28/01/2015

Uma opinião

 O remédio amargo dos editais

 O artista hoje: entre o 'proponente' e o pedinte
    
Almandrade



    O artista que passa o tempo recluso na solidão do ateliê, trabalhando,
    desenvolvendo sua experiência estética, como um operário da linguagem
    e do pensamento, está em extinção. É coisa de museu.

    Ou melhor, é raridade nos museus de arte, que estão deixando de ser
    instituições de referência da memória para servir de cenários para
    legitimação do espetáculo. Às vezes, com míseros recursos que ficamos
    até sem saber direito: quando nos deparamos com baldes e bacias nessas
    instituições, se são para amparar a goteira do telhado ou se se trata
    de uma instalação, contemplada por um edital para aquisição de obras
    contemporâneas...

    O que interessa na política cultural nem sempre é a arte e a cultura,
    e, sim, o glamour. Em nome da arte contemporânea, faz-se qualquer
    coisa que dê "visibilidade".

    As políticas públicas foram relegadas às leis de incentivo à cultura e
    aos editais públicos. Nunca se fez tantos editais neste País, como
    atualmente, para, no fim das contas, fazer da arte um "suplemento
    cultural", o bolo da noiva na festa de casamento.

    Na fala do filósofo alemão Theodor Adorno: "As obras de arte que se
    apresentam sem resíduo à reflexão e ao pensamento não são obras de
    arte". Do ponto de vista da reflexão, do pensamento e do conhecimento,
    a cultura não é prioridade. Na política dos museus, o objeto já não é
    mais o museu que se multiplicou, juntamente com os chamados "centros
    culturais", nos últimos anos.

    Com vaidade de supermercado, na maioria das vezes, eles disponibilizam
    produtos perecíveis, novidades com prazo de validade, para estimular o
    consumo, vetor de aquecimento da economia. A qualificação ficou no
    papel, na publicidade do concurso.

    Esses editais que bancam a cultura são iniciativas que vêm ganhando
    força. Mostram ser um processo de seleção com regras claras para
    administrar o repasse de recursos, muito bem vendidos na mídia, como
    métodos de democratizar o "acesso" e a "distribuição de verbas" para
    as práticas culturais.

    Mas nem são tão democráticos assim. Podem ser um instrumento possível
    e eficiente em certos casos, mas não são a solução, é possível
    funcionarem, também, como escudo, para dissimular responsabilidades
    pela produção, preservação e segurança do patrimônio cultural.

    Considerando-se, ainda, a contratação de "consultorias", funcionários,
    despesas de divulgação, inscrição... o trabalho árduo e apressado de
    seleção... é tudo, enfim, um custo considerável, que, em último caso,
    gera "serviços" e renda.

    O artista contemporâneo deixa de ser artista para ser proponente,
    empresário cultural, "captador" de recursos, um especialista na área
    de elaboração de projetos, com conhecimentos indispensáveis de
    "processo público" e interpretação de leis. Dedica grande parte de seu
    tempo a esse negócio burocrático, que é a elaboração e execução de
    projetos, prestações de contas etc., todos contaminado pela lógica do
    marketing... coisas incompatíveis com o artista em si, que apostou na
    arte como uma "opção de vida" e com forma de conhecimento, algo que
    exige dedicação exclusiva...

    Ou, pior ainda: o artista fica à mercê de uma "produtora cultural",
    para quem essa política de editais e fomento à cultura é, aliás, um
    excelente negócio...

    Mais uma coisa é preocupante: e se essa política de editais se
    estender até a sucateada área da saúde, por exemplo? Imaginem uma
    "seleção pública" para pacientes do Sistema Único de Saúde, que
    necessitem de procedimentos médicos... Os que não forem
    "democraticamente contemplados", teriam de apelar para a providência
    divina, já engarrafada com a demanda de tantos pedidos...

    Nem é bom imaginar. Que esta praga fique restrita aos limites da
    esfera cultural... Na pior das hipóteses, é uma "torneira" que sempre
    se abre para atender parte de uma superpopulação de artistas,
    proponentes, pedintes...

    O artista, cada vez mais, é um técnico passivo com direito a diploma
    de "bem comportado" em "preenchimento de formulário". E seu produto
    ficou relegado ao controle dos burocratas do Estado, e à "boa vontade"
    dos executivos de marketing das grandes empresas...

    Se o projeto é bem apresentado, com boa "justificativa" de gastos e
    retornos, o produto a ser patrocinado ou financiado... se é mediano,
    se é excepcional, não importa! O que importa é a "formatação", a
    "objetividade" do orçamento, a clareza das "etapas" e a
    "visibilidade", o "produto final"...

    Como sempre, existem as chamadas exceções, mas...

    Almandrade
    (artista plástico, poeta e arquiteto)

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