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05/07/2018


 
 
   
Marcelo Alves

 


Um novo apelo à igualdade 

Já defendi em outros escritos o princípio da igualdade. E não só a igualdade perante a lei – proclamada na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), art. VII –, que vem sendo consagrada, como um verdadeiro dogma político e jurídico, nas mais diversas constituições, dos mais diversos países, como é o caso da Constituição brasileira de 1988. Defendi uma igualdade para além do plano normativo, tendo ela lugar, talvez até com maior destaque, na solução dos casos concretos da nossa existência em sociedade. De fato, a lei – que deve ser igual para todos – deve ser também, se semelhantes as situações envolvidas, igualmente interpretada e aplicada. De nada adianta, estou certo, a lei ser proclamada igual para todos se, caso a caso, quando estamos perante o Judiciário, ela não é aplicada ou é aplicada de modo desigual. 

Volto à carga com esse tema, porque estamos passando por um período especialmente difícil em nosso direito quanto à aplicação jurisdicional do tal princípio da igualdade. Os casos concretos são muitos. Dariam para encher várias páginas de jornal. Mas vou me ater apenas a um exemplo mais genérico. A faculdade de um ministro-relator no Supremo Tribunal Federal, com alegado fundamento nos arts. 21, I, e 22, ambos do Regimento Interno do STF, de decidir determinadas questões monocraticamente ou afetá-las à sua respectiva Turma ou mesmo ao Plenário da Corte. Esse foi considerado, pelo Plenário do STF, como um poder discricionário do relator (HC 143.333/PR). E simplesmente restamos sem critério seguro para essa faculdade. Assim, muitas vezes, escolhe-se o órgão julgador, antevendo, o próprio relator, a probabilidade de restar vencedor ou vencido no caso. Esta semana a coisa ficou muito clara no STF, dada a diferença de posicionamento na corte, entre o Plenário e a 2ª Turma, quanto ao tema “prisão após a condenação em segundo grau”. Isso cria um “samba do crioulo doido”. A depender do órgão julgador, que foi simplesmente “escolhido” – cadê o princípio do juiz natural? –, o sujeito vai para casa ou não. Isso é definitivamente péssimo. 

Registro que não defendo que casos semelhantes devam ser, necessariamente, para todo o sempre, julgados da mesma forma. Que nunca, nunquinha, possam haver mudanças. Claro que não. Decisões diferentes (ou aparentemente diferentes) são possíveis, mas serão necessárias argumentações específicas, que enfrentem a questão e mostrem que essa decisão “diferente” é a mais justa. A possibilidade de distinguir, por exemplo, como meio de dar flexibilidade ao sistema, é uma válvula de escape, desde que se faça realmente justiça às peculiaridades do caso concreto. Doutra banda, algumas vezes, deve-se dar a devida valoração às circunstâncias em que o caso precedente foi julgado. Um juiz ou tribunal, apesar de reconhecer que, acerca do caso em julgamento, há decisão anterior, pode se afastar dela reconhecendo a alteração das circunstâncias que impõem uma decisão noutro sentido. Mas nada disso pode ser usado indiscriminadamente, sob pena de ferir, com uma injustiça gritante, o princípio da isonomia ou mesmo de levar à falência “moral” do sistema (o que, com certeza, é o menos desejado). 

Aqui faço uso das palavras proferidas por Roberto Rosas e Paulo Cezar Aragão (em “Comentários ao Código de Processo Civil”, título publicado pela Revista dos Tribunais no já distante ano de 1998): “O princípio da igualdade de todos perante a lei parecerá irrealizável, se a lei for interpretada de modo diverso, apesar de serem idênticas as situações. Não importa tanto a concepção do igualitarismo jurídico, mas sim a forma e a moralidade que o condicionaram, como frisou Kelsen. O homem do povo não concebe duas decisões antagônicas resolvendo a mesma tese, o mesmo princípio, o mesmo fato. Por isso, José Alberto dos Reis, dissera: que importa a lei ser igual para todos, se for aplicada de modo diferente a casos análogos? Antes jurisprudência errada, mas uniforme, de que jurisprudência incerta. Perante jurisprudência uniforme cada um sabe, com o que pode contar; perante jurisprudência incerta, ninguém está seguro do seu direito”. 

E ninguém menos que Ronald Dworkin (em “Levando os direitos a sério”, edição da Martins Fontes de 2002), buscando enxergar a coisa pela ótica dos juízes e do jurisdicionado, aponta no mesmo sentido: “um precedente é um relato de uma decisão política anterior; o próprio fato dessa decisão, enquanto fragmento da história política, oferece alguma razão para se decidir outros casos de maneira similar no futuro. (…). Se o governo de uma comunidade obrigou o fabricante de carros defeituosos a indenizar uma mulher que se feriu por causa desse defeito, então este fato histórico deve oferecer alguma razão para que este mesmo governo exija, de um empreiteiro que causou prejuízo econômico devido ao trabalho malfeito de seus empregados, que compense os danos decorrentes. Podemos testar o peso dessa razão não perguntando se a linguagem da decisão anterior, devidamente interpretada, exige que o empreiteiro pague indenizações, mas perguntando se é justo que o governo, depois de intervir do modo como fez no primeiro caso, recuse sua ajuda no segundo”. 

E eu – com a ajuda de Rosas, Aragão, Kelsen, Reis, Dworkin e do resto do time – faço um apelo aos nossos juízes para que eles não queiram ser legisladores. Como lembra o já citado Dworkin: “é muito comum que o legislador se preocupe apenas com questões fundamentais de moralidade ou de política fundamental ao decidir como vai votar alguma questão específica. Ele não precisa mostrar que seu voto é coerente com os votos de seus colegas do poder legislativo, ou com os de legislaturas passadas”. Mas um juiz só muito raramente – raramente mesmo – deve mostrar esse tipo de independência. Ele deve sempre tentar associar a justificação que dá para sua decisão, tenha ela o grau de originalidade que for, às decisões que outros juízes tomaram no passado em casos similares. Essa equidade, de tratar os casos semelhantes do mesmo modo, é de imensa sabedoria. Podem ter certeza. 

Termino este riscado com um alerta. Para o cidadão, nada mais justo que casos semelhantes sejam resolvidos de modo semelhante; ao revés, nada mais injusto que esses casos (semelhantes) sejam decididos, arbitrariamente, de modos diversos. Mas hoje em dia, uma das expressões que mais ouvimos dos operadores do direito é “eu penso assim”, quando, sem dúvida, deveríamos escutar “a lei diz isso”. Parece que, hoje, quase todo promotor ou juiz (ministro do STF, então…) quer ser legislador. Isso é péssimo. Definitivamente. 

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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