Um terceiro tipo?
Os especialistas adoram classificar os romances policiais (ou
detetivescos) em dois tipos: policiais de enigma e policiais noir,
também chamados, respectivamente, de policiais ingleses e policiais
americanos, levando em consideração os países de onde esses dois
subgêneros de literatura (policial) teriam se originado.
Da Inglaterra, na categoria de policiais de enigma, vêm, por
exemplo, as estórias de Arthur Conan Doyle (1859-1930, escocês de
nascença) com o seu Sherlock Holmes e de C.K. Chesterton (1874-1936) com
o seu Father Brown. De lá também vem Agatha Christie (1890-1976), com
os seus impagáveis Hercule Poirot e Miss Marple, que para muitos
representa a quintessência do romance de enigma. Nesses policiais, via
de regra, o leitor é “convidado” a desvendar o crime. Ele segue os
passos e o raciocínio do detetive através de um jogo de pistas e
charadas até o final, em regra, surpreendente. Pode-se dizer que o
mistério é, de fato, o mais importante da estória, muito mais que o
ambiente em que ela se passa (por exemplo, o ambiente das estórias de
Agatha Christie é muito “saudável”, como a alta sociedade londrina,
pequenas cidadezinhas inglesas ou o pitoresco oriente próximo). Já dos
Estados Unidos da América vêm os clássicos do policial noir, escritos
por gente como Raymond Chandler (1888-1959) e Dashiell Hammett
(1894-1961), que, considerados os fundadores desse subgênero, são
seguidos por outros grandes autores como James M. Cain (1892-1977) e
Ross MacDonald (1915-1983). Chandler e Hammett, através dos seus
detetives Philip Marlowe e Sam Spade, nos apresentam um mundo estranho –
embora muitas vezes verdadeiro – de dinheiro abundante, destruição pelo
álcool, casamentos falidos, fêmeas fatais e assassinatos, tudo isso
misturado a um aparelho policial e judicial corrupto, enfrentado pelos
seus detetives durões. Aqui, a “atmosfera” na qual estão inseridas as
personagens, carregada, noir, é tão ou mais importante do que a trama em
si. Alguns autores, claro, transitam com igual familiaridade entre o
policial de enigma e o policial noir. Georges Simenon (1903-1989), com
os seus “Maigrets”, é um exemplo disso. Simenon/Maigret, não resta
dúvida, sempre nos “convidam” a desvendar o crime. Seguimos os passos do
detetive e as pistas deixadas pelo autor. Mas, para Maigret, o detetive
de Simenon, a atmosfera do local do crime e as peculiaridades das
condutas e da psicologia dos envolvidos são também fundamentais para
desvendar o mistério.
Sob um ponto de vista bem interessante, um dos que apontam essa
dicotomia entre policiais de enigma e policiais noir – e nós, pretensos
juristas, adoramos as dicotomias – é o linguista e pensador búlgaro
Tzvetan Todorov (1939-2017). Em “Poética da Prosa” (Editora Martins
Fontes, 2003), Todorov afirma que, no dito policial de enigma,
encontramos uma dualidade. Esse tipo de romance policial “não contém
uma, mas sim duas histórias: a história do crime e a história da
investigação. Em sua forma mais pura, essas duas histórias não têm
nenhum ponto em comum. (…). A primeira história, a do crime, termina
antes que a segunda comece. Mas o que acontece na segunda? Poucas
coisas. Os personagens dessa segunda história, a história da
investigação, não agem, só tomam conhecimento. Nada pode acontecer com
eles: uma regra do gênero postula a imunidade do detetive”. Já o dito
policial noir é um romance “que funde as duas histórias ou, em outras
palavras, suprime a primeira e dá vida à segunda. Não nos relatam mais
um crime anterior ao momento da narrativa, a narrativa coincide com a
ação. Nenhum romance noir é apresentado sob a forma de memórias: não há
um ponto de chegada a partir do qual o narrador abarcaria os
acontecimentos passados, não sabemos se ele chegará vivo ao final da
história. A prospectiva substitui a retrospectiva”. Se no policial de
enigma, os seus personagens principais (o detetive e um amigo
“narrador”, quase sempre) estão imunes a quaisquer vicissitudes, a
situação “se inverte no romance noir: tudo é possível, e o detetive põe
em risco sua saúde e até sua vida”.
Entretanto, o próprio Tzvetan Todorov especula a existência de um
terceiro tipo de romance policial, o “policial de suspense”, que teria
surgido da combinação das propriedades do policial de enigma e do
policial noir. Assim como no policial de enigma, o policial de suspense
tem duas histórias, a do passado e a do presente. Esta, entretanto, como
se dá no policial noir, é a mais importante. O leitor quer saber o que
se deu antes; mas a sua atenção se volta, sobretudo, para o que vai
acontecer na trama em desenvolvimento. Ele (o leitor) quer uma
explicação sobre os fatos passados, ponto de partida da estória, mas
está ainda mais curioso sobre o que vai acontecer, no decorrer da trama,
àqueles personagens principais, que, ao contrário do que se dá no
policial de enigma, estão com a vida em jogo o tempo todo. Os exemplos
mais típicos desse subtipo são, a meu ver, aquilo que Todorov apelidou
de histórias/estórias de “suspeito-detetive”, nas quais o autor
prescinde de um detetive profissional (ou mesmo amador) como personagem
principal e condutor da investigação, pondo, nessa posição, o próprio
suspeito do crime. Como explica Todorov, “nesse caso, um crime é
cometido nas primeiras páginas e as suspeitas da polícia recaem sobre
determinada pessoa (que é o personagem principal). Para provar sua
inocência, essa pessoa tem de encontrar por conta própria o verdadeiro
culpado, mesmo se para isso coloca a vida em perigo. Pode-se dizer que,
nesse caso, esse personagem é ao mesmo tempo o detetive, o culpado (aos
olhos da polícia) e a vítima (potencial, dos verdadeiros assassinos)”.
Um exemplo desse tipo de romance que me vem logo à mente é “The
Thirty-Nine Steps” (1915), de John Buchan (1875-1940), que foi
brilhantemente adaptado para o cinema por Alfred Hitchcock (1899-1980).
Até porque sou fã do “Mestre do Suspense”.
Mas aí é que está o problema: será que estamos mesmo diante de um
terceiro tipo de romance policial? Ou seria o caso de um outro gênero de
literatura, o dos romances de suspense?
Sei lá.
Essa divisão de gênero é sempre muito complicada.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP |
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