M E U C A R O P A P A I N O E L
Gileno Guanabara, do IHGRN
Antes de tudo, minhas desculpas por já
não ter lhe escrito. Aproveito agora, através do Jornal de Hoje, com a tolerância
de Marcos Aurélio. O silêncio é confidente. Por força da idade, não me dou mais
o direito de ficar esperando ansioso, na noite do Natal, o presente, seja lá qual
fosse. Aguardarei o galo cantar na madrugada e sei que haverá uma nova manhã, sem
ilusões.
O que digo é
singelo. Não me refiro à saúde de qualquer de nós, haja vista que os institutos
de pesquisas, especialistas em fraudar a intenção política dos outros, terem avisado,
para a tranquilidade geral, que já dispomos de alguns anos excedentes. Não obrigatoriamente
anos excelentes, mas, ao que parece, a informação tem fundamento, pois vejo os integrantes
da terceira idade fogosos, ativos, no comércio, excitados nos bailes funks,
diferentes de outrora como eram tratados os idosos.
Também não
almejo um outro amor, puro e verdadeiro, porque o benefício dos prazeres se
esgarçou, tanto tempo de serventia e paixão cometida e agora só dá para o gasto
da consumição. Não se trata de uma desculpa. No entanto, pergunto: para que um
novo amor? ... E respondo que me dou por satisfeito... O agasalho da paixão ganhou
com o tempo uma nova configuração. Agora, é a comunhão que se satisfaz em
gestos cotidianos, enquanto a pulsação muscular esmorece a cada impulso do
ventrículo esquerdo do miocárdio.
É
auspiciosa, Papai Noel, a sua presença, num shopping moderno, com sua fatiota
vermelha extravagante, o cabelo e a barba encobertos por fios brancos da lua em
serenata, de gorro na cabeça, abraçando as crianças, ainda que por mera obrigação,
deixando-se fotografar para as lembranças futuras delas. Tem tudo a ver com o
sonho que já não consigo sentir. Do meu recanto, limito-me à alegria da
criançada e justifico o esforço, o seu gesto repetitivo de acomodá-las no colo,
beijá-las a cada uma, como se fosse a primeira, despertar o afago como lenitivo
da amizade desabrochada num sorriso singelo de criança agradecida.
Concordo que
o seu trono é muito enfeitado, Papai Noel, mas é diferente dos sofás ocupados
por brutos que mentem e não sabem beijar alguém. A sua cadeira recebe pingos de
gente e enormes espíritos de paz, a uma só vez. Diferentemente, no assento deles
o cheiro do mofo da maldade não se apaga, falta o gosto da amizade que é capaz de
despertar o sono leve de quem, pelo embalo se satisfaz antes
do abraço.
O saco de
seda, de cor igual ao de sua roupa, recolhe os presentes a serem doados aos
mais animados de seus amiguinhos. Não são lá grande coisa. Mesmo que seja um
doce embrulhado em coberturas de papel colorido, já conforta a expectativa
mágica de recebe-lo. Pode até acontecer que um presente diferente surpreenda a
imaginação criadora de quem não esperava recebê-lo, sem imaginar a graça de quem
tenha tido a benfazeja ação de colocá-lo na sua bonança.
Ao ver o
instante mágico de sua chegada, os passos ofegantes, o delírio infantil e esperançoso
de um afago, a fita da memória retrocede ao tempo que faz urgir lembranças
agradáveis. Tempo da Rua Gonçalves Ledo, outrora “Rua 31 de Março”, onde residiam,
entre outras almas santificais, duas gêmeas de sangue e bondade, da família “Leiros”.
Seus nomes eram Segunda e Terceira. Deve ter existido Primeira, a quem não conheci. Elas não
tinham filhos, eram funcionárias públicas do Lactário do Departamento de Saúde
Pública, defronte ao prédio que foi Atheneu, na Avenida Junqueira Aires, começo
da Ribeira.
Na casa das
irmãs, no mês de dezembro, ocupando toda a sala de frente, que dava prá rua, as
irmãs edificavam o presépio colorido que era aberto à visitação das crianças da
Cidade Alta. Havia a integração mágica de luzes minúsculas, biscuits de animais
domésticos, pastores com cajado em punho, suplicantes em fila indiana e outros
caminhantes. Em especial, as figuras dos três reis magos, que traziam ofertas
símbolos da vida, da riqueza e do perfume com o cheiro do perdão. Uma estrela maior
se projetava do teto e apontava o caminho. O tapete de arroz, folículos a um
mesmo tempo nascidos, dispostos numa integração ecológica, sinalizava a vereda palmilhada
pelo bom samaritano, o pai, em resguardo pelo natalício ocorrente. No centro
daquela encenação, à meia luz, estava a manjedoura confeccionada de palha, no
cerco do curral, acalento simples para a mãe que agasalha o filho. Tinha-se o encanto
da perseguição que se projetava em nossa inocência, um rito de adoração que se
devotava em êxtase, qual a sobrevivência imaginária do menino rei. O seu louvor
se repete em nós todos os anos. Ao final da visita, todos saiam regozijados e
constritos. Só não entendia porque, passados os dias de folia dos reis, o
presépio tinha de ser desmontado, voltar a usual normalidade da sala. Mas assim
é o vai-e-vem da vida, é o correr dos dias.
A tradição
dos presépios, a manjedoura, o menino e o Natal se resumem no mérito de
vitrines comerciais ou de árvores de aço estilizadas que disputam o lusco-fusco
do consumo, com custeio do poder público. Não sei dizer se o foco delas fomenta
o necessário espírito da solidariedade e da boa comunhão entre os mortais. Tudo
muito descartável.
Se a verdade
é cruel, Papai Noel, no entanto ela é infinita e diferenciada. A criança cresce
e por último ganha semelhanças com os adultos. Alguns falam pouco, pouco dizem.
Outros falam demais. Pode até a afoiteza do pecado alterar-lhes a peçonha. Lamento.
Concluo, meu bom velhinho, que nem tudo está perdido. Sua presença conforta e sua
palavra rouca afaga. Existirão sempre crianças que vão se mostrar esperançosas.
De minha parte, devo prosseguir nos caminhos que aprendi, sem cobrar propinas
pelo que faço, sem me locupletar, na esperança de um mundo melhor.
Um Feliz
Natal para os que fazem o Jornal de Hoje e seus leitores.
Nenhum comentário:
Postar um comentário