O papel de cada um
Benjamin N. Cardozo, em sua clássica obra “The nature of judicial
process” (originalmente publicada em 1921, mas que aqui cito em edição
fac-símile da Yale University Press de 1991), reconhece “a criação do
direito pelo juiz como uma das realidades existentes da vida”. O famoso
juiz e jurista americano pergunta: “Onde o juiz encontra o direito que
incorpora em seu julgamento?”. E responde: “Há momentos em que a fonte é
óbvia. A regra que se enquadra no caso deve ser fornecida pela
Constituição ou por lei”. Entretanto, mais adiante ele completa: “É
verdade que códigos e leis não tornam o juiz supérfluo nem seu trabalho
perfunctório ou mecânico. Há lacunas a serem preenchidas. Há dúvidas e
ambiguidades a serem esclarecidas. Há dificuldades e erros a serem
mitigados, se não evitados”.
Sempre estive com Cardozo, reconhecendo também que o poder de
proclamar o direito, dado a todos os juízes, traz consigo o poder – e
mesmo o dever – de criar o direito, quando o direito é incerto ou não
existe direito algum. Como sabemos, o princípio constitucional da
inafastabilidade do controle jurisdicional e a proibição do “non liquet”
compõem o nosso direito. E a interpretação e a integração do direito
estão aí para atender a essas duas exigências do nosso sistema jurídico.
Mas isso não dá poderes ilimitados aos juízes. A criação judicial
do direito é, no Brasil e em qualquer nação minimamente civilizada,
supletiva (em relação ao Legislativo). E deve sempre ser. Afinal, como
afirmou o juiz Brett Kavanaugh, recentemente indicado para a Suprema
Corte dos Estados Unidos da América, fundamentalmente, “um juiz deve
interpretar a lei, e não escrevê-la”.
Essa diretriz – de proclamar e apenas supletivamente criar o
direito – vale tanto para os juízes de primeiro grau como para os
tribunais de apelação, para os tribunais superiores e mesmo para a
Suprema Corte, com os seus respectivos desembargadores e ministros
agindo juntos ou monocraticamente.
Há, claro, algumas peculiaridades nessa missão dos órgãos jurisdicionais de proclamar e, supletivamente, criar o direito.
Os juízes de primeiro grau e os dos tribunais de apelação (chamados
desembargadores) exercem, entre nós, um papel fundamental na
proclamação desse direito. Antes de qualquer coisa, eles têm um contato
maior (quase exclusivo) com as partes, os fatos e as provas do caso.
Ademais, acredito que, sopesados, de um lado, valores como estabilidade e
previsibilidade e, de outro, o desenvolvimento do direito (e aqui fica
implícito um certo grau de criatividade), nas decisões do juízes de
primeiro grau e dos tribunais de apelação aqueles dois primeiros valores
devem preponderar. Em grande parte, a consistência e a certeza do
direito dependem da mentalidade e do comportamento desses juízes e
tribunais. Eles são muitos e espalhados pelo país afora. Se exercerem a
criatividade num grau exagerado, o direito nacional ficará bastante
errático (mais do que já é).
Parece-me ser um pouco diferente o papel a ser exercido pelos
tribunais superiores (agindo como tribunais de última instância em
matéria não constitucional) e, com mais razão, pela nossa Suprema Corte.
Numa corte suprema ou de última instância, esse equilíbrio entre, de um
lado, a imprescindível estabilidade e previsibilidade do direito (que
resulta do seguimento de decisões tomadas anteriormente) e, de outro, o
desenvolvimento próprio do direito, pode – em alguns casos, deve –
pender para este último lado.
Nesse ponto, na quase sempre ponderada Inglaterra, há uma decisão
famosa da sua antiga House of Lords (que foi, durante séculos, a mais
alta corte do Reino Unido), no caso Davis v Johnson [1978] 2 WLR 553, em
que o Lord Diplock afirma: “Assim, [em uma corte recursal
intermediária] o equilíbrio não repousa no mesmo lugar em que repousa no
caso de uma corte de última instância”.
Ademais, acredito que mesmo uma corte suprema não pode ser
completamente “livre” na sua missão de “desenvolver o direito”. Ao
decidir “desenvolver” qualquer ponto do direito, ela deve sempre
seriamente ponderar, sob pena de infringir unilateralmente o equilíbrio
constitucional entre os poderes – no caso, aqui, sobretudo entre o
Legislativo e o Judiciário –, se essa não seria preferivelmente uma
matéria a ser deliberada pelo Parlamento. Cuida-se do princípio ou
argumento do “leave it to the Parliament”, frequentemente usado no mundo
anglo-saxão.
E para ilustrar o que digo agora, vou novamente fazer uso de uma
decisão da House of Lords inglesa, em R v Clegg [1995] 1 ALL ER 334, nas
palavras do Lord Lloyd: “Eu não sou contrário a que juízes desenvolvam o
direito, ou mesmo criem novo direito, no caso de eles poderem ver seu
caminho claramente, mesmo quando questões de política social estejam
envolvidas. (…). Mas, no caso presente, eu não tenho dúvida de que
Vossas Excelências devem abster-se de criar direito. A mudança do que
deveria ser, de outro modo, homicídio para homicídio culposo, numa
classe particular de casos, parece a mim essencialmente uma questão para
decisão do Legislativo, e não para esta House em sua função judicial.
Até porque o ponto em discussão é, na verdade, parte de uma discussão
mais ampla: se a prisão perpétua obrigatória por assassinato deve ainda
ser mantida. Essa questão mais ampla somente pode ser decidida pelo
Parlamento. Eu diria o mesmo para o ponto em discussão neste caso. Dessa
maneira, eu responderia à questão de direito como se segue: nos fatos
estabelecidos e assumindo que nenhuma outra defesa está disponível, o
soldado ou policial será culpado de homicídio doloso, e não de homicídio
culposo. Disso resulta que a apelação deve ser improvida”.
Por fim, registro que toco nesse tema porque estou muito preocupado
com o ativismo de certos operadores do nosso sistema judicial (e aqui
ponho no mesmo balaio membros do Ministério Público e juízes, cada qual
nos seus respectivos papéis), proativamente interferindo, constante e
significativamente (leia-se, assim, indevidamente), nas opções políticas
dos outros dois poderes do Estado. Aqui, mais especificamente, no que
foi deliberado pelo Legislativo. E juiz não é legislador, insisto.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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