Um novo apelo à igualdade
Já defendi em outros escritos o princípio da igualdade. E não só a
igualdade perante a lei – proclamada na Declaração Universal dos
Direitos Humanos (1948), art. VII –, que vem sendo consagrada, como um
verdadeiro dogma político e jurídico, nas mais diversas constituições,
dos mais diversos países, como é o caso da Constituição brasileira de
1988. Defendi uma igualdade para além do plano normativo, tendo ela
lugar, talvez até com maior destaque, na solução dos casos concretos da
nossa existência em sociedade. De fato, a lei – que deve ser igual para
todos – deve ser também, se semelhantes as situações envolvidas,
igualmente interpretada e aplicada. De nada adianta, estou certo, a lei
ser proclamada igual para todos se, caso a caso, quando estamos perante o
Judiciário, ela não é aplicada ou é aplicada de modo desigual.
Volto à carga com esse tema, porque estamos passando por um período
especialmente difícil em nosso direito quanto à aplicação jurisdicional
do tal princípio da igualdade. Os casos concretos são muitos. Dariam
para encher várias páginas de jornal. Mas vou me ater apenas a um
exemplo mais genérico. A faculdade de um ministro-relator no Supremo
Tribunal Federal, com alegado fundamento nos arts. 21, I, e 22, ambos do
Regimento Interno do STF, de decidir determinadas questões
monocraticamente ou afetá-las à sua respectiva Turma ou mesmo ao
Plenário da Corte. Esse foi considerado, pelo Plenário do STF, como um
poder discricionário do relator (HC 143.333/PR). E simplesmente restamos
sem critério seguro para essa faculdade. Assim, muitas vezes,
escolhe-se o órgão julgador, antevendo, o próprio relator, a
probabilidade de restar vencedor ou vencido no caso. Esta semana a coisa
ficou muito clara no STF, dada a diferença de posicionamento na corte,
entre o Plenário e a 2ª Turma, quanto ao tema “prisão após a condenação
em segundo grau”. Isso cria um “samba do crioulo doido”. A depender do
órgão julgador, que foi simplesmente “escolhido” – cadê o princípio do
juiz natural? –, o sujeito vai para casa ou não. Isso é definitivamente
péssimo.
Registro que não defendo que casos semelhantes devam ser,
necessariamente, para todo o sempre, julgados da mesma forma. Que nunca,
nunquinha, possam haver mudanças. Claro que não. Decisões diferentes
(ou aparentemente diferentes) são possíveis, mas serão necessárias
argumentações específicas, que enfrentem a questão e mostrem que essa
decisão “diferente” é a mais justa. A possibilidade de distinguir, por
exemplo, como meio de dar flexibilidade ao sistema, é uma válvula de
escape, desde que se faça realmente justiça às peculiaridades do caso
concreto. Doutra banda, algumas vezes, deve-se dar a devida valoração às
circunstâncias em que o caso precedente foi julgado. Um juiz ou
tribunal, apesar de reconhecer que, acerca do caso em julgamento, há
decisão anterior, pode se afastar dela reconhecendo a alteração das
circunstâncias que impõem uma decisão noutro sentido. Mas nada disso
pode ser usado indiscriminadamente, sob pena de ferir, com uma injustiça
gritante, o princípio da isonomia ou mesmo de levar à falência “moral”
do sistema (o que, com certeza, é o menos desejado).
Aqui faço uso das palavras proferidas por Roberto Rosas e Paulo
Cezar Aragão (em “Comentários ao Código de Processo Civil”, título
publicado pela Revista dos Tribunais no já distante ano de 1998): “O
princípio da igualdade de todos perante a lei parecerá irrealizável, se a
lei for interpretada de modo diverso, apesar de serem idênticas as
situações. Não importa tanto a concepção do igualitarismo jurídico, mas
sim a forma e a moralidade que o condicionaram, como frisou Kelsen. O
homem do povo não concebe duas decisões antagônicas resolvendo a mesma
tese, o mesmo princípio, o mesmo fato. Por isso, José Alberto dos Reis,
dissera: que importa a lei ser igual para todos, se for aplicada de modo
diferente a casos análogos? Antes jurisprudência errada, mas uniforme,
de que jurisprudência incerta. Perante jurisprudência uniforme cada um
sabe, com o que pode contar; perante jurisprudência incerta, ninguém
está seguro do seu direito”.
E ninguém menos que Ronald Dworkin (em “Levando os direitos a
sério”, edição da Martins Fontes de 2002), buscando enxergar a coisa
pela ótica dos juízes e do jurisdicionado, aponta no mesmo sentido: “um
precedente é um relato de uma decisão política anterior; o próprio fato
dessa decisão, enquanto fragmento da história política, oferece alguma
razão para se decidir outros casos de maneira similar no futuro. (…). Se
o governo de uma comunidade obrigou o fabricante de carros defeituosos a
indenizar uma mulher que se feriu por causa desse defeito, então este
fato histórico deve oferecer alguma razão para que este mesmo governo
exija, de um empreiteiro que causou prejuízo econômico devido ao
trabalho malfeito de seus empregados, que compense os danos decorrentes.
Podemos testar o peso dessa razão não perguntando se a linguagem da
decisão anterior, devidamente interpretada, exige que o empreiteiro
pague indenizações, mas perguntando se é justo que o governo, depois de
intervir do modo como fez no primeiro caso, recuse sua ajuda no
segundo”.
E eu – com a ajuda de Rosas, Aragão, Kelsen, Reis, Dworkin e do
resto do time – faço um apelo aos nossos juízes para que eles não
queiram ser legisladores. Como lembra o já citado Dworkin: “é muito
comum que o legislador se preocupe apenas com questões fundamentais de
moralidade ou de política fundamental ao decidir como vai votar alguma
questão específica. Ele não precisa mostrar que seu voto é coerente com
os votos de seus colegas do poder legislativo, ou com os de legislaturas
passadas”. Mas um juiz só muito raramente – raramente mesmo – deve
mostrar esse tipo de independência. Ele deve sempre tentar associar a
justificação que dá para sua decisão, tenha ela o grau de originalidade
que for, às decisões que outros juízes tomaram no passado em casos
similares. Essa equidade, de tratar os casos semelhantes do mesmo modo, é
de imensa sabedoria. Podem ter certeza.
Termino este riscado com um alerta. Para o cidadão, nada mais justo
que casos semelhantes sejam resolvidos de modo semelhante; ao revés,
nada mais injusto que esses casos (semelhantes) sejam decididos,
arbitrariamente, de modos diversos. Mas hoje em dia, uma das expressões
que mais ouvimos dos operadores do direito é “eu penso assim”, quando,
sem dúvida, deveríamos escutar “a lei diz isso”. Parece que, hoje, quase
todo promotor ou juiz (ministro do STF, então…) quer ser legislador.
Isso é péssimo. Definitivamente.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP |
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