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17/01/2020




O berço da democracia era escravocrata
Tomislav R. Femenick – Autor do livro “Os Escravos: da escravidão antiga à escravidão moderna” – Do IHGRN

A pátria da Democracia e o berço da cultura ocidental, a Grécia era também uma terra de escravidão. Nela havia o paradoxo da coexistência paralela da liberdade e da falta total de liberdade; do homem racional e do homem mercadoria; do pensar e do executar; do cidadão que “faz” o governo e do escravo; do indivíduo privado das características que fazem o homem natural se transformar em um “sersocial pleno.
Alguns documentos registram a presença de escravos já no período de formação da civilização da Grécia Antiga. Neles há indícios de uma nítida separação de classe, com a citação de homens livres, homens sem poder político, servos e escravos, estes divididos em domésticos e de outras categorias. Os textos empregam os termos “doero” e “doera”, para identificar homens e mulheres escravizados. Estas palavras derivariam do termo “dos-e-lo”, que tinha o sentido de “estrangeiros”, “inimigos” ou “servos”, de onde se conclui que os escravos eram originalmente prisioneiros de guerra. Outros textos evidenciam que, tanto o Estado como as pessoas de posse podiam ser proprietários de escravos, pelo que se deduz que a escravidão era de caráter patriarcal.
O período seguinte da civilização grega foi quando o centro da vida foi transferido da cidade (polis) para o campo (oikeus); voltado para um sistema de produção-consumo, onde todos trabalhavam, o patriarca, seus dependentes e seus escravos. O resultado foi catastrófico para o processo de elevação cultural, pois as cidades foram reduzidas em tamanho e importância, algumas se transformando em meras aldeias.
O novo modo de vida alterou o sistema de propriedade dos meios de produção, inclusive dos trabalhadores compulsórios. A terra, antes pertencente aos deuses, teve sua posse assumida por pessoas. A sociedade retrocedeu a um estágio de economia espontânea, com a exploração do trabalho escravo voltada para uma renda natural, com uma economia monetária apenas complementar. A produção voltou-se para o consumo familiar e para gerar apenas pequenos excedentes. Contraditoriamente, nestas circunstâncias o trabalho escravo assumiu uma importância maior para a produção de bens.
Por volta de 750 a.C., ocorreu uma outra transformação na sociedade grega. O crescimento da população extravasou da propriedade rural e das aldeias. Os gregos migraram para o litoral do mar Negro e para a Sicília, onde criaram colônias. Com a importação de alimentos das colônias, as cidades puderam prescindir da produção local, o que resultou na quase desarticulação da propriedade familiar rural e no revigoramento das cidades-estados. A “polis” voltou a ser o centro da vida na Grécia e a urbanização ensejou um novo despontar cultural. A sociedade continuou dividida em classes, com uma grande parcela de escravos em sua base social, e a escravidão, solidificada como sistema, passou a contar com regulamentos e leis a ela voltados.
Embora fossem poucos os proprietários com grande número de escravos, raras eram as atividades em que os escravos não participavam como força produtora direta, tanto na elaboração de bens como na prestação de serviços. Os escravos eram tecelões, agricultores, pastores de animais, artesãos, domésticos, mineradores e funcionários públicos, exercendo as funções de varredores de rua, construtores de estradas, escrivães, carrascos e até de policiais. Muitas vezes compartilhavam essas funções com trabalhadores livres. Era comum a acumulação de tarefas, podendo um mesmo escravo ser servo doméstico e executar atividades laborais na agricultura, por exemplo. Além de trabalhar para os seus senhores, os cativos poderiam ser alugados a terceiros, ao Estado ou a particulares.
O período seguinte, que compreende os séculos V e VI a.C., é conhecido como a era clássica grega e foi o ápice da sua cultura nas artes, literatura, filosofia e política. Atenas foi o palco democrático grego por excelência, porém dos seus aproximadamente 500 mil habitantes, 300 mil (60%) não tinham direitos civis, por serem escravos; 50 mil (10%), por serem estrangeiros; 40 mil (20%), por serem mulheres e crianças.

Tribuna do Norte. Natal, 17 jan. 2020.

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