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06/10/2015

 

 
   
Marcelo Alves

 
Sobre “O sol é para Todos” (III)

Como afirmado nos artigos das semanas passada e retrasada, no filme “O Sol é para Todos” (“To Kill a Mockingbird”) são tratados, ao lado de temas de interesse geral, vários aspectos relevantes do Direito, que valem a pena ser mencionados e, na medida do possível, comentados. Na semana passada, mencionamos (e comentamos, embora sucintamente) dois desses aspectos (que classifiquei como “jurídico-performáticos”): o objetivo do filme de mostrar a dinâmica do sistema judicial criminal norte-americano e de construir a imagem do advogado ideal, sempre sereno, dedicado e generoso, na personagem de Atticus Finch (interpretado perfeitamente por Gregory Peck). 

Hoje, como prometido, daremos continuidade à análise do conteúdo jurídico “O Sol é para Todos” (“To Kill a Mockingbird”), abordando mais três aspectos (jurídicos) da narrativa, aspectos, desta feita, com vieses menos “performáticos” e bem mais técnico-jurídicos ou jurídico-filosóficos. 

Comecemos por uma questão jurídica bem específica de “O Sol é para Todos”, que, em regra, passa despercebida àqueles que assistem ao filme. Falo da pouco conhecida “Síndrome da mulher de Potifar”, que, num olhar mais atento, se verifica, está na origem da persecução criminal que recai sobre Tom Robinson, o trabalhador negro falsamente acusado de espancar e violentar a jovem branca Mayella Ewell. Para quem não sabe, consta na Bíblia, no Livro do Gênesis, que José (filho de Jacó) sofreu, no Egito, da mulher de Potifar (às vezes grafado Putifar), alto oficial do Faraó, a injusta acusação de que a teria tentado seduzir, sendo, por isso, indevidamente aprisionado. Desse relato bíblico decorre a referida “Síndrome da mulher de Potifar” - em linhas gerais, a circunstância, não tão rara, de alguém acusar falsamente outrem de sedução ou mesmo estupro, geralmente motivado por uma real rejeição -, “síndrome” essa que marca, pelo menos é isso que o filme deixa transparecer, o caso de Tom Robinson e Mayella Ewell. 

Passemos a outro aspecto do enredo jurídico de “O Sol é para Todos”, desta feita uma questão mais geral, que é o pano de fundo jurídico-filosófico do filme: a tensão entre a falibilidade/hipocrisia/injustiça do sistema judicial (ou da “justiça humana”) e a noção, com forte apelo no Direito Natural e na igualdade entre os homens, do que é a verdadeira Justiça. A absurdez do sistema legal/judicial (e da sociedade como um todo) racista e desigual, no Alabama de 1932, é evidente. Como dito no livro “100 filmes: da literatura para o cinema” (organizado por Henri Mitterand; publicado no Brasil, em 2010, pela editora BestSeller), “a segregação perfeitamente legal dessa época é visível no tribunal, onde brancos e negros são separados - e continuaria em vigor no Alabama até 1964, data do Civil Right Act, que concedeu os mesmos direitos aos negros. Apesar do empenho e do arrazoado de Atticus para inocentar Tom, a resistência social e o ódio racial persistem: o negro necessariamente é culpado”. Transformado em “filme de acusação” (do racismo, do preconceito, de uma justiça falha etc.), “O Sol é para Todos”, de certa forma, sobretudo quando nos lembramos da fuga (para a morte pelas balas da polícia) de Tom Robinson, nos “convida premonitoriamente a abraçarmos o preceito escrito por Martin Luther King na prisão de Birmingham, em 16 de abril de 1963: 'A obediência às leis justas não é apenas um dever jurídico, mas também um dever moral. Em sentido inverso, todos estão moralmente obrigados a desobedecer às leis injustas' (Carta da Prisão de Birmingham)”. 

Por derradeiro, vale a pena analisar as últimas cenas de “O Sol é para Todos”. Algum tempo após o julgamento de Tom Robinson, quando voltavam de uma festa de Halloween, já tarde da noite, os irmãos Jem e Scout Finch são surpreendidos em uma trilha deserta pelo vingativo (e vilão do filme) Bob Ewell, que tenta matá-los. Embora Jem saia seriamente ferido do episódio, as crianças são salvas graças à pronta intervenção do misterioso (e tido, por muitos, como “maluco” e perigoso) Boo Radley. Na refrega, Bob Ewell é morto por Boo Radley, que, metaforicamente, é referido como uma das cotovias ou “mockingbirds” do filme, a ave amiga e predileta de São Francisco de Assis (1182-1226). Um novo julgamento é ventilado, quicá mais terrível que o primeiro, levando ao banco dos réus mais uma “cotovia”. Entretanto, o xerife acaba decidindo dar o caso por encerrado. Relatará, na investigação, que Bob Ewell caiu, bêbado, ferindo-se mortalmente com a faca que levava. Para tanto justificar, ele “sentencia” mais ou menos assim: “há algum tempo morreu um negro inocente, agora foi um branco, o verdadeiro responsável por aquela morte. Que um morto enterre o outro. Não pode ser errado proteger um inocente que fez um favor a todos”. A pequena Scout dá razão ao xerife. As crianças Finch foram ensinadas a não fazerem mal às cotovias, que, não fazendo mal a ninguém (a semelhança de Tom Robinson e Boo Radley), apenas cantam. Atticus, comovido, aceita a decisão, agradece a todos e abraça sua filhinha. Mas seria essa a solução acertada? No caso, tão cheio de sutilezas, não sei dizer com segurança. Passo a pergunta para cada um de vocês. Como já disse outra vez aqui (em “A medida de Shakespeare”), minha régua, para medir a “justiça”, ainda é humanamente falha. 

No mais, deixo apenas uma dica: assistam “O Sol é para Todos” (“To Kill a Mockingbird”). Profissionais do Direito ou não, vocês vão adorar.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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