CIVILIZAÇÃO ENJAULADA
Públio José – jornalista
Certas
imagens – embora aparentemente sem importância – deveriam marcar a
paisagem profundamente. Mas não conseguem. A rotina diária, impregnada
de violência acontecente a todo momento, faz com que certos fatos
ocorram e sumam na poeira do tempo sem deixar rastro, sem nenhum
registro. Esse contexto, por sinal, se insere na luta da grande mídia em
selecionar o que acontece nos mais variados recantos para trazê-lo à
presença do expectador. E, apesar das modernas tecnologias à sua
disposição, e do batalhão de profissionais que emprega, inúmeros
episódios fogem ao foco da grande mídia. Frise-se, porém, que tais
fatos, embora não sofrendo registro, permanecem importantes,
impactantes, e cumprem o papel de expressar, de expor, para quem os
presencia, o modus vivendi das gerações de hoje. Em suma, coisas acontecem, muitos não tomam conhecimento – mas elas estão aí. Acontecem.
Essa introdução serve para trazer à tona o registro de um fato e de
como ele expressa o paradoxo de fazermos parte de uma nação dita
civilizada e que, ao mesmo tempo, produz episódios de pura selvageria,
coisa de deixar de queixo caído bárbaros de épocas pré-históricas. Para
demonstrar essa realidade, não precisamos nem nos apegar à espantosa
roubalheira que toma conta dos altos escalões da administração pública
em todas as instâncias. Basta, apenas, nos fixarmos no futebol. Por
sinal, em termos de imagem impactante, o futebol é cenário farto e rico.
E é uma imagem de um jogo de futebol – ou melhor, de seu final, que nos
deixa a refletir sobre o impacto que certas cenas deveriam causar e
como somem na fumaça da rotina e do anonimato. E, afinal, o que se viu?
Teve tiros, mortes, cenas em delegacias de polícia ou em emergências de
hospital? Não. Foi pacífico, então, o que se viu? Foi.
Então, onde está a estupefação, o queixo caído, os olhos arregalados?
Era fim de um jogo entre os times do ABC e do América, noite de uma
quarta-feira qualquer. De fora do estádio, dava para se ver o cortejo de
torcedores americanos em direção ao estacionamento e às paradas de
ônibus. E aí, o que chamou a atenção? Só havia ali, naquele momento,
torcedores de um time só. E os da outra agremiação, do ABC, onde
estavam? Enjaulados. Enjaulados? Isso mesmo. De fora do estádio, via-se o
frenesi dos que tratavam de ir pra casa, enquanto a outra torcida
permanecia trancafiada no interior do estádio. Alguns agarravam-se às
grades dos portões, como querendo apressar a saída, dando a nítida
impressão, a quem olhava de fora, de que algo de grave acontecera e que
fora necessária a retenção de alguns para o restabelecimento e a
manutenção da ordem. Engano. Nada de grave acontecera.
Explicação: aqueles torcedores não estavam presos, retidos. Porém, a
polícia e os administradores do estádio não se arriscavam a permitir que
as duas torcidas saíssem ao mesmo tempo. Elas não poderiam se
encontrar. Uau! Seria, digamos, uma medida de prevenção. Certamente,
baseada em fato anterior que levou as autoridades a adotar a cautela.
Que cena! Ali, presos – à espera de que os outros torcedores tomassem
seus destinos – estariam homens simples do povo, mas também, e com
certeza, magistrados, políticos, altos funcionários públicos,
jornalistas, médicos, advogados, professores, empresários... Gente de
poder, responsável, em grade parte, pelos destinos da cidade. Estranha
civilização essa em que tais pessoas, em função de uma paixão, se veem
na condição de bárbaros, de incivilizados, de irracionais – por não
poderem conviver com outros que nutrem paixão diferente. Enjaulados.
Uau...
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