OS POBRES DE PARIS
TOMISLAV R. FEMINICK
A chacina realizada por
fundamentalistas islâmicos que resultou na morte de cartunistas do
jornal “Charlie Hebdo” e de policiais franceses chocou o mundo e nada,
absolutamente nada, justifica esse ato terrorista. No entanto, há que se
procurar as causas que fazem com que imigrantes do norte da África, e
jovens descendentes desses imigrantes que moram na França, se rebelem e
abracem a luta contra a democracia e a liberdade. Por julgar oportuno,
republico uma crônica que integra meu livro “Conexões e reflexões sobre
economia” (Jundiaí-SP, 2011), em que Celso Furtado analisa esse
problema.
Cirilo, o Círio (com C mesmo, pois Círio é seu nome e Cirilo seu
apelido, entre os amigos) era uma figura conhecida entre os professores
de uma universidade paulista, aonde eu ministrava aulas. Embora não
fosse professor, vivia na sala dos professores e, com o passar do tempo,
se transformo no quebra-galho para problemas de toda natureza.
Reconhecia firmas em cartórios, resolvia problemas no Detran, na
Prefeitura, na Receita Federal e até desembaraçava mercadorias no
aeroporto. Cobrava pouco, quase nada, pois não era formalmente um
Despachante; era procurador. Um belo dia nos surpreendeu. Chegou na sala
e soltou a notícia: “Adeus para todo mundo. Amanhã vou embora. Vou
morar em Paris, com minha irmã. O marido dela, um francês, morreu e ela
conseguiu uma autorização de permanência para mim”. Perdemos o nosso
procurador-despachante.
Alguns poucos anos depois, quando eu estava fazendo pesquisa no Muséum
National D’Histoire Naturelle, mas precisamente no Musée de l’Homme
(Museu do Homem), na capital francesa, sou surpreendido por um abraço de
Cirilo. Fomos tomar um café, ali mesmo na Place du Trocadéro. As suas
notícias era boas. Ainda estava morando com a sua irmã, estava namorando
uma francesa, ex-costureira da Maison Christian Dior. Mas, o mais
importante era que sua irmã era amiga de Celso Furtado e, agora, ele era
o quebra-galho (procurador) do mestre lá em Paris. Essa última parte
despertou a minha atenção. Disse-lhe que tinha conhecido o Dr. Celso
anos antes – aqui em Natal – e tínhamos participado de alguns eventos
sobre economia, no Rio e em São Paulo. Cirilo, o Círio, pediu licença
por uns minutos, se levantou e saiu. Instante depois voltou e disse-me;
“Pronto. Está tudo resolvido. Vamos almoçar com le monsieur Furtado”. E
fomos.
Foi uma conversação amigável, mais que um almoço – o mestre tinha se
convertido à “nouvelle cuisine française” (muito sabor e pouca comida).
Entre os assuntos desse bate-papo, surgiu o problema da imigração na
França. A opinião de Celso Furtado era que, um dia qualquer, num futuro
muito próximo, a situação de aparente calmaria iria explodir em uma
comoção social. Isso por culpa das boas intenções política e social dos
franceses, mas, principalmente, pelas restrições econômicas – e, em
decorrência, também sociais – impostas aos emigrantes. Foi uma aula.
Sua tese (aqui reproduzida de memória e, portanto, sujeita a lapsos e
erros) era que os franceses quando aceitam um emigrante querem fazer
dele um francês. Dão-lhe os conceitos teóricos de liberdade, igualdade e
fraternidade, mas em troca exigem que ele perca a sua identidade de
origem, se esqueçam dos costumes, hábitos e crenças herdados dos seus
antepassados. Dão a cidadania ou o direito de morar na França, mas não
lhe dão condições econômicas iguais as que têm os franceses. A
consequência é a degradação social do individuo. E o resultado disso é a
formação de grupos de pessoas de baixa renda, que passam a ser
discriminados pelos franceses tradicionais. Esses grupos se juntam e
terminam formando aglomerados urbanos, cujos habitantes têm menos
oportunidade de trabalho e quando trabalham ganham menos. Como era de se
esperar, nesses lugares o índice de criminalidade é maior do que no
resto do país. Então, os emigrantes são tratados como párias e
criminosos, por uma parcela dos franceses.
O mestre tinha razão. Para os emigrantes liberdade, igualdade e
fraternidade são meros conceitos teóricos. E agora Paris está em
chamas.
O Jornal de Hoje e O Mossoroense. Natal/Mossoró, Nov. 2005.
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