e respeito visto no passado. Lia os jornais independentes de Osório Almeida, Marcus Otonni, César Barbosa e Astral, entre outros.
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Calçada do Café São Luiz – Arquivo: César Barbosa
A calçada do Café São Luiz era minha espécie de concentração. De lá ia lanchar no pontinho de Zé Treco, fazer compras no comércio e ver as novidades literárias chegadas na livraria dos irmãos Cortez, na rua Felipe Camarão. Foi ponto para marcar encontros e também comprar as bugigangas importadas de Carrapicho: “Esse relógio é suíço legítimo, juro de pés juntos. Essa caneta veio dos Estados Unidos, pode conferir”. Tudo verdade, mas sem nota fiscal alguma. E o diabo era quem duvidava do maior vendedor do mundo, vindo de Pedro Avelino e ainda está vivinho da silva, beirando os 90 anos e, acreditem, em plena atividade comercial.
Naquele finado Café vi Miranda Sá quase chegar ao senado. Zé Luiz quase ser deputado Federal. Osório Almeida e Deodato Dantas quase tomarem assento em nossa Câmara Municipal. Em Natal quem não tem dinheiro ou família ilustre, vira quase. Ali ouvi piadas engraçadas da boca do amigo de infância, humorista conhecido nacionalmente como ‘Espanta’. Recebi aulas de folclore com os mestres Gumercindo Saraiva e Veríssimo de Melo. Tinha sempre de plantão um doido calmo e os contadores de histórias mirabolantes, os quais tinham visto coisas de cem anos passados.
Os escritores Franklin Jorge e Gutenberg Costa, no Café São Luiz (1999)
Muitos amigos vindos de Mossoró, lá eram encontrados, como o fotógrafo José Rodrigues e o historiador Raimundo Soares de Brito, entre outros. E não tenho como esquecer os cordiais atendimentos de duas mulheres que me serviam os cafezinhos e guardavam minhas encomendas que ali iam deixa-las em minhas ausências: Francisca e Ritinha. Duas santas da paciência com tanta gente, com tantos gostos.
Lá, vi inúmeras tardes chegar à prostituta ambulante e desdentada dona Maria Edite, a famosa apelidada Rocas Quintas. A única com esse apelido que toda Natal conheceu até a era de 2000. Esta chegava com um rótulo de um antibiótico e pedindo ajuda financeira, podendo terminar até em sexo, se aparecesse um pretendente. Desde 1959, que nunca ouvi falar em outra pobre Rocas Quintas. E a sua famosa calçada era também apelidada pelos que lá não iam, como a ‘calçada da maledicência’. Papai, que frequentara na Ribeira outro finado Café, o ‘Café Cova da Onça’, dizia-me rindo, que esses ambientes só serviam para aposentados fofocarem…
Eugênio Neto – Foto: blogchicolima
E esse Café do Grande Ponto da Cidade Alta, foi tema de trabalho acadêmico na UFRN, do jovem Augusto Bernardino de Medeiros, que foi além das xícaras, entre 1950 e 1980, o qual me entrevistou, como também vários frequentadores, entre eles, Eugênio Neto e Mery Medeiros. Ali, como o padre Zé Luiz também lancei o meu livro ‘Natal, Personagens Populares’, de 1999, em um sábado, com festa e carnaval comandado pelo saudoso Mainha, me restando dezenas de fotos com muita gente ilustre que ali compareceram.
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Gutenberg Costa e o saudoso músico ‘Mainha’, na calçada do Café São Luiz (1999)
Vou encerrar essa pequena homenagem com um trecho do poema do velho Chisquito do Assu: “… Se acaso o São Luiz fechar-se um dia;/ A boa prosa, cordial, sadia, / Eternizar-se-á numa saudade”. E como dizia minha mãe, que descanse em paz o já esquecido finado Café São Luiz, em nossas memórias! Amém!
Morada São Saruê, Nísia Floresta/RN
O eixo cognitivo da sustentabilidade
Tomislav R. Femenick – Jornalista
Rios, que antes eram fontes naturais de águas límpidas, foram transformados em verdadeiras cloacas a céu aberto, em vertentes de agrotóxicos, e tiveram seus leitos aterrados. Florestas, antes verdejantes, são devastadas e transformadas em campos desnudos de flora, onde os animais silvestres estão ausentes. Mares e oceanos transformados em depósitos de lixo. Lagos que secam, pelo consumo descontrolado das águas que os alimentam. O ar que se respira em certas cidades está carregado de elementos danosos à saúde.
Isso não é catastrofismo. Este é um cenário dantesco do nosso planeta, neste século XXI. Os rios Tietê e Pinheiros, em São Paulo; Pium e Potengi, em Natal; Beberibe e Capibaribe, no Recife, e o canal do Mangue no Rio de Janeiro, são alguns exemplos de vários estágios de transformação de cursos de água em esgotos. O Brasil é campeão mundial em desmatamento de florestas. A Baia da Guanabara recebe diariamente toneladas de dejetos e detritos domésticos ou industriais.
No meado dos anos 1980, estive na região centro-ocidental do continente africano, estudando a antiga rota de escravos que, partindo do sul do Saara, atravessava o deserto em direção ao Mar Mediterrâneo. É uma região extremamente seca e de altas temperaturas, onde o Lago Chade destoa pela sua grandeza. É a única fonte de água potável numa das regiões mais secas do planeta, que possui a terceira maior concentração de água doce da África. Mas está morrendo, seca dia a dia. É tão importante, que é ponto de encontro das fronteiras de quatro países: Chade, Camarão, Nigéria e Níger. Originalmente com cerca de 350 mil quilômetros quadrados; em 1963 tinha 25 mil e hoje tem apenas 1.300 quilômetros quadrados de superfície. Essa redução ocorre paralela aos processos de desflorestamento e desertificação, ocasionados por dois fenômenos: uma enorme redução da quantidade de chuvas nas últimas décadas e o aumento da demanda de água para abastecimento da população e para irrigação, que quadruplicou desde o começo dos anos 1960.
O mesmo problema atinge o Mar Morto, que já perdeu um terço da sua superfície, em um processo que se iniciou em 1960, pelo desvio das águas do Rio Jordão, o maior vertedouro de água no Mar Morto – 60%, por Israel, através do Aqueduto Nacional, e o restante por barragens construídas pela Síria e pela Jordânia. Com a conclusão da Unity Dam, um empreendimento conjunto sírio-jordaniano sobre o rio Yarmuk, maior afluente do baixo Jordão, este poderá ter a sua vazão reduzida em mais 25%.
Em todo o mundo a urbanização da população e o desenvolvimento industrial vêm ocasionando um aumento crescente da emissão de poluentes atmosféricos. Cidades como São Paulo, Belo Horizonte e México são exemplos típicos desse fenômeno. Nas cidades chinesas o problema é bem maior. Nelas o ar que se respira é um dos piores do mundo. Essa poluição atmosférica afeta a saúde de milhões de pessoas, transformando-as em vítimas de doenças respiratórias, como bronquite, rinite e asma.
Londres, quando foi o centro do mundo capitalista e capital do Império Britânico, era também o exemplo marcado da poluição, com a putrefação do Tamisa e o seu célebre fog, um nevoeiro espesso carregado de fuligem. Hoje, Londres e o capitalismo são outros. Tanto os governos dos países capitalistas como as grandes corporações mais conscientes, lutam contra o custo da depredação da natureza. Londres voltou a ser exemplo e hoje é referência pela recuperação da pureza das águas do seu rio e pela quase ausência de poluição atmosférica.
Por outro lado, uma das maiores obras de engenharia do mundo socialista, na finada União Soviética, foi o Canal Volga-Don, ligando o Rio Volga ao Rio Dom. O problema dessa obra gigantesca é que o governo soviético não levou em conta o Mar Cáspio que, entre 1930 e 1978, teve o nível das suas águas do Mar Cáspio diminuído continuamente.
Ambientalista de esquerda ou de direita é balela. Nas questões ecológicas, as posições políticas tradicionais perdem terreno e se transformam em projeções pessoais, desprovidas de base e eixo cognitivos.
Tribuna do Norte. Natal, 04 jul. 2021
01/07/2021
O ATHENEU
LEMBRANÇA QUE O TEMPO NÃO DESFEZ
Valério Mesquita
mesquita.valerio@gmail.com
Naquele tempo, o nosso mundo começava no Atheneu, um nome bonito, sonoro, poético. Era o tempo da felicidade na sua forma mais simples; dos primeiros alumbramentos; dos gestos inaugurais dos amores clandestinos. Falar sobre o Atheneu dos idos 50 e 60, é caminhar numa procissão de relembranças. "Seu Babau, quantas declinações existem no Latim". "Sei não, professor". "Sente, zero. Nominativo, genitivo, dativo, acusativo, vocativo e ablativo." Era o Cônego Luiz Wanderley arguindo o saudoso Raimundo Torquato, apelidado de Babu, mas o padre já declinava no acusativo: "Babau". Vascaíno fanático, só havia um jeito da turma se livrar da terrível chamada oral de latim da segunda-feira: elogiar o Vasco e comentar a sua vitória. No caso de derrota: delenda est Babau! Sem nenhum demérito aos atuais mestres do Atheneu norte-rio-grandense de hoje, mas será que o tempo poderia restituir essa seleção de ouro? Floriano Cavalcante (que ensinava história proferindo discurso); Protásio Melo (que nos influenciou o interesse pelos autores ingleses e americanos); Esmeraldo Siqueira professor de francês (com o seu indefectível charuto, cuja fumaça desenhava no ar os perfis de Hugo, de Daudet, de Vigny, de Balzac, de Gide, etc); Álvaro Tavares (modesto, simples, erudito); Cônego Luiz Wanderley (grande orador sacro e latinista), só para citar aqueles que nos ensinavam diretamente. Nesse universo perdido havia outras figuras inesquecíveis que não travaram contato conosco mas povoaram a mesma amorável galáxia que vai ficar na memória e na moldura do século.
Mensurar o quanto a intelectualidade do Rio Grande do Norte deve ao Atheneu é uma tarefa impossível. Desde o tempo do inexcedível professor Celestino Pimentel, de Alvamar Furtado (o Clark Gable dessa Hollywood Potiguar), Câmara Cascudo (o mais sedutor dos mestres), e toda uma plêiade de professores quase todos absorvidos mais tarde pela Universidade Federal, nos faz deduzir que o Atheneu não foi, apenas, uma usina preparatória e
educadora de gerações mas também de mestres que ajudaram a erigir o edifício de um novo tempo: uma instituição de ensino superior.
O Atheneu de Petrópolis tem o dom da dimensão entre o efêmero e o eterno. Nele há algo mais para se sentir do que para se dizer. O Atheneu é a história de uma fé que se fez realidade. Concebido pelo arrojo arquitetônico extra época, insignes diretores deram vida e estabilidade definitivas ao idealismo renovador do ex-governador Sylvio Piza Pedroza. "Ver bem não é ver tudo, é ver os que os outros não vêem". Nessa frase perfeita de José Américo, Sylvio Pedroza, quem sabe não estaria enxergando longe o embrião
da futura Universidade? Só sei que o tempo respeitou o que nele construiu para depois os próprios mestres, ao longo do tempo, se encarregarem da materialização do seu sonho. Isso porque, é na própria criação que o homem faz descobertas. O mestre Protásio Melo que teve uma vida inteira consagrada ao ensino de gerações, hoje nada "tendo nas mãos que foram pródigas", não viu a hora do silêncio e nem se calou. Abriu as asas de sua pesquisa sobre a História do Atheneu, a história de todos nós. E já entardecia para que se pudesse resgatar esse acervo rico de humanismo e tradição. Só Protásio mesmo, que cresceu nas ervas de Walt Whytm para ainda hoje, nos respingar da água benta de uma aurora, onde foi um dos protagonistas dos mistérios circundantes.
(*) Escritor
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