16/12/2015

   
Marcelo Alves


Obediência cega (II)


Como dito na semana passada, de meados do século XIX até o ano de 1966, a House of Lords (que, antes da entrada em funcionamento da Supreme Court of the United Kingdom, em 2009, era, além de uma das casas do Legislativo, a mais alta corte de justiça do Reino Unido), formalmente renunciando ao poder de superar suas próprias decisões anteriores, seguia o princípio de que um precedente não pode, em hipótese alguma, deixar de ser aplicado. Só em 1966, a House of Lords anunciou, em “Practice Statement”, que seus juízes (e, por conseguinte, a corte como um todo) poderiam afastar-se das suas anteriores decisões quando assim achassem correto. 

Entretanto, como também já dito, a simples existência do “Practice Statement”, outorgando à House of Lords a faculdade de afastar-se de seus precedentes, não implicou o uso corriqueiro dela. O que se viu, após quase cinco décadas de experiência, foi a House of Lords (e a sua sucessora, a Supreme Court of the United Kingdom) usando dessa potestade com moderação. Quando o fez, realizando o chamado “overruling” (ou seja, revogando um precedente seu), é porque existiam fortíssimas razões para tanto, que iam além da mera “incorreção” do precedente revogado, todas elas consideradas judiciosamente. 

A decisão do caso Miliangos v. George Frank (Textiles) Ltd. [1975] 3 WLR 758, [1976] AC 443 ilustra, de modo singelo, o que é aqui dito. Nela, Lord Simon, ao ter a Corte decidido afastar-se do antigo precedente, afirmou (em tradução livre): “As cortes que estão vinculadas à regra do 'stare decisis' não estão livres para desconsiderar um precedente de outro modo vinculante, alegando [simplesmente] que a razão que levou à formulação da regra contida em tal precedente parece à Corte ter perdido sua força”. 

Um exemplo ainda melhor, porque nele detalhadamente expostos os vários motivos que levaram a revogação do precedente, é R v. Shivpuri [1986] 2 WLR 988, [1987] AC 417, no qual aduziu Lord Brige of Harwich (mais uma vez em tradução livre): “Sou (...) levado à conclusão de que não há base para que Anderton v. Ryan possa ser distinguido. Eu deixei clara minha própria convicção, a qual é uma parte da decisão (e rogando a indulgência dos meus nobres e cultos amigos que com ela concordaram). Eu sou mais inclinado a afirmar que a decisão foi errada. O que, então, é para ser feito? Se o caso não é distinguível, a aplicação da doutrina do precedente, no seu senso estrito, requereria que o presente recurso fosse provido. É admissível afastar-se do precedente sob o 'Practice Statement' de 1966 ([1966] 3 ALL ER 77, [1966] 1 WLR 1234) apesar da necessidade especial de certeza no direito criminal? As considerações seguintes levam-me a responder a essa pergunta afirmativamente. Primeiramente, eu não estou amedrontado pela afirmação de que a decisão em Anderton v. Ryan era muito recente. O 'Practice Statement' de 1966 é um abandono efetivo de nossa pretensão à infalibilidade. Se um erro sério constante de uma decisão desta Casa distorceu o direito, quanto mais breve possível ele seja corrigido melhor. Em segundo lugar, eu não posso ver, na hipótese do caso, como alguém poderia atuar com confiança no direito conforme exposto em Anderton v. Ryan, na crença de que ele estava agindo inocentemente, e agora achar que, depois de tudo, se deve considerar que ele cometeu um delito criminal. Em terceiro lugar, manter a House of Lords obrigada a seguir Anderton v. Ryan porque não pode ser distinguida e prover o recurso neste caso, a meu ver, seria equivalente a uma declaração de que o 1981 Act deixou a disciplina legal sobre os crimes tentados sem modificação, seguindo a decisão em Houghton v. Smith [1973] 3 ALL ER 1109, [1975] AC 476. Finalmente, se, contrariamente à minha opinião aqui, existir uma base na qual seria conveniente distinguir casos similares àquele considerado em Anderton v. Ryan, minha opinião sobre essa questão não excluiria a opção de fazer tal distinção em algum caso futuro. Eu não posso finalizar esta 'opinion' sem expor que eu tive a vantagem, desde o término da argumentação neste recurso, de ler um artigo do Professor Glanville Williams denominado The Lords and Impossible Attempts ou Quis Custodet Ipsos Custodies? [1986] CLJ 33. A linguagem com a qual ele critica a decisão em Anderton v. Ryan não é célebre por sua prudência, mas seria insensato, neste caso, não reconhecer a força da crítica e rude não reconhecer o auxílio que eu busquei a partir dela”. 

É verdade que ainda há divergência entre os estudiosos da jurisprudência da House of Lords sobre se a Casa, em alguns dos seus julgamentos mais conhecidos, apontados como de “overruling”, teria verdadeiramente afastado-se de um precedente seu. De toda sorte, as estatísticas não deixam dúvida sobre comportamento “conservador” da House of Lords no que toca à faculdade dada pelo “Practice Statement” de 1966. Victoria Sesma (em “El precedente em el common law”, editora Civitas, 1995), por exemplo, relaciona, até o ano de 1991, os seguintes casos, em que a Corte utilizou, de forma clara, do “overruling”: The Johanna Oldendorff [1974] AC 479; Miliangos v. George Frank (textiles) Ltd [1976] AC 443; Dick v. Burgh of Falkirk [1976] STL 21; Vestey v. Commissioners of Inland Revenue [1980] AC 1148; R v. Secretary of State for the Home Departament, ex parte Khawaja [1984] AC 74; R v. Shivpuri [1986] 2 WLR 988, [1987] AC 417; e Murpph v. Brentwood District Council [1990] ALL ER 908. Michael Zander (em “The Law-Making Process”, editora Butterworths, 1999), por sua vez, informa que Alan Paterson, na obra “The Law Lords” (de 1982), “descobriu que, nos anos de 1980 a 1996, houve 29 casos em que a House of Lords foi convidada a rejeitar um de seus próprios precedentes (ou em que a questão foi levantada pelos próprios Law Lords sem incitação de advogado). O percentual de sucesso foi de 28% (8 dos 29), mas, em 10 outros casos, pelo menos um dos Law Lords desejou rejeitar o precedente anterior da House of Lords”. 

Mas, afinal, quais seriam os critérios para se revogar ou não um precedente? Existe no direito inglês uma regra ou mesmo uma orientação para tanto? 

Isso veremos no artigo da semana que vem, o terceiro e último desta série. 

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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