Obediência cega (I)
Vou pegar hoje carona no meu artigo da semana passada (Por que
“common law”?) e escrever mais um pouco sobre a história do direito
inglês, mais precisamente sobre o tempo em que, na famosa Ilha, vigorava
a ideia da total obediência às decisões judiciais anteriores (ditas
precedentes).
De fato, em tese, é possível ter-se um sistema baseado na premissa
de que o precedente não pode, em hipótese alguma, deixar de ser
aplicado.
De meados do século XIX até o ano de 1966 era basicamente o que se
dava no Reino Unido. Até aquele ano (1966), mesmo a House of Lords (que,
antes da entrada em funcionamento da Supreme Court of the United
Kingdom, em 2009, era, além de uma das casas do Legislativo, a mais alta
corte de justiça do Reino), formalmente renunciando ao poder de superar
suas próprias decisões anteriores, seguia estritamente esse caminho,
baseada na premissa, bastante ortodoxa, de que o precedente não pode, em
hipótese alguma, deixar de ser aplicado. Lembremos, ademais, no que
toca às outras cortes do Reino, incluindo a Court of Appeal e a High
Court of Justice, que essas, até hoje, em regra, ainda estão obrigadas a
seguir os seus próprios precedentes (e os das cortes superiores a elas,
evidentemente).
Segundo se sabe, primeiramente em Beamish v. Beamish [1861] 11 ER
735 e, definitivamente, cerca de quarenta anos depois, em London Street
Tramways Ltd v. London County Council [1898] AC 375, a House of Lords
estabeleceu que estava ela também vinculada às suas próprias decisões
anteriores. Eis as palavras do Lord Chancellor, o Earl of Halsbury, na
decisão de 1898 (tradução livre): “É claro que eu não nego que casos
especificamente difíceis possam surgir, e que possa haver uma corrente
de opinião declarando que determinado julgamento foi errado. Mas o que é
esta interferência ocasional, talvez uma justiça abstrata, se comparada
com a inconveniência - a desastrosa inconveniência - de submeter-se
cada questão à nova discussão, e os negócios das pessoas tornados
incertos por motivo de decisões diferentes, de forma que, na verdade e
de fato, não haveria uma verdadeira corte final de apelação? Meus
Lordes, 'interest rei publicae' (i.e. é de interesse público) que deva
haver 'finis litium' (i.e. um fim para o litígio) em algum momento, e
poderia não haver 'finis litium' se fosse possível sugerir, em cada
caso, que ele poderia ser novamente discutido porque não é 'um caso
ordinário', seja lá o que isso possa significar. Nestas circunstâncias,
eu estou entre aqueles que não devem permitir que esta questão seja
rediscutida”.
Todavia, no ano de 1966, a House of Lords anunciou, em “Practice
Statement” (algo como uma “diretriz”), que seus juízes (e, por
conseguinte, a corte como um todo) poderiam afastar-se das suas
anteriores decisões quando assim achassem correto. Eis o texto constante
de [1966] 3 ALL ER 77, fruto de entendimento compartilhado pelo Lord
Chancellor (à época Lord Gardiner) e todos os demais Law Lords: “Suas
Excelências consideram o uso do precedente como um fundamento
indispensável com base no qual se decide o que é o direito e sua
aplicação ao caso individual. Ele proporciona pelo menos algum grau de
certeza sobre como os indivíduos podem confiar na condução de seus
negócios, bem como uma base para o desenvolvimento ordenado de regras
legais. Suas Excelências, entretanto, reconhecem que a adesão rígida
demais ao precedente pode levar à injustiça num caso particular e,
também, indevidamente restringir o próprio desenvolvimento do direito.
Eles propõem, portanto, modificar a prática atual e, apesar de tratarem
as decisões antigas desta Casa como normalmente obrigatórias,
afastarem-se de uma decisão prévia quando assim parecer a coisa certa a
se fazer. Nesse sentido, eles levaram em conta o perigo de se perturbar
retrospectivamente a base em que contratos, acordos de propriedade e
arranjos fiscais foram entabulados, e, também, a necessidade especial de
certeza em relação ao direito criminal. Este anúncio não teve intenção
de afetar o uso do precedente em outro lugar que não nesta Casa”.
Em seguida ao “Practice Statement” publicado nos “law reports”, uma
nota explicativa foi divulgada através da imprensa (trecho extraído do
livro “The Law-Making Process”, de Michael Zander, editora Butterworths,
1999): “Desde que decidiu o caso inglês London Street Tramways (sic) v.
London County Council em 1898, a House of Lords julgou-se obrigada a
seguir suas próprias decisões, exceto onde uma decisão tenha sido dada
'per incuriam' em desrespeito a um preceito legal ou a uma outra decisão
obrigatória da corte. A afirmação feita é de grande importância, embora
não se deva esperar que haverá frequentemente casos em que a House of
Lords ache ser correto não seguir seu próprio precedente. Um exemplo de
um caso, em que a House of Lords poderia pensar ser correto afastar-se
de um precedente, ocorre quando ela considera que a decisão anterior foi
influenciada pela existência de condições que não prevalecem mais e
que, nas condições atuais, o direito deve ser diferente. Uma
consequência dessa mudança é de suma importância. O afrouxamento da
regra do precedente judicial habilitará a House of Lords a prestar mais
atenção a decisões judiciais alcançadas nos tribunais superiores da
Commonwealth onde elas divergem de decisões anteriores da House of
Lords. Isso poderia ser de grande ajuda no desenvolvimento de nosso
próprio direito. Os tribunais superiores de muitos outros países não
estão rigidamente obrigados por suas próprias decisões e a mudança da
prática da House of Lords nos colocará mais em consonância com eles”.
Entretanto, é importante deixar claro que a simples existência do
“Practice Statement”, outorgando à House of Lords a faculdade de
afastar-se de seus precedentes, não implicou o uso corriqueiro dela. O
que se viu, após quase 50 anos de experiência, foi a House of Lords (e a
sua sucessora, a Supreme Court of the United Kingdom) usando dessa
potestade com moderação.
E isso será demonstrado no artigo da semana que vem.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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