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28/07/2015

   
Marcelo Alves

 


Precedentes: o outro lado (I)
Nos últimos anos, muito se tem escrito e falado sobre a aplicação vinculante dos precedentes judiciais no Brasil. E, via de regra, se tem defendido um incremento cada vez maior dessa boa prática entre nós. Eu mesmo tenho sido um entusiasta do tema, escrevendo aqui sobre o “common law”, a teoria geral dos precedentes obrigatórios, súmula e efeito vinculante, incidentes de uniformização e por aí vai. 

Hoje (e em alguns pequenos artigos que seguirão, aviso desde logo), entretanto, para que vocês não me chamem de parcial, vou escrever sobre o outro lado da moeda: as chamadas “desvantagens”, reais ou aparentes, da doutrina do “stare decisis” (ou dos precedentes judiciais obrigatórios). 

A doutrina do “stare decisis”, mesmo na Inglaterra e nos Estados Unidos, sempre teve seus defensores e opositores, arduamente debatendo seus pontos de vista. E - verdade seja dita - sua adoção implica vantagens e desvantagens, como, quiçá, tudo na vida. Jacqueline Martin (em “English Legal System”, livro publicado pela editora Hodder & Stoughton), com um certo exagero, chega a afirmar, quanto ao “stare decisis”, que a cada “vantagem corresponde uma desvantagem”. 

Pondo de lado o exagero, a autora tem certa razão. E cabe aos operadores do direito, aperfeiçoando a “mecânica” de aplicação da doutrina “stare decisis” em cada país, fazer com que as vantagens superem satisfatoriamente as desvantagens, sendo essa a diretriz quanto a isso na Inglaterra e nos Estados Unidos. 

A literatura jurídica aponta várias desvantagens na adoção da teoria do “stare decisis”, entre as quais: a rigidez e a complexidade dos sistemas fundados em precedentes vinculantes, a ocorrência neles de muitas distinções ilógicas, a morosidade no aperfeiçoamento do direito e as supostas ofensas aos princípios da persuasão racional do juiz e da separação dos poderes. Essa lista de “desvantagens” não é exaustiva. Todavia, procura refletir o que há de mais recente na doutrina inglesa e americana, sem esquecer as desvantagens apontadas pelos estudiosos brasileiros. Resta lembrar, apenas, que algumas dessas desvantagens ou defeitos são mais aparentes que reais, como se verá seguir. 

Comecemos aqui falando da denominada “rigidez” (“rigidity”) ou do engessamento do sistema, problema, em princípio, preocupante. Nos países que adotam a teoria do “stare decisis”, o fato de as cortes terem de seguir seus próprios precedentes e os precedentes das cortes superiores faz o sistema, em princípio, ser tido por bastante rígido. Sobretudo, porque, como se sabe, apenas em pouquíssimos casos, a partir da persistência das partes, um processo chega, por exemplo, à Suprema Corte do Reino Unido na Inglaterra ou à Suprema Corte dos Estados Unidos (parece não ser o caso do Brasil, onde “tudo” chega ao Supremo Tribunal Federal, sendo certo que precisamos de uma grande reforma em nosso sistema recursal). E, de fato, não é salutar imobilizar a evolução natural da jurisprudência. 

Todavia, é necessário esclarecer um pouco as coisas. Os sistemas jurídicos que adotam a teoria do “stare decisis” têm também a sua faixa de flexibilidade, que é maior nos Estados Unidos do que na Inglaterra. Entre outras coisas, há, primeiramente, o poder de distinguir, que, usado corretamente, dá aos tribunais liberdade para se afastar de decisões anteriores; ademais, mesmo que seja uma exceção, há a possibilidade do “overruling”, que servirá para, revogado um precedente considerado incorreto, desenvolver o direito. O exemplo dos Estados Unidos serve para comprovar que a existência da vinculação aos precedentes dentro de um sistema jurídico não quer significar imutabilidade perpétua. Na verdade, havendo uma decisão anterior de seguimento obrigatório, o que está vedado ao julgador é apartar-se dela arbitrariamente; todavia, é possível afastar-se do precedente mediante o emprego de uma fundamentação suficiente e razoável. 

Outra desvantagem apontada é a complexidade (“complexity”) da doutrina do “stare decisis”, que decorre, primeiramente, da seguinte circunstância: diante da existência, somente na Inglaterra (imaginem nos Estados Unidos da América) de alguns anos atrás, de centenas de milhares de casos reportados, não é fácil achar todos os precedentes relevantes, mesmo com o uso das mais avançadas ferramentas eletrônicas. Além disso, dos precedentes encontrados em determinada pesquisa, para citação em um caso em análise porque supostamente adequados, muitos não são realmente relevantes para esse caso, embora, num primeiro momento, pudessem parecer que sim. Essa complexidade é enxergada pelos juristas do “common law”, tanto que, na Inglaterra, por exemplo, para minimizar o problema, o “Lord Chief of Justice” emitiu, no ano de 2001, uma “practice direction” (que podemos traduzir como uma “diretriz”) estabelecendo uma série de regras de como os precedentes deveriam ser citados perante às cortes, sendo isso feito com o objetivo de restringir a citação a precedentes que realmente sejam relevantes e úteis para o caso em julgamento. Por fim, a própria doutrina dos precedentes vinculantes, como foi originalmente construída no âmbito do “common law”, é complexa. Só para ficar em um ponto: diferentemente do que muitos pensam, a única parte do precedente realmente vinculante, como lembram Rupert Cross e J. W. Harris (em “Precedent in English Law”, livro publicado pela Clarendon Press), é sua “ratio decidendi” ou razão de decidir e, muitas vezes, em determinado precedente, não há uma distinção precisa entre os meros “obiter dicta” (afirmações “a latere”) e a “ratio decidendi” do caso. 

Registre-se, todavia, que, no caso específico do Brasil, com a simples adoção da súmula vinculante do STF, por exemplo, esses problemas, em princípio, não existiriam. Ao contrário, através da súmula, como sabemos, identifica-se, rapidamente, a jurisprudência cristalizada de um tribunal acerca de variados temas jurídicos. Ademais, o enunciado da súmula, como verdadeiro extrato ou compêndio de conteúdo eminentemente jurídico, consistente na interpretação de questão de direito, de várias decisões anteriores no mesmo sentido, não possui afirmações “a latere” (as referidas “obiter dicta”) e todo o seu conteúdo é considerado essencial. 

Bom, dito isso, encerro por aqui, prometendo, todavia, retornar semana que vem para tratar de mais algumas “desvantagens” da doutrina dos precedentes obrigatórios. 

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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