Os glosadores (I)
O direito romano dito “clássico” conheceu o seu apogeu entre os
séculos I a.C. e III d.C. Todavia, apesar de ter sido essa a época de
seu maior refinamento, é certo que não tem origem nesse período clássico
a influência que o direito romano, via seu redescobrimento na Europa,
exerce até hoje sobre nós.
De fato, é o “Corpus Iuris Civilis” – do Imperador romano bizantino
Justiniano (483-565) e do seu jurista Triboniano (500-547) – que vai,
como explica António Manuel Hespanha em “Panorama histórico da cultura
jurídica europeia” (Publicações Europa-América, 1998), formar a “memória
medieval e moderna do direito romano, pois a generalidade das obras dos
jurisconsultos clássicos, que continuava a existir nas grandes
bibliotecas do Próximo Oriente (Beirute, Alexandria, Constantinopla),
perdeu-se, posteriormente, nomeadamente com a conquista árabe desse
centros”. E a “tal ponto que, até aos inícios do século XIX – data em
que se descobre um manuscrito das Institutiones de Gaio, um jurista
dálmata do século III –, não se conhecia nenhuma obra completa, das
milhares das provavelmente escritas por juristas romanos”.
O “renascimento” do direito romano é cercado de lendas, conforme
lembra Jean-Marie Carbasse em “Manuel d'introduction historique au
droit” (Presses Universitaire de France – Puf, 2017). De toda sorte, a
partir da redescoberta de manuscritos e fragmentos outrora relegados ao
esquecimento, ele se dá, de modo seguro e definitivo, abruptamente, no
fim do século XI, no norte da Itália. O que é considerado por Stefan
Zweig (1881-1942) como um dos “momentos estrelares da história” (li
isso, tenho certeza, mas já não me recordo onde).
Essa redescoberta do direito romano (leia-se: o “Corpus Iuris
Civilis” do Imperador Justiniano), para fins de estudo e futura
aplicação como direito comum à Europa, é atribuída à “Escola dos
Glosadores”, também apelidada de “Escola de Bolonha”, em homenagem
àquela que é convencionalmente considerada a mais antiga universidade do
Ocidente, a Universidade de Bolonha, especialmente no que toca ao
ensino jurídico (sobre essa antiquíssima instituição de ensino, aliás,
pretendo um dia dedicar um artigo inteirinho). Durante os séculos XII e
XIII, sobretudo, essa escola de direito dedicou-se à aventura de
“reconstruir” o direito romano, estudando-o com propósitos – e isso é
muito importante frisar – essencialmente teóricos.
Pondo de lado as figuras lendárias – como um certo Pepo, mestre e
gramático que, pelas bandas de Bolonha, entre os anos de 1070 e 1080,
teria buscado explicar as palavras do texto de Justiniano –, foi mesmo o
monge Irnério (circa 1050-1125), lá pelos últimos anos do século XI, o
fundador e primeiro mestre glosador, no senso pleno da palavra, a quem
se pode seguramente atribuir docência e produção escrita dentro dos
cânones dessa nova escola. Irnério nasceu e deu aulas em Bolonha.
Consoante Paulo Jorge de Lima em “Dicionário de filosofia do direito”
(Sugestões Literárias S.A., 1968), “de seus escritos conservaram-se
várias glosas sobre textos do direito romano. Atribuem-se-lhe, porém,
outras obras, como um Formularium Tabellionum e Quaestiones de Juris
Subtilitatibus”. Irnério foi mesmo, nesse princípio de tudo, “o cara”.
O fundador Irnério deixou como sucessores os seus discípulos
Búlgaro, Martinho, Jacobo e Hugo, que, formando a segunda geração dos
civilistas glosadores, restaram conhecidos como os quatro grandes
doutores de Bolonha. A escola contou com outros grandes glosadores,
agora já também para além de Bolonha (em Montpellier, na França,
especialmente), tais como Rogério, Pillio da Medicina, o Piacentino e
João Bassiano. Um destaque deve ser dado a Azzone (circa 1050-1230),
jurista nascido em Bolonha, que ensinou por mais de quarenta anos na
prestigiosa Universidade, e cuja obra principal foi a “Summa Codicis”
sobre o “Código” e as “Institutas” de Justiniano, postumamente publicada
em 1482. E, por fim, tem-se o grande Acurssio (circa 1182-1260),
nascido em Florença, aluno de Azzone e, posteriormente, por grande parte
da sua vida, professor na Universidade de Bolonha. Em torno de 1240,
Acurssio definitivamente compila o conhecimento doutrinal da Escola dos
Glosadores na chamada “Magna Glosa”, também conhecida como “Glosa
Ordinária” ou, tão somente, “Glosa”, que, segundo a lenda, gozou de
tanto prestígio que os tribunais acolhiam suas prescrições como se leis
fossem. “Apelidado pelos contemporâneos Ídolo dos Jurisconsultos”,
Acurssio foi, como anota Paulo Jorge de Lima, “o representante máximo da
escola jurídica medieval dos glosadores”.
Mas como de fato trabalhavam os tais glosadores, em termos de
forma, conteúdo e resultado? É isso que nós veremos no
artigo/continuação da semana que vem.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP |
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