O REI MALVADO
Por: Gileno Guanabara, advogado
Ao final do século V, a ameaça de guerra com que D. João II, Rei de
Portugal, se arvorou para exigir dos soberanos espanhóis uma terça das terras recém-
descobertas no Ocidente, resultou na assinatura entre ambos do Tratado de
Tordesilhas (1494) e, por isso, afinal, foi possível a existência de uma
colônia portuguesa no Sul da América. Esse pedaço foi ampliado pelos
bandeirantes e veio a compor o imenso território a que se chamou Brasil.
Não sei a que atribuir o fato de D. João II ter passado à História como
o “Príncipe Perfeito”. No entanto, ele foi um psicopata, um assassino cruel,
como confessou ao pedir ao Papado a absolvição pelas maldades que praticara.
Relatou com frieza indescritível que atraiu e matou, à punhaladas, D. Diogo,
o Duque de Vizeu, seu aparentado, após convidá-lo para ter acesso ao camarim do
palácio. O Bispo de Evora, D. Garcia de Meneses, teve pior sorte. O déspota
ordenou - alegando ser de melhor
piedade - que o bispo fosse jogado numa
fossa cheia de sapos, para se divertir e se alimentar da carne macia dos
batráquios. O sexagenário morreu de fome e pavor. Tal ignomínia, fê-la o malsinado
rei, louvando-se no Rei Luis IX, de França, que trancafiou um desafeto numa
jaula de ferro, como se presa mantivesse uma fera. Ou a prisão e o
envenenamento do Bispo de Safim, D. João Sotil.
O fidalgo D. Fernando, Duque de Bragança, de linhagem nobre, foi atraído
e preso em Palácio por D. João II. Acusado de traição através depoimentos forjados,
segundo os quais conjurava contra o rei, foi condenado a morte, tendo a cabeça
decepada em patíbulo, na praça pública e confiscada a sua fortuna em favor do
soberano.
Outra vítima de D. João II foi o Conde de Haro que escapou inicialmente
da ira do rei, cuja intenção confessa era extirpar-lhe o coração pelas costas.
O Conde fugiu para a Espanha e depois para a França, onde foi achado e
assassinado por um sicário, a mando do seu perseguidor.
Aos tantos homicídios cometidos, em número de oitenta, somam-se outros
tantos executados a mando, em cadafalso, ao fio da espada, amputações,
esquartejamentos, decapitações em praça pública, devorados por feras, como
confessou. Para isso, forjavam-se as provas. Os testemunhos e confissões eram
obtidos mediante tortura. Na súplica que dirigiu ao Papa Inocêncio VIII e renovada
depois a Alexandre VI (Biblioteca do Vaticano, 14/10/1456 – in Hist. Genealógica
da Casa Real portuguesa - Antônio Caetano de Sousa, 1746), o soberano malvado, já
no leito de morte, confessou as simulações, a falsidade das correspondências,
as provas forjadas para incriminação, os falsos testemunhos, a infâmia
estendida às gerações futuras das vítimas, a peita impingida aos juízes e o
confisco do patrimônio dos condenados. Por isso, Camilo Castelo Branco (Gaseta
Literária, Porto, 1868) chamou o Rei João II de “Rei Carrasco”, porque fora
cruel, mesquinho e hipócrita.
Trecho da súplica que o soberano dirigiu ao papado, com a confissão das
centenas de crimes que cometeu - assassinatos; roubo; prevaricação; suborno;
falsos testemunhos obtidos sob tortura; calúnia e sadismo, tal o nível de
penúria que impingia às vítimas - revela
sua angústia final, quanto ao futuro que o aguardava no inferno: “... as terras
de chistans os publicava por traidores, tomando-os a seus próprios herdeiros e
avendo-as dava, e muitos que com temor de sua perseguição fugirão com
vitupérios, e cartas defamatórias erão delle, suplicante, perseguidos, e,
finalmente outros em Reynos extranhos padecerão morte, e de tal maneira que o
Rey, suplicante, confessa que sob calor de título de justiça e por seu
induzimento farão mortos oitenta homens ou mais” ... “mas na verdade sua
Santidade fora falsamente informado, por cuja causa pede perdão a Deus e a V.
Santidade.”
O historiador João de Barros (Décadas. Portugal) informa que Cristovam
Colombo ofertou ao Rei criminoso seus planos marítimos de, através de caminho
mais curto e seguro, na direção do ocidente, chegar às Índias Orientais. O Rei
apelou aos conselhos de astrônomos judeus e de um Bispo de Ceuta que concluíram
ser absurda a proposta de navegação. O Rei desconsiderou o projeto e despediu o
navegador. Restou a notícia de uma provável tentativa de assassinato de Colombo
em Portugal.
Colombo foi recebido em Castela (1484) quando relatou aos reis Fernando
e Izabel o seu plano e, por isso, ficou retido. Quatro anos depois, em Granada,
após a oitiva dos conselheiros reais, os soberanos espanhóis acolheram a
empreitada. As esquadra de Cristovam Colombo, composta de três caravelas, partiu
do Porto de Palos, em Andaluzia, no mês de agosto do ano de 1492. Atravessou o
Oceano Atlântico e descobriu a América. Como consequência da desdita do Rei João
II à proposta de Cristovam Colombo, a América deixou de ser inteiramente portuguesa,
de Norte a Sul do continente.
Garcia de Rezende, cronista de época, relatou o remorso que teve o Rei malvado,
pouco antes de sua morte. Registrou a sentença que ele mesmo ditou e se lhe
reservou em forma de epitáfio: “Não me confortais, que eu fui tão mau bicho que
nunca me acenaram que não mordesse”.
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