O berço da democracia era escravocrata
Tomislav
R. Femenick – Autor do livro “Os
Escravos: da escravidão antiga à escravidão moderna” – Do IHGRN
A pátria da Democracia e o berço
da cultura ocidental, a Grécia era também uma terra de escravidão. Nela havia o
paradoxo da coexistência paralela da liberdade e da falta total de liberdade;
do homem racional e do homem mercadoria; do pensar e do executar; do cidadão
que “faz” o governo e do escravo; do indivíduo privado das características que
fazem o homem natural se transformar em um “ser” social pleno.
Alguns
documentos registram a presença de escravos já no período de formação da
civilização da Grécia Antiga. Neles há indícios de uma nítida separação de
classe, com a citação de homens livres, homens sem poder político, servos e
escravos, estes divididos em domésticos e de outras categorias. Os textos
empregam os termos “doero” e “doera”, para identificar homens e mulheres
escravizados. Estas palavras derivariam do termo “dos-e-lo”,
que tinha o sentido de “estrangeiros”, “inimigos” ou “servos”, de onde se
conclui que os escravos eram originalmente prisioneiros de guerra. Outros
textos evidenciam que, tanto o Estado como as pessoas de posse podiam ser
proprietários de escravos, pelo que se deduz que a escravidão era de caráter
patriarcal.
O período
seguinte da civilização grega foi quando o centro da vida foi transferido da
cidade (polis) para o campo (oikeus); voltado para um sistema de
produção-consumo, onde todos trabalhavam, o patriarca, seus dependentes e seus
escravos. O resultado foi catastrófico para o processo de elevação cultural,
pois as cidades foram reduzidas em tamanho e importância, algumas se
transformando em meras aldeias.
O novo modo
de vida alterou o sistema de propriedade dos meios de produção, inclusive dos
trabalhadores compulsórios. A terra, antes pertencente aos deuses, teve sua
posse assumida por pessoas. A sociedade retrocedeu a um estágio de economia
espontânea, com a exploração do trabalho escravo voltada para uma renda natural,
com uma economia monetária apenas complementar. A produção voltou-se para o
consumo familiar e para gerar apenas pequenos excedentes. Contraditoriamente,
nestas circunstâncias o trabalho escravo assumiu uma importância maior para a
produção de bens.
Por volta de
750 a.C., ocorreu uma outra transformação na sociedade grega. O crescimento da
população extravasou da propriedade rural e das aldeias. Os gregos migraram
para o litoral do mar Negro e para a Sicília, onde criaram colônias. Com a
importação de alimentos das colônias, as cidades puderam prescindir da produção
local, o que resultou na quase desarticulação da propriedade familiar rural e
no revigoramento das cidades-estados. A “polis”
voltou a ser o centro da vida na Grécia e a urbanização ensejou um novo
despontar cultural. A sociedade continuou dividida em classes, com uma grande
parcela de escravos em sua base social, e a escravidão, solidificada como
sistema, passou a contar com regulamentos e leis a ela voltados.
Embora fossem
poucos os proprietários com grande número de escravos, raras eram as atividades
em que os escravos não participavam como força produtora direta, tanto na
elaboração de bens como na prestação de serviços. Os escravos eram tecelões,
agricultores, pastores de animais, artesãos, domésticos, mineradores e
funcionários públicos, exercendo as funções de varredores de rua, construtores
de estradas, escrivães, carrascos e até de policiais. Muitas vezes
compartilhavam essas funções com trabalhadores livres. Era comum a acumulação de
tarefas, podendo um mesmo escravo ser servo doméstico e executar atividades
laborais na agricultura, por exemplo. Além de trabalhar para os seus senhores,
os cativos poderiam ser alugados a terceiros, ao Estado ou a particulares.
O período
seguinte, que compreende os séculos V e VI a.C., é conhecido como a era
clássica grega e foi o ápice da sua cultura nas artes, literatura, filosofia e
política. Atenas foi o palco democrático grego por excelência, porém dos seus
aproximadamente 500 mil habitantes, 300 mil (60%) não tinham direitos civis,
por serem escravos; 50 mil (10%), por serem estrangeiros; 40 mil (20%), por
serem mulheres e crianças.
Tribuna
do Norte. Natal, 17 jan. 2020.
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