Sobre “O Terceiro Homem” (II) Na semana passada, escrevi aqui sobre o “O Terceiro Homem” (“The Third Man”, no original), por muitos (pode-se dizer por quase todos) considerado o melhor filme britânico de todos os tempos. E prometi que, no artigo seguinte, explicaria a razão dessa veneração à película dirigida por Carol Reed (1906-1976) com base em roteiro de Graham Greene (1904-1991).
Cumpro hoje a promessa, listando as principais qualidades, pelo menos na minha modesta opinião, do celebrado “Terceiro Homem”.
Antes de mais nada, temos as questões “básicas” do roteiro, da direção e da performance do elenco. Como já dito na semana passada, “O Terceiro Homem” representa o ponto mais alto da parceria, que nos deu outros excelentes filmes, entre o escritor/roteirista Graham Greene e multipremiado diretor Carol Reed. A estória é excelente, a direção foi muitíssimo imaginativa e precisa. Os dois mandaram muito bem, obrigado. No mais, sob a direção de Carol Reed, com maestria atuaram Joseph Cotten (Holly Martins), Orson Welles (Harry Lime), Alida Valli (Anna Schmidt) e Trevor Howard (Major Calloway), entre outros. Joseph Cotten (1905-1994), por exemplo, a meu ver, esteve excelente como o fraco, vacilante, ingênuo e bêbado Holly Martins. Orson Welles (1915-1985) beirou a perfeição como o carismático “bad guy” Harry Lime. E olhem, como lembra Don Shiach (em “Great British Movies”, editora Pockets Essential, 2006), que não deve ter sido fácil para Carol Reed dirigir o genial mas vaidoso Orson Welles.
Mas “O Terceiro Homem” distingue-se - e principalmente - por outros aspectos que vão além disso (do roteiro, da direção e da performance do elenco).
Um deles, para muitos o mais importante, é o papel de própria cidade de Viena no Filme. Na competentíssima fotografia de Robert Krasker (1913-1981), uma Viena escura, vazia, decaída, perigosa - e, ao mesmo tempo, muito bela - nos é mostrada. E talvez seja mesmo a grandiosa ruína dessa cidade devastada pela guerra, como defende o já citado Don Shiach (em “Great British Movies”), a principal personagem desse cultuado filme.
Ademais, a trilha sonora de “O Terceiro Homem”, de responsabilidade de Anton Karas (1906-1985), que para tanto apenas faz uso da cítara (tipo de instrumento musical comum nos países de língua alemã e da Europa do leste), é simplesmente fantástica. Comercializada posteriormente nas mídias sonoras da época, ela foi campeã de vendas, tanto no Reino Unido como Estado Unidos da América, o que fez de Karas, para seu próprio desgosto (dizem), uma celebridade internacional. De fato, em perfeita simbiose com a fotografia de uma Viena em ruínas, muito da atmosfera “noir” do filme, que nos absorve, deve-se à sua maravilhosa música. Disso estou certo.
Outro ponto interessante desse filme de “amizade, amor, lealdade e traição” está na “maldade atrativa” da personagem interpretada por Orson Welles. Harry Lime é um criminoso, contrabandista e falsificador de Penicilina, que, na Viena pós-guerra, causou a morte e a invalidez física e mental de centenas de adultos e crianças. Sínico e sem escrúpulos, ao ponto delatar a ex-amante (que estava irregularmente no setor ocidental de Viena) para conseguir um ou outro favor dos soviéticos, ele é, a despeito das iniquidades cometidas, capaz de provocar a admiração de alguns e, sobretudo, o amor sem contestação da bela mulher.
Há, por fim, seja no filme ou na novela posteriormente publicada por Graham Greene, os diálogos (e os “silêncios eloquentes”, expressão que, para o bem ou para o mal, está hoje em moda no direito brasileiro), com frases cortantes, quase todas postas na boca da personagem Harry Lime. As frases ditas no encontro de Holly Martins com Harry Lime, na famosa Roda Gigante do parque de diversões Prater, em Viena, são antológicas. Do alto da roda gigante, olhando para as pessoas abaixo, Lime as compara a pontos, afirmando, para justificar seus atos, ser insignificante se elas parassem de se mover, mesmo que para sempre. E ali pronuncia a mais famosa frase do filme, a do “relógio cuco suíço”, que, sabemos hoje, não constava do roteiro original de Graham Greene, sendo adicionada por Orson Welles (muito embora não seja uma ideia original deste grande ator/diretor): “Na Itália, em trinta anos sob os Bórgia, eles tiveram guerra, terror, assassinatos e banhos de sangue, mas eles produziram Michelangelo, Leonardo da Vinci e a Renascença. Na Suíça, eles tiveram amor fraterno, eles tiveram quinhentos anos de democracia e paz - e o que produziram? O Relógio cuco”. E há outra: “Atualmente, meu caro, ninguém pensa em termos de seres humanos. Os governos não pensam assim, por que deveríamos? Eles falam no povo e no proletariado, e eu falo em otários. É a mesma coisa”. E mais outra: “Ora, eu ainda acredito, meu caro. Em Deus, na misericórdia e tudo mais. Não estou machucando a alma de ninguém com minhas atividades. Os mortos são mais felizes mortos. Não estão perdendo grande coisa daqui, pobres coitados”. Tudo sempre dito, como acrescenta o autor Graham Greene na novela publicada, “com um toque de genuína piedade...”.
Bom, dito isso, um tanto abruptamente (reconheço), paro por aqui. Entendam como um silêncio eloquente, à moda daquele dado pela bela Anna Schmidt nos últimos instantes do filme, mas aqui significando apenas uma coisa: assistam “O Terceiro Homem”.
Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito pelo King’s College London – KCL Mestre em Direito pela PUC/SP
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