UMA CANTILENA GERMÂNICA
Era um dia de janeiro de 1991, com temperatura que beirava zero grau. Quatro pessoas estavam em um carro alugado: eu, minha mulher, um chofer alemão tagarela que só falava a sua língua e uma grega, intérprete e também tradutora de textos antigos escritos em língua alemã e latim e que pensava que falava espanhol fluentemente. A conversa, gutural e interminável, era somente entre eles, o motorista e a tradutora. Por volta das sete horas da manhã chegamos à cidade de Heidelberg, localizada no sudoeste da Alemanha, no Estado de Baden-Wurttemberg, banhada pelo rio Neckar, um afluente do Reno, e perto das fronteiras com a França e Suíça. O povo da cidade dormia e o seu comércio ainda estava fechado. O único prenúncio de vida era o badalar do sino de sua famosa igreja protestante, a igreja do Espírito Santo (Heiliggeistkirche), que data do século XV.
Cansaço, frio e fome são coisas que não combinam muito bem, principalmente com a minha mulher. Mesmo nessas condições resolvemos andar pela pequena cidade, que é uma das mais simpáticas da Europa, com uma população inferior a 140.000 habitantes e que é tombada pela UNESCO como patrimônio da humanidade. As ruas centrais são de uso exclusivo dos pedestres e seus prédios medievais são bem conservados e mais parecem bibelôs que moradias ou estabelecimentos comerciais. Essa volta no tempo e o fato de não mais estarmos ouvindo a cantilena germânica já melhorou o nosso ânimo. Ao encontrarmos um bar-café aberto, melhorou muito mais. Comida boa e relativamente barata. Fomos para o hotel que tínhamos reservado e aconteceu a primeira surpresa desagradável: a reserva fora cancelada unilateralmente pela administração do hotel. Fomos procurar outro; encontramos, mas era mais caro.
Malas desfeitas, banho quente tomado, roupa trocada, partimos em busca do objetivo de minha ida àquela cidade alemã: a Universidade de Heidelberg, a mais antiga de seu país, fundada em 1386 e célebre pelas suas faculdades de filosofia, medicina e matemática entre outras e, ainda, pela Biblioteca Palatina, criada no século XV, fonte obrigatória para o estudo das culturas grega e romana e repositório de documentos das mais várias áreas, em cujos originais e inéditos eu pretendia fazer pesquisas sobre a escravidão no período colonial da América e, lógico, sobre as civilizações grega e romana. Eu fora recomendado por um amigo, professor Martin Friedrich Manheim, que conheci na Universidade de Colônia, quando lá estive também fazendo pesquisas. Eis que surge a segunda surpresa: eu somente teria acesso a um número limitado de obras impressas e a poucos originais, pois uns estudantes brasileiros haviam danificado algumas preciosidades do acervo da Biblioteca. Depois de muita conversa e de deixar o meu passaporte como garantia, foi-me concedida a ampliação do campo de investigação. Vista a lista de obras veio a terceira surpresa: parte das obras sobre a colonização da América eu possuía na minha casa, em edições modernas. O banho que eu recebi foi dado pelas obras sobre a cultura greco-romana. Fundamentos, formulações e elaborações de pensamento e das leis, quase tudo estava lá. Os dois ou três dias inicialmente previstos se ampliaram para quase dez.
Deu para sentir o pulsar da cidade, que tem grande população universitária – inclusive encontramos alguns brasileiros. Seus cafés, bares, restaurantes e festas promovidas pelos estudantes a qualquer dia, sem programação. Estávamos todos nós felizes da vida, fazendo o que gostávamos de fazer, comendo e bebendo bem e, mais importante, livres do chofer tagarela que tinha voltado para Frankfurt. Porém, tudo que é bom dura pouco. Chegou o dia, ou melhor, a noite de voltarmos para Frankfurt, quando tivemos a quarta surpresa: o motorista do carro era o mesmo tagarela gutural.
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