RUA DA CRUZ Nos
39 E 40
Valério Mesquita*
Quando estou na rua da Cruz, em Macaíba, vejo o
tempo. Uma das reminiscências mais gratas da minha infância está exatamente
situada nos números 39 e 40. É um cenário de lembranças inapagáveis de vultos e
instantes vitais. Rua estreita, mas bicentenária, a rua Francisco da Cruz é um
universo de recordações onde as Cinco Bocas continuam a ser o seu epicentro.
Todas as artérias que convergem para ele são como estuários de rios antigos
navegados por velhos moradores de histórias sem fim. A residência de número 39,
é a de dona Nair de Andrade Mesquita. Nela vivi praticamente toda a minha
existência. Já rememorei, em crônica, o seu jardim e as dimensões emocionais
dos seus habitantes e dos seus cômodos. Sempre foi a casa de portas abertas e o
abrigo seguro dos pobres e desvalidos. Nela estão gravadas nas paredes os
gestos humanos do seu capataz, o velho Alfredo Mesquita, meu pai, que sempre resgatava
o brilho dos seus olhos na visão repetida das ruas de sua cidade, como eterno
namorado e provinciano. A casa de nº 39, era a sua Escola de Sagres, de onde nunca quis sair ou viajar,
porque se revigorava com o vento leste do qual falava o poeta Gilberto Avelino.
Preferia a janelinha aberta sobre a imensidão de sua aldeia, onde sempre viveu
franciscano e disponível ao seu povo. O casal Mesquita e Nair foram habitantes
permanentes da área da casa de número 40, dos amigos Francisco Canindé de Moura
e Joanete Ribeiro Moura. Todos os dias, todas as noites,
lanço um olhar retrospectivo e de saudade para a área e reencontro os seus
alegres convivas: Mário Fernandes, Irene Monteiro, Dulce Matias (Dona), Cícero
Pessoa, Anita Simplicio, Mesquita e Nair, e, comandando essa nave do tempo, Seu
Chico Moura e D. Joanete, ambos de saudosa memória.
Vez em quando vou revisitar tudo para sentir o vento e o tempo.
Renovo entre as lembranças, o jogo de sueca, o sorvete das tardes de domingo
antes do jogo de futebol, onde ia, menino, sob os cuidados de Chico Moura, ao
campo perto do velho cemitério de São Miguel. Revejo o mesmo mosaico e paredes
da casa, testemunhas de conversas políticas e mexericos sobre a vida da cidade.
Recordei as lorotas e as frases de Joanete, extrovertida e alegre ratificando
uma fofoca: “Juro, pelos peitos da cachorra de João Facão!”. Ou a outra
exclamação pesarosa quando escutava o sino da igreja matriz dobrando finados
por alguém falecido: “Ai, meu Deus, quem será o triste da pancada do sino!”.
Com minha mãe, durante muito tempo, formou uma dupla insuperável de apostadoras
no “jogo do bicho”. Sistematicamente “amarravam” o gato na milhar, na dezena,
na centena e no grupo (gato é o nº 14). E durante mais de três meses, não deu
gato na banca e daí desistiram por algum tempo. São histórias simples porque
hoje, Nair e Joanete, ambas viúvas, solitárias, já desencarnaram mas vivem,
ainda nas casas 39 e 40. As suas idades, somadas, chegaram a quase cento e
noventa anos, pois eram praticamente da mesma geração.
As duas residências, de frente uma para a outra, me parecem dois
relicários de um mundo semidesaparecido de castas
emoções e de sublime beleza humana. Recorro agora à frase espiritualista de dona
Nair: “Meu filho, são as transformações da vida”.
(*) Escritor.
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