Malhação de Judas: Racismo
que virou tradição...
(*) Gutenberg Costa.
Como
todo menino ligado ao catolicismo tradicional de meu tempo, a semana ‘Santa’
era para nós um período muito triste, principalmente, diante das tantas recomendações
de minha saudosa mãe, dona Estela: “meu filho não coma doces, não fique rindo a
toa, não escute músicas, não coma carne, não tome muito banho ou se perfume
demais, não use roupas coloridas... nada de alegria ou vaidade, por que o
Cristo está sofrendo e é o Judas,quem fica sorrindo e
traindo...”. E a alegria mesmo entre a meninada do meu Bairro do Alecrim, era
da meia noite da sexta feira ao Sábado de Aleluia: “Aleluia, aleluia, carne no
prato – farinha na cuia!”.
Dois
divertimentos naquele tempo e que hoje já são raros, são a ‘Serração dos
velhos’, que eu só vi quando criança em Pendências/RN. Todo ano, um grupo de
rapazes ia à porta do velho tio de minha genitora - tio Maneco. Chegavam a sua
casa depois da meia noite da sexta feira, batendo em latas, garrafas vazias e
serrando um pedaço de madeira e gritando-os em coro: “Serra, serra, serrador...
serra Maneco que Judas mandou...". E o meu tio prevenido, abria a porta de
supetão e haja tiros de sua velha espingarda de soca, além de urina já armazenada
em seu pinico, em direção dos zombeteiros. Hoje claramente se observa que
aquela ‘serração aos velhos’, se tratava de um gesto característico da idade
média, costumeiramente feito às caças as bruxas e velhos Judeus. Eram atos
oriundos da famigerada inquisição.
E a
outra ‘alegria’, era a malhação ou queimação de Judas. Essa eu confesso que
participava diretamente. Meu pai Geraldo Costa, doava suas roupas velhas e eu
ia atrás de sapatos velhos, gravata e cabeça de coco seco. Enchia-o de capim ou
papel e em pouco tempo o tal Judas estava pronto para ser pendurado num poste
qualquer da antiga Avenida 1. Agora era só alegria, cuidar para não roubarem
meu Judas e dar-lhe umas pauladas, antes de tacar-lhe fogo no corpo, para está
vingada a traição e morte de Jesus Cristo. O folclore é uma ciência que antes
de tudo é necessário estudar e muito a antropologia cultural e social de um
povo. Ele é tradicional e ao mesmo tempo dinâmico, onde se vê hoje muito
racismo e preconceito arraigado do viver e pensar dos velhos tempos. A força
influenciadora da então Igreja Católica foi preponderante nos costumes, nas
crendices e superstições religiosas do nosso povo. Era normal a ‘vingança
coletiva’, transportada ao boneco de Judas. Era normal a sua queimação e
malhação em fogueiras, árvores, paus e postes. Afinal o próprio Judas havia
cometido o suicídio em uma árvore! Ainda presenciei em Pendências, a leitura de
‘testamentos do Judas’, antes de sua queimação: “...Deixo esses sapatos para
fulano que só anda de sandálias japonesas... deixo esse chapéu para sicrano que
é careca...”.
Câmara
Cascudo, em seu ‘Dicionário do Folclore’, 1979, pg. 418, nos dá uma mostra
desse preconceito antigo: “ – Judeu – permanece no espirito popular a figura do
‘Judeu’ como símbolo da maldade...”. O folclorista Pereira da Costa, em seu
‘Folclore Pernambucano’, 1909, já deixa-nos uma mostra desse antigo racismo:
“Quem cospe em Cristo é Judeu... quem come carne na sexta feira santa é
Judeu...”. Inúmeros folcloristas em suas obras, divulgaram o preconceito racial
e religioso, visto nas expressões populares de nossos antepassados: “ Judeu
errante; Onde o Judas perdeu as botas; Traidor feito Judas; Falso que só
Judas; Mentiroso que só Judas; Beijo
falso de Judas; Judiar, Judiação...”. O grande estudioso da cultura do povo, o baiano
Edson Carneiro, em seu livro, ‘A Sabedoria Popular’, 1968, discorre com lúcidos
questionamentos, essa prática antiga trazida pelos nossos ‘colonizadores’
portugueses, que foi se tornando tradição nas pequenas cidades e vilas do
Brasil até os dias atuais: “...orgia selvagem, uma barbaridade impossível de
enquadrar-se na doutrina do reformador nazareno...Cristão seria perdoar o
traidor, o delator... a necessidade politico-religiosa dessa cerimônia medieval
não tem mais razão de ser...”. Outro folclorista e amigo Ático Vilas Boas da
Mota, publicou um livro só sobre o assunto, intitulado: ‘Queimação de Judas –
Catarismo, Inqusição e Judeus no Folclore Brasileiro’, 1976, onde afirma, com
uma visão atualizada e isenta de preconceitos: “...Ao estudioso do folclore, é
importante vasculhar os arquivos inquisitoriais... deles retirar material
histórico para explicação de muitos fatos que constituem o acervo do
folclore... a transfiguração folclórica da Queimação do Judas é uma das provas
de que o aparato inquisitorial conseguiu moldar a alma popular, incutindo-lhes,
entre ódios e preconceitos, o do Judeu...”.
Caros
religiosos e tradicionalistas, hoje não cabe mais a uma folclorista sério a
divulgação e o incentivo as práticas que estejam relacionadas ao preconceito e ao
ódio. Nem tão pouco as vinganças ás raças e credos. O mundo é ecumênico e múltiplo.
Portanto deve ser observado primordialmente à luz da ética e do respeito. E o
tradicional folclórico de maneira alguma deve ou pode justificar nenhum tipo de
preconceito que ainda permaneça entre nós, embora disfarçado em pleno século
XXI. E todo folclorista sabe muito bem que, o ‘racismo’ é antes de tudo um
imperdoável - crime cultural!
(*)
É presidente da Comissão Norte Rio Grandense de Folclore.
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