Cabeça de juiz
No artigo da semana passada, defendi aqui, enfaticamente, a
aplicação do princípio da igualdade para além do plano normativo. Para
mim, a lei – que deve ser igual para todos – deve ser também, perante o
Judiciário, se semelhantes as situações envolvidas, igualmente
interpretada e aplicada. Para mim – e acredito que para o cidadão médio
também –, nada mais justo que casos semelhantes sejam resolvidos de modo
semelhante; ao revés, nada mais injusto que esses casos (semelhantes)
sejam decididos, arbitrariamente, de modos diversos. E, para mim, um
juiz deve sempre tentar associar a sua decisão, tenha ela o grau de
originalidade que for, às decisões que outros juízes tomaram no passado
em casos similares. Essa postura, de tratar os casos semelhantes do
mesmo modo, é de imensa sabedoria.
Mas há certamente quem se oponha a isso. E esses alegam, com
frequência, um tal “princípio da persuasão racional do juiz”, que,
levado ao extremo por alguns juízes, lhes dá licença para decidir como
querem. Por isso não é sem alguma razão que se diz: “De cabeça de juiz,
de barriga de grávida e de bunda de neném, nunca se sabe o que vem”.
Acontece que essa visão refratária à igualdade – e, por
consequência, também à estabilidade e à previsibilidade do direito – é
de uma falta de pragmatismo inconcebível, pois, em prol de um suposto
livre convencimento do juiz, joga fora todos esses valores (igualdade,
estabilidade e previsibilidade). E, além de ser uma visão romântica e
irreal, ela também é contrária ao interesse público. Indaga-se: há algum
interesse público em fomentar a rebeldia ou as diferenças de tratamento
em processos com questões fáticas e/ou de direito semelhantes? Claro
que não. A quem serviria essa “mitológica” liberdade de convencimento? A
pouquíssimos, a algumas vaidades no Judiciário e no Ministério Público e
a alguns advogados mais espertos (não vai nenhuma crítica às classes
como um todo, por óbvio).
É claro que não se deseja tirar dos juízes o seu livre convencimento
motivado. E muito menos transformar suas decisões numa simples mecânica
de aplicar a lei ou um precedente ao caso em julgamento. Até porque,
sei muito bem, isso é impossível. A atividade judicial nunca se reduz a
uma simples operação lógica neutra, de verificar se os fatos do caso se
subsumem numa hipótese legal ou num precedente e, assim, proferir uma
sentença/solução (num silogismo em que a premissa maior é a
lei/precedente, a menor é o fato e o corolário é a sentença). Outros
fatores – fatores psíquicos e interesses os mais variados – sempre
entram nessa equação.
O que se deseja é evitar que esse livre convencimento vire
arbitrariedade (leia-se: independência sem controle). Quer-se impedir,
na medida do possível, que a sorte dos litigantes fique ao sabor das
frequentes mudanças das composições dos tribunais e das mudanças de
entendimento disso decorrentes (o que é muito comum hoje no Brasil,
criando-se discursos escancaradamente contraditórios), que fique ao
sabor da simples distribuição do feito a esse ou aquele órgão julgador
ou, o que é ainda pior, que fique ao sabor da vaidade ou da
idiossincrasia infrutífera do juiz de um caso. Apenas isso.
É importante também deixar claro que não se quer impor aos juízes e
aos tribunais amarras que lhes tolham a possibilidade de futuramente
enxergar o direito de uma maneira nova, toda vez que o entendimento
comumente adotado já se mostre superado pelos inevitáveis câmbios
sociais. De modo algum. Se o direito deve tender à estabilidade, ele não
pode ser inalterável. Devemos procurar conciliar essas duas realidades
contraditórias: estabilidade e transformação. Achar uma fórmula que
consiga conciliar um corpo de direito fixo, que não permita
diferenciações discricionárias, com as ideias de transformação,
desenvolvimento e criatividade. Essa, sim, seria uma regra de ouro.
Houve um tempo – aliás, curiosamente, bem antes da criação de
instrumentos como a súmula vinculante, a repercussão geral ou o recurso
especial repetitivo – em que os ministros do Supremo Tribunal Federal
também pensavam assim, como eu penso. E eis uma história, que parece
quase uma anedota, contada por Francisco Rezek, quando ainda Ministro do
STF, que bem ilustra o mal dessa super “licença” para decidir: “Houve
uma época – membros mais antigos deste Tribunal o recordam – em que
determinado Tribunal de Justiça, numa prestigiosa unidade da Federação,
dava-se crônica e assumidamente a desafiar a jurisprudência do Supremo a
respeito de um tema sumulado (um tema, por sinal, menor: a
representatividade da ofendida em caso de crime contra os costumes). O
Supremo tinha posição firme, constante e unânime a respeito, e certo
Tribunal de Justiça, porque pensava diferentemente, dava-se à prática de
decidir nos termos de sua própria convicção, valorizando a chamada
‘liberdade de convencimento’, própria de todo juiz ou tribunal.
Resultado: todas essas decisões eram, mediante recurso, derrubadas por
esta casa. Aquilo que deveria acabar na origem, à luz da jurisprudência
do Supremo, só acabava aqui, depois de um lamentável dispêndio de
recursos financeiros, de tempo e de energia, num Judiciário já
congestionado e com tempo mínimo para cuidar de coisas novas. E quando
acontecia de a jurisprudência do Supremo acabar não prevalecendo, e de a
decisão do tribunal rebelde encontrar seu momento de glória? Quando o
réu, porque assistido por advogado relapso, ou porque carente de outros
meios, não apresentava recurso… Só nessa circunstância a infeliz
rebeldia contra a jurisprudência do Supremo dava certo. Com todo
respeito pelo que pensam alguns processualistas, não vejo beleza alguma
nisso. Pelo contrário, parece-me uma situação imoral, com que a
consciência jurídica não deveria, em hipótese alguma, contemporizar
(trecho do seu voto na Ação Declaratória de Constitucionalidade 1-1/DF,
Relator Ministro Moreira Alves, julgamento em 27.10.1993, publicação da
decisão no DJ de 16.06.1995).
Esse era o Supremo Tribunal Federal de Moreira Alves e Francisco
Rezek. Mas as cabeças mudaram. Inclusive no STF. E, nesse ponto, com
certeza, não foi para melhor.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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