O que o direito tem a ver com a literatura? Vale pena misturá-los para fins de estudo? E como se faz isso de forma sistematizada?
Essas são algumas perguntas que este artigo (e alguns outros que a ele seguirão) tentará, ao final, razoavelmente responder.
Antes de mais nada, interagir o direito com a literatura faz parte de uma tendência, cuja origem remonta à França e à Itália dos anos 1960, mas que se torna bastante visível no mundo acadêmico contemporâneo: a dos estudos interdisciplinares. De fato, na academia de hoje, uma das “coqueluches” (leia-se tendência ou moda) é a interdisciplinaridade, aqui entendida, no seu sentido lato, como a interação, nos mais diversos níveis de complexidade (multidisciplinaridade, pluridisciplinaridade, interdisciplinaridade em sentido estrito e transdisciplinaridade), das áreas do saber, visando à compreensão e ao aperfeiçoamento da realidade que nos cerca.
O direito não foge a essa tendência (dos estudos interdisciplinares). Para falar a verdade, exemplos isolados de interdisciplinaridade no direito remontam a um passado ainda mais distante que os anos 1960. Apenas para que se dê um exemplo, levando em consideração o direito e a sociologia, basta referir Émile Durkheim (1858-1917) Max Weber (1864-1920) e Eugen Ehrlich (1862-1922), pensadores com formação tanto em direito como em sociologia, que, em fins do século XIX e no começo do XX, deram marcantes contribuições para a interação dessas duas ciências. Nas últimas décadas, entretanto, o estudo interdisciplinar do direito, misturando esse ramo do saber com outras ciências sociais, tem ganho cada vez mais espaço na academia e na literatura jurídica em geral, sobretudo nos Estados Unidos da América. “Movimentos” como “law and society”, “law and economics”, “critical legal studies”, “feminism jurisprudence”, “critical race theory”, dentre outros, são os exemplos mais conhecidos desses movimentos interdisciplinares. Mesmo que de forma não tão organizada como nos EUA, no Brasil de hoje, nos cursos de bacharelado e de pós-graduação, aos professores é recomendado, em conformidade com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/1996), trabalhar toda e qualquer disciplina jurídica curricular em interação com os demais ramos de direito, assim como interagir com as demais ciências, tais como a filosofia, a política, a economia e a sociologia.
Seguindo essa boa moda (embora esta palavra, referida aqui mais uma vez propositalmente, tenha também um viés pejorativo) da interdisciplinaridade, por que não misturar os estudos do direito e da literatura?
Na verdade, sobretudo nos Estados Unidos da América e no Reino Unido (e, com uma velocidade menor, no Brasil), desde pelo menos a década de 1980, os estudos de “law and literature” (direito e literatura) vêm ganhando, paulatinamente, cada vez mais destaque na teia dos já referidos “movimentos” interdisciplinares, com a publicação de livros e artigos voltados à temática e mesmo com sua inclusão nos currículos dos cursos de direito.
Levando em consideração a realidade americana, a publicação de “The Legal Imagination” (1973), de James Boyd White (1938-), professor da University of Michigan, é convencionalmente considerada como marco fundante do movimento “law and literature” (direito e literatura). Mais recentemente, na mesma trilha, James Boyd White ainda publicou “Justice as Translation: An Essay in Cultural and Legal Criticism” (1990) e “Acts of Hope: Creating Authority in Literature, Law, and Politics” (1994), entre outros. No mais, segundo registrou Eliane Botelho Junqueira há cerca de duas décadas (em “Literatura e direito: uma outra leitura do mundo das leis”, Editora Letra Capital, 1998), para se ter uma ideia: “Em pesquisa realizada em 1987 entre 175 faculdades de direito dos Estados Unidos, 38 ofereciam uma disciplina que poderia ser classificada dentro do tema law and literature (Gammette, 1989), número que, com certeza, deve ser bem mais expressivo em 1995. Chama a atenção, por exemplo, o curso 'Law and Dickens' oferecido pela Harvard Law School, uma das principais faculdades de elite nos Estados Unidos”. A situação hoje nos Estados Unidos da América, no que toca aos estudos de “law and literature” (direito e literatura), acadêmicos ou não, em termos de uma maior quantidade, variedade e qualidade, é certamente ainda mais impactante.
Por fim, antes de terminar este riscado, é necessário indagarmos como se dá esse enlace interdisciplinar do direito com a literatura e se há alguma sistematização para fins de estudo adequado.
A resposta para tanto é que direito e literatura se enlaçam de várias formas. Comumente, para fins de estudo sistematizado, esses enlaces são classificados em três vertentes: o direito da literatura (“the law of literature”, “le droit de la littérature”); o direito como literatura (“law as literature”, “le droit comme littérature”); e o direito na literatura (“law in literature”, “le droit dans la littérature”).
E dito isso, por falta de espaço, paramos por aqui, deixando a explicação dessa classificação tripartite (e outras coisistas mais) para uma próxima conversa.
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