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17/04/2014

1500



           P R E S E N Ç A   A L E M Ã   N O   B R A S I L (1500)

Gileno Guanabara, sócio do IHGRN 

            A par dos interesses comerciais europeus outros que aportaram no Brasil recém descoberto, ocorreram visitas ocasionais de alemães, em cujas andanças por estas terras deixaram anotações e preciosidades.
            Um deles, Heliodoro Eoban, descendente de Helius Eubanus Hessus, historiador alemão. Sua presença ficou registrada em face de sua morte precoce, lutando contra os valentes tamoios e os aliados franceses, estes sob o comando de Villegagnon, ao lado de Estácio de Sá, na baía da Guanabara, nos combates travados quando da fundação dos primeiros núcleos de povoamento da cidade do Rio de Janeiro.
 Outra presença alemã foi a de Ulrico Schmidel, nascido em Straubing, na Alemanha. Foi de sua lavra a “História verdadeira de uma viagem curiosa na América ou Novo Mundo (Brasil e Rio da Prata), desde o ano de 1534 até 1554”.  A primeira edição, em alemão, foi dada a conhecer no ano de 1567. Seguiram-se outras edições, até a edição espanhola do ano de 1836 e desta uma última a tradução para o francês (1837).
Pelas andanças que fez e dada a precisão com que pintou a região do Sul da América, ficou tido como o primeiro historiador do Rio da Prata, reconhecido por Bartolomeu Mitre (Annales del Museu de la Plata). Em razão das invencionices apavorantes que se divulgavam, e eram comuns na época, aterrorizando os que aqui viviam, Schmidel reproduziu essas histórias imaginárias que ouviu falar. Iguais às pantomimas dos relatos, que estão na “História da Província de Santa Cruz” (1570), obra de Pedro Gandavo, com referências as figuras dos “Hypupiaras”, monstros que aterrorizavam os moradores de S. Vicente, visto pelo português Baltazar Ferreira.
            Relatos na “História do Brasil”, de Frei Vicente do Salvador, descrevem coisas fantásticas, mistérios, como a montanha que alhures trovejava enquanto cuspia pedrarias ao seu redor. Ou as amazonas, “mulheres guerreiras que dispensavam o comércio de homens”; ou os “anões que de tão pequenos, pareciam afrontar os homens”. Igualmente o registro de “gigantes de dezesseis palmos de alto”, que viviam nas matas, como anotou Simão de Vasconcelos (Crônica da Companhia de Jesus no Brasil).
             Não é de admirar, pois, que tais invencionices e incertezas tenham-se difundido pelo mundo, com referência ao sertão do Brasil. O próprio Rei de Portugal, D. Manuel I, em carta ao Rei da Espanha, seu sogro (in História da Colonização Portuguêsa no Brasil), fala que Cabral estivera em terra com homens que tinham “... quatro olhos: dois adiante e dois detrás. Eram homens ... que comem os homens com quem têm guerra.” Em ter incluído em sua obra tais lorotas, a crítica atribuiu a Schmidel a tarja de mentiroso.
                        Pelos registros, certeza é que Schmidel chegou ao Rio da Prata, em território paraguaio, soldado e eventualmente historiador, integrante dos navios de Andaluzia, pertencentes a D. Pedro de Mendonza, a Martinez de Irala e a D. Álvaro Nunez Cabeza de Vacca. Participou da captura de índios e, depois, rebelou-se contra as atrocidades cometidas por Cabeça de Vacca. De Assunção, varou os pampas, rios e matas virgens do Sul, até chegar a Santo André da Borda do Campo, povoação fundada por João Ramalho. Seguiu depois para S. Vicente, de onde embarcou para Anvers, na Europa, no ano de 1554, seguindo, afinal, para Straubing, sua terra natal.
            Na então vila de Santo André da Borda do Campo, Schmidel conheceu diversos filhos de João Ramalho, fundador daquele povoamento, que não lhe causaram boa impressão: “... deixando este lugar, rendemos graças ao céu por termos podido sair sãos e salvos.”. O alemão que se deparara com os ferozes tupinambás na viagem ao Rio da Prata; que enfrentara o poder do todo poderoso Cabeza de Vacca, que terminou deposto e preso; que atravessou a pé o Sul do continente, até chegar à Capitania de São Vicente, sentiu-se, finalmente, aliviado do terror que sentiu, tamanha a ferocidade dos seus anfitriões.
Schmidel, que escrevia “S.Vicenda”, se hospedou na casa de um dos filhos de João Ramalho. Reconheceu ser o povoado um covil de ladrões e salteadores: “Havia um João Ramalho, homem, por graves crimes, infame, e atualmente, excomungado”.
Não foi à toa que Gil Vicente, no seu “Auto de Devoção”, recitado perante a corte portuguesa (1518), compunha: “Vêdes outro perrexil e marinheiros sedes vós: ora assim me salve Deus e me livre do Brasil”.
O primeiro colonizador (1532), Martin Afonso, trouxera na tripulação 350 criminosos remissos, retirados das masmorras de Lisboa, e apenas 56 artífices, para povoar as feitorias. Visto assim, era atribulado o relacionamento que se estabeleceu entre os degredados, náufragos e os filhos espúrios que já habitavam aqui, os colonos chegados, sesmeiros e os capitães-do-mato; índios catequisados que chefiavam as bandeiras na captura e contrabando dos demais, enviados do Porto dos Escravos (São Vicente), para morrer nas minas de prata da Bolívia e do Peru, através do porto de Buenos Aires. Por fim, foi agregada a ação dos jesuítas para cá trazidos por Tomé de Souza (1549), que cristianizavam os indígenas e os tinham por incapazes.
 Apesar de tudo, a miscigenação foi maior. Imagine-se a convivência entre mamelucos paulistas, colonos recém chegados, sufocados pelas lendas, recalcitrantes diante das condições adversas, ansiosos de enriquecimento fácil, em busca de ouro e na esperança do regresso, e indígenas hábeis conhecedores dos mistérios do sertão. O crime menos grave praticado foi o da bigamia. Enfim, sobre todos pousava a prepotência do poder da Coroa e o poder eclesiástico local de excomungar. A desordem gerava a própria ordem, a realidade sufocante do inferno deste fim de mundo.

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