02/01/2015

REFLEXOS DO NATAL DE 2014


            M E U   C A R O   P A P A I   N O E L
Gileno Guanabara, do IHGRN

Antes de tudo, minhas desculpas por já não ter lhe escrito. Aproveito agora, através do Jornal de Hoje, com a tolerância de Marcos Aurélio. O silêncio é confidente. Por força da idade, não me dou mais o direito de ficar esperando ansioso, na noite do Natal, o presente, seja lá qual fosse. Aguardarei o galo cantar na madrugada e sei que haverá uma nova manhã, sem ilusões.

            O que digo é singelo. Não me refiro à saúde de qualquer de nós, haja vista que os institutos de pesquisas, especialistas em fraudar a intenção política dos outros, terem avisado, para a tranquilidade geral, que já dispomos de alguns anos excedentes. Não obrigatoriamente anos excelentes, mas, ao que parece, a informação tem fundamento, pois vejo os integrantes da terceira idade fogosos, ativos, no comércio, excitados nos bailes funks, diferentes de outrora como eram tratados os idosos.

            Também não almejo um outro amor, puro e verdadeiro, porque o benefício dos prazeres se esgarçou, tanto tempo de serventia e paixão cometida e agora só dá para o gasto da consumição. Não se trata de uma desculpa. No entanto, pergunto: para que um novo amor? ... E respondo que me dou por satisfeito... O agasalho da paixão ganhou com o tempo uma nova configuração. Agora, é a comunhão que se satisfaz em gestos cotidianos, enquanto a pulsação muscular esmorece a cada impulso do ventrículo esquerdo do miocárdio.

            É auspiciosa, Papai Noel, a sua presença, num shopping moderno, com sua fatiota vermelha extravagante, o cabelo e a barba encobertos por fios brancos da lua em serenata, de gorro na cabeça, abraçando as crianças, ainda que por mera obrigação, deixando-se fotografar para as lembranças futuras delas. Tem tudo a ver com o sonho que já não consigo sentir. Do meu recanto, limito-me à alegria da criançada e justifico o esforço, o seu gesto repetitivo de acomodá-las no colo, beijá-las a cada uma, como se fosse a primeira, despertar o afago como lenitivo da amizade desabrochada num sorriso singelo de criança agradecida.

            Concordo que o seu trono é muito enfeitado, Papai Noel, mas é diferente dos sofás ocupados por brutos que mentem e não sabem beijar alguém. A sua cadeira recebe pingos de gente e enormes espíritos de paz, a uma só vez. Diferentemente, no assento deles o cheiro do mofo da maldade não se apaga, falta o gosto da amizade que é capaz de despertar o sono leve de quem, pelo embalo se satisfaz antes do abraço.

            O saco de seda, de cor igual ao de sua roupa, recolhe os presentes a serem doados aos mais animados de seus amiguinhos. Não são lá grande coisa. Mesmo que seja um doce embrulhado em coberturas de papel colorido, já conforta a expectativa mágica de recebe-lo. Pode até acontecer que um presente diferente surpreenda a imaginação criadora de quem não esperava recebê-lo, sem imaginar a graça de quem tenha tido a benfazeja ação de colocá-lo na sua bonança.

            Ao ver o instante mágico de sua chegada, os passos ofegantes, o delírio infantil e esperançoso de um afago, a fita da memória retrocede ao tempo que faz urgir lembranças agradáveis. Tempo da Rua Gonçalves Ledo, outrora “Rua 31 de Março”, onde residiam, entre outras almas santificais, duas gêmeas de sangue e bondade, da família “Leiros”. Seus nomes eram Segunda e Terceira. Deve ter existido Primeira, a quem não conheci. Elas não tinham filhos, eram funcionárias públicas do Lactário do Departamento de Saúde Pública, defronte ao prédio que foi Atheneu, na Avenida Junqueira Aires, começo da Ribeira.

            Na casa das irmãs, no mês de dezembro, ocupando toda a sala de frente, que dava prá rua, as irmãs edificavam o presépio colorido que era aberto à visitação das crianças da Cidade Alta. Havia a integração mágica de luzes minúsculas, biscuits de animais domésticos, pastores com cajado em punho, suplicantes em fila indiana e outros caminhantes. Em especial, as figuras dos três reis magos, que traziam ofertas símbolos da vida, da riqueza e do perfume com o cheiro do perdão. Uma estrela maior se projetava do teto e apontava o caminho. O tapete de arroz, folículos a um mesmo tempo nascidos, dispostos numa integração ecológica, sinalizava a vereda palmilhada pelo bom samaritano, o pai, em resguardo pelo natalício ocorrente. No centro daquela encenação, à meia luz, estava a manjedoura confeccionada de palha, no cerco do curral, acalento simples para a mãe que agasalha o filho. Tinha-se o encanto da perseguição que se projetava em nossa inocência, um rito de adoração que se devotava em êxtase, qual a sobrevivência imaginária do menino rei. O seu louvor se repete em nós todos os anos. Ao final da visita, todos saiam regozijados e constritos. Só não entendia porque, passados os dias de folia dos reis, o presépio tinha de ser desmontado, voltar a usual normalidade da sala. Mas assim é o vai-e-vem da vida, é o correr dos dias.

            A tradição dos presépios, a manjedoura, o menino e o Natal se resumem no mérito de vitrines comerciais ou de árvores de aço estilizadas que disputam o lusco-fusco do consumo, com custeio do poder público. Não sei dizer se o foco delas fomenta o necessário espírito da solidariedade e da boa comunhão entre os mortais. Tudo muito descartável.

            Se a verdade é cruel, Papai Noel, no entanto ela é infinita e diferenciada. A criança cresce e por último ganha semelhanças com os adultos. Alguns falam pouco, pouco dizem. Outros falam demais. Pode até a afoiteza do pecado alterar-lhes a peçonha. Lamento. Concluo, meu bom velhinho, que nem tudo está perdido. Sua presença conforta e sua palavra rouca afaga. Existirão sempre crianças que vão se mostrar esperançosas. De minha parte, devo prosseguir nos caminhos que aprendi, sem cobrar propinas pelo que faço, sem me locupletar, na esperança de um mundo melhor.

            Um Feliz Natal para os que fazem o Jornal de Hoje e seus leitores.

             

             

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