Estabilidade e previsibilidade
Tenho defendido aqui, enfaticamente, a aplicação do princípio da
igualdade para além do plano normativo. Para mim, a lei – que deve ser
igual para todos – deve ser também, perante o Judiciário, se semelhantes
as situações envolvidas, igualmente interpretada e aplicada. Isso,
repito, é de imensa sabedoria.
Mas vou além. A igualdade na aplicação do direito está intimamente
relacionada a outros dois valores, também fundamentais para a excelência
de qualquer sistema jurídico: a estabilidade e a previsibilidade do
direito.
Um direito estável é salutar para qualquer país. A instabilidade,
com regras de direito constantemente reformuladas e aplicadas de maneira
inconsistente, prejudica muito a confiabilidade no sistema.
Infelizmente, a instabilidade do direito parece já fazer parte da
tradição brasileira, sofrendo o nosso sistema jurídico, num grau
altíssimo, desse problema. Rapidamente, basta lembrar já haver tido o
Brasil, ao longo de sua curta existência como país independente (menos
de 200 anos), inúmeras constituições, ao contrário, por exemplo, dos
Estados Unidos da América, país apenas um pouco mais “velho”, que, até
hoje, mantém a sua primeira Constituição.
A mesma coisa se dá no plano jurisprudencial. Aliás, neste caso,
penso que até num grau maior. Entre nós, a sorte dos litigantes fica
muito ao sabor das frequentes mudanças das composições dos tribunais e
das mudanças de entendimento decorrentes disso, da distribuição do feito
a esse ou aquele órgão julgador e, pasmem, das preferências ideológicas
ou pessoais do juiz do caso. E não são somente as questões entre
litigantes privados que ficam ao sabor dessas eventualidades. Questões
fundamentais de ordem pública – não raramente por pressão de alguns
interessados, da mídia ou das tais “redes sociais” – também entram no
jogo, como, por exemplo, tem-se dado com o foro privilegiado de
autoridades nacionais. Desde que milito na profissão – e não sou tão
velho assim –, a orientação no Supremo Tribunal Federal quanto ao tema
já mudou um sem-número de vezes. Não faz dois meses, mais uma mudança,
cujo resultado só Deus pode apostar se para melhor ou para pior.
Devíamos, na verdade, dar mais atenção à lição de Eugen Ehrlich (em
trecho da sua obra “Fundamentos da sociologia do direito”, constante do
livro “Os grandes filósofos do direito”, organizado por Clarence Morris
e publicado entre nós pela Martins Fontes em 2002), um dos fundadores
da jurisprudência sociológica e um dos líderes do movimento do direito
livre, que defende aquilo que chama de “lei da estabilidade das normas
legais”: “Ela baseia-se, em primeiro lugar, na psicologia social. Dar
decisões contrárias em casos iguais ou parecidos não seria direito, mas
sim arbitrariedade e capricho. Também se baseia numa certa saudável
qualidade econômica de pensamento. O gasto de trabalho intelectual que,
sem dúvida, está sempre envolvido na procura de normas de decisões,
muitas vezes pode ser evitado dando-se uma decisão segundo uma norma que
já foi encontrada. Além disso, há uma grande necessidade social de
normas estáveis, o que torna possível, em certa medida, prever e
predizer as decisões e, desse modo, colocar um homem em condições de
tomar as providências necessárias de acordo com isso”.
E como se pode ver da lição de Ehrlich, interligado à estabilidade
está um outro valor que todo sistema jurídico deve perseguir: a
previsibilidade ou certeza do direito. Como ensina o meu querido
orientador (no mestrado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
– PUC/SP) Arruda Alvim, em seu “Tratado de Direito Processual Civil”
(Editora Revista dos Tribunais, 1990): “Uma das funções primordiais do
Direito, na dinâmica judiciária, é a de fornecer a ‘certeza do Direito’,
entendida como aquela consistente na possibilidade, proporcionada aos
jurisdicionados, de que, através de um instrumental, haja o caminho
capaz de estabelecer a maior previsibilidade possível. A atividade
jurisdicional, no seu conjunto, deve proporcionar e traduzir essa
certeza, havendo de resultar da tarefa de se dizer o Direito, no seu
todo, um panorama de decisões apreciavelmente coincidentes sobre os
mesmos temas”.
Nada pior que uma mesma situação de fato ou de direito obtenha duas
interpretações ou respostas diferentes do Poder Judiciário. Não só por
ferir a igualdade, mas também por diminuir a certeza do direito, que é
um atributo necessário a qualquer sistema jurídico que se proponha
eficaz. Sem dúvida, a duplicidade de resposta do Judiciário, por mitigar
qualquer previsibilidade futura, ensejará no cidadão uma dubiedade
quanto à sua possível conduta.
Doutra banda, nada melhor do que um direito estável, em que juízes e
tribunais seguem as decisões tomadas em casos anteriores. O
conhecimento da existência dessa linha de decisões uniformes torna
previsível qual será a solução aplicada ao caso na hipótese de acontecer
alguma querela semelhante. Assim, desde logo, os indivíduos e as
pessoas jurídicas podem melhor ordenar suas condutas e seus negócios, e
os advogados, em sendo o caso, podem antecipadamente aconselhar seus
clientes, pois já há uma previsão (razoavelmente confiável) de como as
questões serão resolvidas judicialmente. Isso, podem ter certeza, é
grande coisa.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP |
Nenhum comentário:
Postar um comentário