Sobre “O sol é para Todos” (III)
Como afirmado nos artigos das semanas passada e retrasada, no filme
“O Sol é para Todos” (“To Kill a Mockingbird”) são tratados, ao lado de
temas de interesse geral, vários aspectos relevantes do Direito, que
valem a pena ser mencionados e, na medida do possível, comentados. Na
semana passada, mencionamos (e comentamos, embora sucintamente) dois
desses aspectos (que classifiquei como “jurídico-performáticos”): o
objetivo do filme de mostrar a dinâmica do sistema judicial criminal
norte-americano e de construir a imagem do advogado ideal, sempre
sereno, dedicado e generoso, na personagem de Atticus Finch
(interpretado perfeitamente por Gregory Peck).
Hoje, como prometido, daremos continuidade à análise do conteúdo
jurídico “O Sol é para Todos” (“To Kill a Mockingbird”), abordando mais
três aspectos (jurídicos) da narrativa, aspectos, desta feita, com
vieses menos “performáticos” e bem mais técnico-jurídicos ou
jurídico-filosóficos.
Comecemos por uma questão jurídica bem específica de “O Sol é para
Todos”, que, em regra, passa despercebida àqueles que assistem ao filme.
Falo da pouco conhecida “Síndrome da mulher de Potifar”, que, num olhar
mais atento, se verifica, está na origem da persecução criminal que
recai sobre Tom Robinson, o trabalhador negro falsamente acusado de
espancar e violentar a jovem branca Mayella Ewell. Para quem não sabe,
consta na Bíblia, no Livro do Gênesis, que José (filho de Jacó) sofreu,
no Egito, da mulher de Potifar (às vezes grafado Putifar), alto oficial
do Faraó, a injusta acusação de que a teria tentado seduzir, sendo, por
isso, indevidamente aprisionado. Desse relato bíblico decorre a referida
“Síndrome da mulher de Potifar” - em linhas gerais, a circunstância,
não tão rara, de alguém acusar falsamente outrem de sedução ou mesmo
estupro, geralmente motivado por uma real rejeição -, “síndrome” essa
que marca, pelo menos é isso que o filme deixa transparecer, o caso de
Tom Robinson e Mayella Ewell.
Passemos a outro aspecto do enredo jurídico de “O Sol é para Todos”,
desta feita uma questão mais geral, que é o pano de fundo
jurídico-filosófico do filme: a tensão entre a
falibilidade/hipocrisia/injustiça do sistema judicial (ou da “justiça
humana”) e a noção, com forte apelo no Direito Natural e na igualdade
entre os homens, do que é a verdadeira Justiça. A absurdez do sistema
legal/judicial (e da sociedade como um todo) racista e desigual, no
Alabama de 1932, é evidente. Como dito no livro “100 filmes: da
literatura para o cinema” (organizado por Henri Mitterand; publicado no
Brasil, em 2010, pela editora BestSeller), “a segregação perfeitamente
legal dessa época é visível no tribunal, onde brancos e negros são
separados - e continuaria em vigor no Alabama até 1964, data do Civil
Right Act, que concedeu os mesmos direitos aos negros. Apesar do empenho
e do arrazoado de Atticus para inocentar Tom, a resistência social e o
ódio racial persistem: o negro necessariamente é culpado”. Transformado
em “filme de acusação” (do racismo, do preconceito, de uma justiça falha
etc.), “O Sol é para Todos”, de certa forma, sobretudo quando nos
lembramos da fuga (para a morte pelas balas da polícia) de Tom Robinson,
nos “convida premonitoriamente a abraçarmos o preceito escrito por
Martin Luther King na prisão de Birmingham, em 16 de abril de 1963: 'A
obediência às leis justas não é apenas um dever jurídico, mas também um
dever moral. Em sentido inverso, todos estão moralmente obrigados a
desobedecer às leis injustas' (Carta da Prisão de Birmingham)”.
Por derradeiro, vale a pena analisar as últimas cenas de “O Sol é
para Todos”. Algum tempo após o julgamento de Tom Robinson, quando
voltavam de uma festa de Halloween, já tarde da noite, os irmãos Jem e
Scout Finch são surpreendidos em uma trilha deserta pelo vingativo (e
vilão do filme) Bob Ewell, que tenta matá-los. Embora Jem saia
seriamente ferido do episódio, as crianças são salvas graças à pronta
intervenção do misterioso (e tido, por muitos, como “maluco” e perigoso)
Boo Radley. Na refrega, Bob Ewell é morto por Boo Radley, que,
metaforicamente, é referido como uma das cotovias ou “mockingbirds” do
filme, a ave amiga e predileta de São Francisco de Assis (1182-1226). Um
novo julgamento é ventilado, quicá mais terrível que o primeiro,
levando ao banco dos réus mais uma “cotovia”. Entretanto, o xerife acaba
decidindo dar o caso por encerrado. Relatará, na investigação, que Bob
Ewell caiu, bêbado, ferindo-se mortalmente com a faca que levava. Para
tanto justificar, ele “sentencia” mais ou menos assim: “há algum tempo
morreu um negro inocente, agora foi um branco, o verdadeiro responsável
por aquela morte. Que um morto enterre o outro. Não pode ser errado
proteger um inocente que fez um favor a todos”. A pequena Scout dá razão
ao xerife. As crianças Finch foram ensinadas a não fazerem mal às
cotovias, que, não fazendo mal a ninguém (a semelhança de Tom Robinson e
Boo Radley), apenas cantam. Atticus, comovido, aceita a decisão,
agradece a todos e abraça sua filhinha. Mas seria essa a solução
acertada? No caso, tão cheio de sutilezas, não sei dizer com segurança.
Passo a pergunta para cada um de vocês. Como já disse outra vez aqui (em
“A medida de Shakespeare”), minha régua, para medir a “justiça”, ainda é
humanamente falha.
No mais, deixo apenas uma dica: assistam “O Sol é para Todos” (“To
Kill a Mockingbird”). Profissionais do Direito ou não, vocês vão adorar.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP |
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