10/03/2014

        O REI MALVADO
Por: Gileno Guanabara, advogado

Ao final do século V, a ameaça de guerra com que D. João II, Rei de Portugal, se arvorou para exigir dos soberanos espanhóis uma terça das terras recém- descobertas no Ocidente, resultou na assinatura entre ambos do Tratado de Tordesilhas (1494) e, por isso, afinal, foi possível a existência de uma colônia portuguesa no Sul da América. Esse pedaço foi ampliado pelos bandeirantes e veio a compor o imenso território a que se chamou Brasil.
Não sei a que atribuir o fato de D. João II ter passado à História como o “Príncipe Perfeito”. No entanto, ele foi um psicopata, um assassino cruel, como confessou ao pedir ao Papado a absolvição pelas maldades que praticara.
Relatou com frieza indescritível que atraiu e matou, à punhaladas, D. Diogo, o Duque de Vizeu, seu aparentado, após convidá-lo para ter acesso ao camarim do palácio. O Bispo de Evora, D. Garcia de Meneses, teve pior sorte. O déspota ordenou  - alegando ser de melhor piedade  - que o bispo fosse jogado numa fossa cheia de sapos, para se divertir e se alimentar da carne macia dos batráquios. O sexagenário morreu de fome e pavor. Tal ignomínia, fê-la o malsinado rei, louvando-se no Rei Luis IX, de França, que trancafiou um desafeto numa jaula de ferro, como se presa mantivesse uma fera. Ou a prisão e o envenenamento do Bispo de Safim, D. João Sotil.
O fidalgo D. Fernando, Duque de Bragança, de linhagem nobre, foi atraído e preso em Palácio por D. João II. Acusado de traição através depoimentos forjados, segundo os quais conjurava contra o rei, foi condenado a morte, tendo a cabeça decepada em patíbulo, na praça pública e confiscada a sua fortuna em favor do soberano.
Outra vítima de D. João II foi o Conde de Haro que escapou inicialmente da ira do rei, cuja intenção confessa era extirpar-lhe o coração pelas costas. O Conde fugiu para a Espanha e depois para a França, onde foi achado e assassinado por um sicário, a mando do seu perseguidor.
Aos tantos homicídios cometidos, em número de oitenta, somam-se outros tantos executados a mando, em cadafalso, ao fio da espada, amputações, esquartejamentos, decapitações em praça pública, devorados por feras, como confessou. Para isso, forjavam-se as provas. Os testemunhos e confissões eram obtidos mediante tortura. Na súplica que dirigiu ao Papa Inocêncio VIII e renovada depois a Alexandre VI (Biblioteca do Vaticano, 14/10/1456 – in Hist. Genealógica da Casa Real portuguesa - Antônio Caetano de Sousa, 1746), o soberano malvado, já no leito de morte, confessou as simulações, a falsidade das correspondências, as provas forjadas para incriminação, os falsos testemunhos, a infâmia estendida às gerações futuras das vítimas, a peita impingida aos juízes e o confisco do patrimônio dos condenados. Por isso, Camilo Castelo Branco (Gaseta Literária, Porto, 1868) chamou o Rei João II de “Rei Carrasco”, porque fora cruel, mesquinho e hipócrita.
Trecho da súplica que o soberano dirigiu ao papado, com a confissão das centenas de crimes que cometeu - assassinatos; roubo; prevaricação; suborno; falsos testemunhos obtidos sob tortura; calúnia e sadismo, tal o nível de penúria que impingia às vítimas  - revela sua angústia final, quanto ao futuro que o aguardava no inferno: “... as terras de chistans os publicava por traidores, tomando-os a seus próprios herdeiros e avendo-as dava, e muitos que com temor de sua perseguição fugirão com vitupérios, e cartas defamatórias erão delle, suplicante, perseguidos, e, finalmente outros em Reynos extranhos padecerão morte, e de tal maneira que o Rey, suplicante, confessa que sob calor de título de justiça e por seu induzimento farão mortos oitenta homens ou mais” ... “mas na verdade sua Santidade fora falsamente informado, por cuja causa pede perdão a Deus e a V. Santidade.”
O historiador João de Barros (Décadas. Portugal) informa que Cristovam Colombo ofertou ao Rei criminoso seus planos marítimos de, através de caminho mais curto e seguro, na direção do ocidente, chegar às Índias Orientais. O Rei apelou aos conselhos de astrônomos judeus e de um Bispo de Ceuta que concluíram ser absurda a proposta de navegação. O Rei desconsiderou o projeto e despediu o navegador. Restou a notícia de uma provável tentativa de assassinato de Colombo em Portugal.
Colombo foi recebido em Castela (1484) quando relatou aos reis Fernando e Izabel o seu plano e, por isso, ficou retido. Quatro anos depois, em Granada, após a oitiva dos conselheiros reais, os soberanos espanhóis acolheram a empreitada. As esquadra de Cristovam Colombo, composta de três caravelas, partiu do Porto de Palos, em Andaluzia, no mês de agosto do ano de 1492. Atravessou o Oceano Atlântico e descobriu a América. Como consequência da desdita do Rei João II à proposta de Cristovam Colombo, a América deixou de ser inteiramente portuguesa, de Norte a Sul do continente.

Garcia de Rezende, cronista de época, relatou o remorso que teve o Rei malvado, pouco antes de sua morte. Registrou a sentença que ele mesmo ditou e se lhe reservou em forma de epitáfio: “Não me confortais, que eu fui tão mau bicho que nunca me acenaram que não mordesse”. 

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