Como dito na semana passada, “O Sol é para Todos” (“To Kill a Mockingbird”) tem tudo que se requer de um excelente “filme jurídico”. Nele são tratados, ao lado de temas de interesse geral, vários aspectos relevantes do Direito, que valem a pena ser aqui mencionados e, na medida do possível, comentados.
Mas antes de entrarmos no conteúdo jurídico de “O Sol é para Todos”, registre-se que toda a sua estória é contada, em singular “flashback”, pela filha pequenina do advogado Atticus Finch (personagem principal da trama), Jean-Louise, dita “Scout”, à época dos fatos com seis anos de idade, cuja voz, cheia de sotaque sulista, recorda eventos acontecidos há um bocado de anos. Com base nas “memórias” de Scout, “O Sol é para Todos” trata, de forma bastante lúdica e melancólica, de inúmeros temas universais, tais como: (i) a imaginação poética da infância encarando a realidade da vida dos adultos, circunstância que está intimamente ligada ao enredo do filme; (ii) a família, no caso do filme as famílias sulistas (a maioria de pequenos agricultores) que vivem os resultados da crise de 1929 na “velha e cansada cidade” (“tired old town”) de Maycomb, no estado do Alabama (estado em tudo ligado à escravatura, à Confederação e à Guerra Civil americana). Mais especificamente, há a família Finch, composta dos irmãos Jem e Scout Finch (órfãos de mãe), da babá negra Calpurnia e do pai Atticus Finch (advogado íntegro e respeitado na cidade, que atende gratuitamente aos mais pobres), que vive sob os preceitos da ética e da dignidade; (iii) a coragem, física e sobretudo moral, demonstrada, em diversas passagens da estória, pelos irmãos Jem e Scout e, especialmente, por Atticus Finch, que, no decorrer da narrativa, paulatinamente, vai adquirindo o respeito e a admiração das crianças; (iv) a tolerância, poeticamente defendida por Atticus Finch, ao nos ensinar que só conseguiremos enxergar as razões de outra pessoa pondo-se no lugar dela; (v) o respeito (que se deve ter) por quem aparenta ser portador de necessidade especial, como é caso da personagem Boo Radley (metaforicamente, junto com Tom Robinson, uma das cotovias ou “mockingbirds” do filme), um jovem misterioso maltratado pelo próprio pai, que, já pelo fim da narrativa, ao salvar as vidas dos irmãos Jem e Scout, se transforma em herói; (vi) o preconceito e o racismo, que se tornam evidentes no caso da persecução a Tom Robinson, o jovem trabalhador negro acusado de haver estuprado uma moça branca. Quase toda a cidade de Maycomb, à exceção dos negros e de alguns poucos brancos, se volta contra Tom Robinson (e, embora mais suavemente, contra toda a família Finch, em razão da atuação de Atticus como advogado de defesa), apesar da inocência do jovem restar clara no filme. E esses são apenas alguns exemplos da temática (de interesse geral) abordada no filme.
No que toca ao Direito (que, neste momento, passa a ser o principal objeto do nosso interesse), o rol de temas (jurídicos) tratados em “O Sol é para Todos” é igualmente extenso.
Primeiramente, como dito na primeira parte desta série de artigos, boa parte da estória de “O Sol é para Todos” se passa perante uma corte de justiça em pleno funcionamento, com policiais, testemunhas, advogado, promotor, juiz e júri realizando suas performáticas peripécias jurídicas. Embora “O Sol é para Todos” possa nos levar, em alguns momentos, a visões equivocadas sobre a realidade do sistema judicial criminal norte-americano (afinal, como quase todos os “filmes de tribunal”, cuida-se de uma obra de ficção), ele procura nos mostrar, através da “sétima arte”, a dinâmica de um processo criminal naquele país (EUA), o trabalho e a performance dos profissionais do Direito ali atuantes (sobretudo o advogado) e os motivos por trás da deliberação que doze cidadãos comuns, os jurados, a maioria deles cheia de preconceitos, fazem sobre o destino do réu nos casos de julgamento pelo tribunal do júri.
Em segundo lugar, ainda relacionado com o aspecto “jurídico-performático” de “O Sol é para Todos”, registre-se que o enredo do filme, no que toca às suas personagens “jurídicas”, foca-se essencialmente no advogado generoso e idealista que é Atticus Finch (interpretado magistralmente por Gregory Peck, que por esse papel ganhou o Oscar de melhor ator em 1963). Essa personagem fictícia é provavelmente o advogado mais famoso da história do cinema. E é também, a partir da telona, aquele que mais contribuiu para melhorar a imagem dessa profissão, em regra (e, muitas vezes, merecidamente), tão mal vista. Como registram Ernesto Pérez Morán e Juan Antonio Pérez Millán (em “Cien abogados de ayer e de hoy”, livro publicado pela Ediciones Universidad de Salamanca, 2010), “belo, generoso, sereno, sempre bem vestido, dedicado pai de dois filhos cuja mãe faleceu quatro anos atrás, Atticus Finch é um modelo de cidadão, admirado por seus vizinhos do condado de Macon que, em 1932, seguem sofrendo as consequências da quebra da quebra da bolsa de valores de 1929”. Atticus Finch, empenhado em inocentar Tom Robinson, adepto da não violência, mantém sua dignidade durante toda a narrativa, confiante de que a Justiça um dia lhe dará razão, garantindo a igualdade, independente da cor da pele, a todos os cidadãos.
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