P R E S E N Ç A A L E M Ã N O B R A S I L (1500)
Gileno Guanabara, sócio do IHGRN
A par dos
interesses comerciais europeus outros que aportaram no Brasil recém descoberto,
ocorreram visitas ocasionais de alemães, em cujas andanças por estas terras deixaram
anotações e preciosidades.
Um deles,
Heliodoro Eoban, descendente de Helius Eubanus Hessus, historiador alemão. Sua
presença ficou registrada em face de sua morte precoce, lutando contra os valentes
tamoios e os aliados franceses, estes sob o comando de Villegagnon, ao lado de Estácio
de Sá, na baía da Guanabara, nos combates travados quando da fundação dos
primeiros núcleos de povoamento da cidade do Rio de Janeiro.
Outra presença alemã foi a de Ulrico Schmidel,
nascido em Straubing, na Alemanha. Foi de sua lavra a “História verdadeira de
uma viagem curiosa na América ou Novo Mundo (Brasil e Rio da Prata), desde o
ano de 1534 até 1554”. A primeira
edição, em alemão, foi dada a conhecer no ano de 1567. Seguiram-se outras
edições, até a edição espanhola do ano de 1836 e desta uma última a tradução
para o francês (1837).
Pelas andanças que fez e dada a
precisão com que pintou a região do Sul da América, ficou tido como o primeiro
historiador do Rio da Prata, reconhecido por Bartolomeu Mitre (Annales del
Museu de la Plata). Em razão das invencionices apavorantes que se divulgavam, e
eram comuns na época, aterrorizando os que aqui viviam, Schmidel reproduziu essas
histórias imaginárias que ouviu falar. Iguais às pantomimas dos relatos, que
estão na “História da Província de Santa Cruz” (1570), obra de Pedro Gandavo, com
referências as figuras dos “Hypupiaras”, monstros que aterrorizavam os
moradores de S. Vicente, visto pelo português Baltazar Ferreira.
Relatos na “História
do Brasil”, de Frei Vicente do Salvador, descrevem coisas fantásticas, mistérios,
como a montanha que alhures trovejava enquanto cuspia pedrarias ao seu redor.
Ou as amazonas, “mulheres guerreiras que dispensavam o comércio de homens”; ou os
“anões que de tão pequenos, pareciam afrontar os homens”. Igualmente o registro
de “gigantes de dezesseis palmos de alto”, que viviam nas matas, como anotou Simão
de Vasconcelos (Crônica da Companhia de Jesus no Brasil).
Não é de admirar, pois, que tais invencionices
e incertezas tenham-se difundido pelo mundo, com referência ao sertão do Brasil.
O próprio Rei de Portugal, D. Manuel I, em carta ao Rei da Espanha, seu sogro (in
História da Colonização Portuguêsa no Brasil), fala que Cabral estivera em
terra com homens que tinham “... quatro olhos: dois adiante e dois detrás. Eram
homens ... que comem os homens com quem têm guerra.” Em ter incluído em sua
obra tais lorotas, a crítica atribuiu a Schmidel a tarja de mentiroso.
Pelos registros, certeza é que Schmidel
chegou ao Rio da Prata, em território paraguaio, soldado e eventualmente
historiador, integrante dos navios de Andaluzia, pertencentes a D. Pedro de
Mendonza, a Martinez de Irala e a D. Álvaro Nunez Cabeza de Vacca. Participou
da captura de índios e, depois, rebelou-se contra as atrocidades cometidas por Cabeça
de Vacca. De Assunção, varou os pampas, rios e matas virgens do Sul, até chegar
a Santo André da Borda do Campo, povoação fundada por João Ramalho. Seguiu
depois para S. Vicente, de onde embarcou para Anvers, na Europa, no ano de
1554, seguindo, afinal, para Straubing, sua terra natal.
Na então
vila de Santo André da Borda do Campo, Schmidel conheceu diversos filhos de
João Ramalho, fundador daquele povoamento, que não lhe causaram boa impressão:
“... deixando este lugar, rendemos graças ao céu por termos podido sair sãos e
salvos.”. O alemão que se deparara com os ferozes tupinambás na viagem ao Rio
da Prata; que enfrentara o poder do todo poderoso Cabeza de Vacca, que terminou
deposto e preso; que atravessou a pé o Sul do continente, até chegar à
Capitania de São Vicente, sentiu-se, finalmente, aliviado do terror que sentiu,
tamanha a ferocidade dos seus anfitriões.
Schmidel, que escrevia “S.Vicenda”,
se hospedou na casa de um dos filhos de João Ramalho. Reconheceu ser o povoado um
covil de ladrões e salteadores: “Havia um João Ramalho, homem, por graves
crimes, infame, e atualmente, excomungado”.
Não foi à toa que Gil Vicente, no seu
“Auto de Devoção”, recitado perante a corte portuguesa (1518), compunha: “Vêdes
outro perrexil e marinheiros sedes vós: ora assim me salve Deus e me livre do
Brasil”.
O primeiro colonizador (1532), Martin
Afonso, trouxera na tripulação 350 criminosos remissos, retirados das masmorras
de Lisboa, e apenas 56 artífices, para povoar as feitorias. Visto assim, era atribulado
o relacionamento que se estabeleceu entre os degredados, náufragos e os filhos
espúrios que já habitavam aqui, os colonos chegados, sesmeiros e os capitães-do-mato;
índios catequisados que chefiavam as bandeiras na captura e contrabando dos demais,
enviados do Porto dos Escravos (São Vicente), para morrer nas minas de prata da
Bolívia e do Peru, através do porto de Buenos Aires. Por fim, foi agregada a ação
dos jesuítas para cá trazidos por Tomé de Souza (1549), que cristianizavam os indígenas
e os tinham por incapazes.
Apesar de tudo, a miscigenação foi maior. Imagine-se
a convivência entre mamelucos paulistas, colonos recém chegados, sufocados pelas
lendas, recalcitrantes diante das condições adversas, ansiosos de enriquecimento
fácil, em busca de ouro e na esperança do regresso, e indígenas hábeis conhecedores
dos mistérios do sertão. O crime menos grave praticado foi o da bigamia. Enfim,
sobre todos pousava a prepotência do poder da Coroa e o poder eclesiástico local
de excomungar. A desordem gerava a própria ordem, a realidade sufocante do
inferno deste fim de mundo.
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