Precedentes: o outro lado (I)
Nos últimos anos, muito se tem escrito e falado sobre a aplicação
vinculante dos precedentes judiciais no Brasil. E, via de regra, se tem
defendido um incremento cada vez maior dessa boa prática entre nós. Eu
mesmo tenho sido um entusiasta do tema, escrevendo aqui sobre o “common
law”, a teoria geral dos precedentes obrigatórios, súmula e efeito
vinculante, incidentes de uniformização e por aí vai.
Hoje (e em alguns pequenos artigos que seguirão, aviso desde logo),
entretanto, para que vocês não me chamem de parcial, vou escrever sobre o
outro lado da moeda: as chamadas “desvantagens”, reais ou aparentes, da
doutrina do “stare decisis” (ou dos precedentes judiciais
obrigatórios).
A doutrina do “stare decisis”, mesmo na Inglaterra e nos Estados
Unidos, sempre teve seus defensores e opositores, arduamente debatendo
seus pontos de vista. E - verdade seja dita - sua adoção implica
vantagens e desvantagens, como, quiçá, tudo na vida. Jacqueline Martin
(em “English Legal System”, livro publicado pela editora Hodder &
Stoughton), com um certo exagero, chega a afirmar, quanto ao “stare
decisis”, que a cada “vantagem corresponde uma desvantagem”.
Pondo de lado o exagero, a autora tem certa razão. E cabe aos
operadores do direito, aperfeiçoando a “mecânica” de aplicação da
doutrina “stare decisis” em cada país, fazer com que as vantagens
superem satisfatoriamente as desvantagens, sendo essa a diretriz quanto a
isso na Inglaterra e nos Estados Unidos.
A literatura jurídica aponta várias desvantagens na adoção da teoria
do “stare decisis”, entre as quais: a rigidez e a complexidade dos
sistemas fundados em precedentes vinculantes, a ocorrência neles de
muitas distinções ilógicas, a morosidade no aperfeiçoamento do direito e
as supostas ofensas aos princípios da persuasão racional do juiz e da
separação dos poderes. Essa lista de “desvantagens” não é exaustiva.
Todavia, procura refletir o que há de mais recente na doutrina inglesa e
americana, sem esquecer as desvantagens apontadas pelos estudiosos
brasileiros. Resta lembrar, apenas, que algumas dessas desvantagens ou
defeitos são mais aparentes que reais, como se verá seguir.
Comecemos aqui falando da denominada “rigidez” (“rigidity”) ou do
engessamento do sistema, problema, em princípio, preocupante. Nos países
que adotam a teoria do “stare decisis”, o fato de as cortes terem de
seguir seus próprios precedentes e os precedentes das cortes superiores
faz o sistema, em princípio, ser tido por bastante rígido. Sobretudo,
porque, como se sabe, apenas em pouquíssimos casos, a partir da
persistência das partes, um processo chega, por exemplo, à Suprema Corte
do Reino Unido na Inglaterra ou à Suprema Corte dos Estados Unidos
(parece não ser o caso do Brasil, onde “tudo” chega ao Supremo Tribunal
Federal, sendo certo que precisamos de uma grande reforma em nosso
sistema recursal). E, de fato, não é salutar imobilizar a evolução
natural da jurisprudência.
Todavia, é necessário esclarecer um pouco as coisas. Os sistemas
jurídicos que adotam a teoria do “stare decisis” têm também a sua faixa
de flexibilidade, que é maior nos Estados Unidos do que na Inglaterra.
Entre outras coisas, há, primeiramente, o poder de distinguir, que,
usado corretamente, dá aos tribunais liberdade para se afastar de
decisões anteriores; ademais, mesmo que seja uma exceção, há a
possibilidade do “overruling”, que servirá para, revogado um precedente
considerado incorreto, desenvolver o direito. O exemplo dos Estados
Unidos serve para comprovar que a existência da vinculação aos
precedentes dentro de um sistema jurídico não quer significar
imutabilidade perpétua. Na verdade, havendo uma decisão anterior de
seguimento obrigatório, o que está vedado ao julgador é apartar-se dela
arbitrariamente; todavia, é possível afastar-se do precedente mediante o
emprego de uma fundamentação suficiente e razoável.
Outra desvantagem apontada é a complexidade (“complexity”) da
doutrina do “stare decisis”, que decorre, primeiramente, da seguinte
circunstância: diante da existência, somente na Inglaterra (imaginem nos
Estados Unidos da América) de alguns anos atrás, de centenas de
milhares de casos reportados, não é fácil achar todos os precedentes
relevantes, mesmo com o uso das mais avançadas ferramentas eletrônicas.
Além disso, dos precedentes encontrados em determinada pesquisa, para
citação em um caso em análise porque supostamente adequados, muitos não
são realmente relevantes para esse caso, embora, num primeiro momento,
pudessem parecer que sim. Essa complexidade é enxergada pelos juristas
do “common law”, tanto que, na Inglaterra, por exemplo, para minimizar o
problema, o “Lord Chief of Justice” emitiu, no ano de 2001, uma
“practice direction” (que podemos traduzir como uma “diretriz”)
estabelecendo uma série de regras de como os precedentes deveriam ser
citados perante às cortes, sendo isso feito com o objetivo de restringir
a citação a precedentes que realmente sejam relevantes e úteis para o
caso em julgamento. Por fim, a própria doutrina dos precedentes
vinculantes, como foi originalmente construída no âmbito do “common
law”, é complexa. Só para ficar em um ponto: diferentemente do que
muitos pensam, a única parte do precedente realmente vinculante, como
lembram Rupert Cross e J. W. Harris (em “Precedent in English Law”,
livro publicado pela Clarendon Press), é sua “ratio decidendi” ou razão
de decidir e, muitas vezes, em determinado precedente, não há uma
distinção precisa entre os meros “obiter dicta” (afirmações “a latere”) e
a “ratio decidendi” do caso.
Registre-se, todavia, que, no caso específico do Brasil, com a
simples adoção da súmula vinculante do STF, por exemplo, esses
problemas, em princípio, não existiriam. Ao contrário, através da
súmula, como sabemos, identifica-se, rapidamente, a jurisprudência
cristalizada de um tribunal acerca de variados temas jurídicos. Ademais,
o enunciado da súmula, como verdadeiro extrato ou compêndio de conteúdo
eminentemente jurídico, consistente na interpretação de questão de
direito, de várias decisões anteriores no mesmo sentido, não possui
afirmações “a latere” (as referidas “obiter dicta”) e todo o seu
conteúdo é considerado essencial.
Bom, dito isso, encerro por aqui, prometendo, todavia, retornar
semana que vem para tratar de mais algumas “desvantagens” da doutrina
dos precedentes obrigatórios.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP |
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