Os extremistas
O direito tem os seus extremistas (para usar de uma palavra em voga), ou seja, aqueles que não nunca aceitam um meio termo, sendo que, já dizia Aristóteles (384aC-322aC), em sua “Ética a Nicômaco”, “a virtude está meio”.
E esse extremismo se dá em relação tanto aos grandes como os pequenos temas jurídicos. Vários exemplos, em relação aos grandes e aos pequenos temas, podem ser encontrados nas páginas do jornais e, para quem milita na área, no dia a dia do foro. Basta pensar um pouquinho, sempre com moderação, e vocês lembrarão de alguns.
Hoje vou abordar um grande tema jurídico sobre o qual, sobretudo no passado, se digladiavam duas correntes extremistas da filosofia do direito: a criação apenas legislativa, legislativa/judicial ou apenas judicial do direito. Trata-se de um tema que está relacionado à dicotomia, amplamente conhecida, entre as famílias jurídicas do “common law” e do “civil law”, cada qual com origem e desenvolvimento próprios (apesar da forte interação entre elas no estágio atual das coisas). Essa origem e desenvolvimento diversos resultaram em modos diferentes de enxergar o direito dos juristas de uma e de outra família.
De fato, ficou registrada na história da tradição romano-germânica (“civil law”) a ideia, inspirada na lição de Montesquieu (1689-1755), de que o juiz não deve ser outra coisa senão a boca que pronuncia as palavras da lei (“la bouche qui prononce les paroles de la loi”) e de que no foro deve ser proibida a citação de outra coisa que não seja a lei. O próprio Napoleão Bonaparte (1769-1821), ao saber que um professor se “atrevia” a comentar o seu Código, afirmou: “meu Código está perdido”. Alf Ross (1899-1979), no clássico “Direito e Justiça” (editora Edipro, 2000), lembra que “associativamente às grandes codificações, o legislador, na vã esperança de preservar sua obra, tem proibido, amiúde, a interpretação das normas e que a prática dos tribunais se desenvolva como fonte do direito. (…) No Código Prussiano (Allgemeines Landrecht) de 1794 encontramos preceitos similares. Na Dinamarca, depois da aprovação do Código Dinamarquês, em 1683, proibiu-se que os advogados citassem precedentes perante a Corte Suprema. (...)”. Aliás, antes, assim já havia feito a Bula da Igreja Católica de 1564, que promulgou os decretos do Concílio de Trento, ao proibir qualquer interpretação ou comentário, a fim de evitar confusões ou erros. E mesmo o grande imperador romano Justiniano, bem antes, chegou a proibir decisões de acordo com precedentes (“non exemplis, sed legibus judicandum est”). Isso para ficarmos em alguns exemplos mais conhecidos.
Do outro lado, no direito anglo-americano (tradição do “common law”), há também opiniões extremistas. É conhecida a teoria, defendida pela escola do realismo jurídico americano, de que só é Direito aquele criado pelos juízes e tribunais. Ou seja, Direito é o que declaram e decidem os juízes. Antes da decisão judicial não há Direito ou, em outras palavras, uma norma só passa a ser considerada norma jurídica quando for aplicada pelos tribunais. Como registra José Luis Vasquez Sotelo (no artigo “A jurisprudência vinculante na 'comnon law' e na 'civil law', que faz parte do livro “Temas atuais de direito processual civil ibero-americano”, publicado pela editora Forense em 1998): “O 'common law' propiciou o nascimento da escola do ‘realismo americano’ (‘legal realism’). Direito é o que declaram e dispõem os juízes. Não há direito no vácuo. Se as disposições do legislador não têm vigência prática é como se não existissem. E o principal valor de cada caso - escreveu o Juiz Frank - se sustenta na luz que jorra sobre outros dez mil casos que não estão à disposição do Tribunal”.
Seguidor contumaz da ética de Aristóteles, mais uma vez acho que “a virtude está meio”: tanto a visão absolutista da lei como o realismo jurídico (americano) estão equivocados. E aqui, para responder aos extremistas, mesmo correndo o risco de ser demasiadamente singelo, me socorro das palavras de Hans Kelsen (1881-1973), na sua “Teoria Pura do Direito” (editora Martins Fontes, 1991): “A teoria, nascida no terreno da common law anglo-americana, segundo a qual somente os tribunais criam Direito, é tão unilateral como a teoria, nascida no terreno do Direito legislado da Europa Continental, segundo a qual os tribunais não criam de forma alguma Direito mas apenas aplicam Direito já criado. Esta teoria implica a ideia de que só há normas jurídicas gerais, aquela implica a de que só há normas jurídicas individuais. A verdade está no meio. Os tribunais criam Direito, a saber - em regra - Direito individual; mas, dentro de uma ordem jurídica que institui um órgão legislativo ou reconhece o costume como fato produtor de Direito, fazem-no aplicando o Direito geral já de antemão criado pela lei ou pelo costume. A decisão judicial é a continuação, não o começo, do processo de criação jurídica”.
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