29/08/2018





Marcelo Alves

Um terceiro tipo?

Os especialistas adoram classificar os romances policiais (ou detetivescos) em dois tipos: policiais de enigma e policiais noir, também chamados, respectivamente, de policiais ingleses e policiais americanos, levando em consideração os países de onde esses dois subgêneros de literatura (policial) teriam se originado. 

Da Inglaterra, na categoria de policiais de enigma, vêm, por exemplo, as estórias de Arthur Conan Doyle (1859-1930, escocês de nascença) com o seu Sherlock Holmes e de C.K. Chesterton (1874-1936) com o seu Father Brown. De lá também vem Agatha Christie (1890-1976), com os seus impagáveis Hercule Poirot e Miss Marple, que para muitos representa a quintessência do romance de enigma. Nesses policiais, via de regra, o leitor é “convidado” a desvendar o crime. Ele segue os passos e o raciocínio do detetive através de um jogo de pistas e charadas até o final, em regra, surpreendente. Pode-se dizer que o mistério é, de fato, o mais importante da estória, muito mais que o ambiente em que ela se passa (por exemplo, o ambiente das estórias de Agatha Christie é muito “saudável”, como a alta sociedade londrina, pequenas cidadezinhas inglesas ou o pitoresco oriente próximo). Já dos Estados Unidos da América vêm os clássicos do policial noir, escritos por gente como Raymond Chandler (1888-1959) e Dashiell Hammett (1894-1961), que, considerados os fundadores desse subgênero, são seguidos por outros grandes autores como James M. Cain (1892-1977) e Ross MacDonald (1915-1983). Chandler e Hammett, através dos seus detetives Philip Marlowe e Sam Spade, nos apresentam um mundo estranho – embora muitas vezes verdadeiro – de dinheiro abundante, destruição pelo álcool, casamentos falidos, fêmeas fatais e assassinatos, tudo isso misturado a um aparelho policial e judicial corrupto, enfrentado pelos seus detetives durões. Aqui, a “atmosfera” na qual estão inseridas as personagens, carregada, noir, é tão ou mais importante do que a trama em si. Alguns autores, claro, transitam com igual familiaridade entre o policial de enigma e o policial noir. Georges Simenon (1903-1989), com os seus “Maigrets”, é um exemplo disso. Simenon/Maigret, não resta dúvida, sempre nos “convidam” a desvendar o crime. Seguimos os passos do detetive e as pistas deixadas pelo autor. Mas, para Maigret, o detetive de Simenon, a atmosfera do local do crime e as peculiaridades das condutas e da psicologia dos envolvidos são também fundamentais para desvendar o mistério. 

Sob um ponto de vista bem interessante, um dos que apontam essa dicotomia entre policiais de enigma e policiais noir – e nós, pretensos juristas, adoramos as dicotomias – é o linguista e pensador búlgaro Tzvetan Todorov (1939-2017). Em “Poética da Prosa” (Editora Martins Fontes, 2003), Todorov afirma que, no dito policial de enigma, encontramos uma dualidade. Esse tipo de romance policial “não contém uma, mas sim duas histórias: a história do crime e a história da investigação. Em sua forma mais pura, essas duas histórias não têm nenhum ponto em comum. (…). A primeira história, a do crime, termina antes que a segunda comece. Mas o que acontece na segunda? Poucas coisas. Os personagens dessa segunda história, a história da investigação, não agem, só tomam conhecimento. Nada pode acontecer com eles: uma regra do gênero postula a imunidade do detetive”. Já o dito policial noir é um romance “que funde as duas histórias ou, em outras palavras, suprime a primeira e dá vida à segunda. Não nos relatam mais um crime anterior ao momento da narrativa, a narrativa coincide com a ação. Nenhum romance noir é apresentado sob a forma de memórias: não há um ponto de chegada a partir do qual o narrador abarcaria os acontecimentos passados, não sabemos se ele chegará vivo ao final da história. A prospectiva substitui a retrospectiva”. Se no policial de enigma, os seus personagens principais (o detetive e um amigo “narrador”, quase sempre) estão imunes a quaisquer vicissitudes, a situação “se inverte no romance noir: tudo é possível, e o detetive põe em risco sua saúde e até sua vida”. 

Entretanto, o próprio Tzvetan Todorov especula a existência de um terceiro tipo de romance policial, o “policial de suspense”, que teria surgido da combinação das propriedades do policial de enigma e do policial noir. Assim como no policial de enigma, o policial de suspense tem duas histórias, a do passado e a do presente. Esta, entretanto, como se dá no policial noir, é a mais importante. O leitor quer saber o que se deu antes; mas a sua atenção se volta, sobretudo, para o que vai acontecer na trama em desenvolvimento. Ele (o leitor) quer uma explicação sobre os fatos passados, ponto de partida da estória, mas está ainda mais curioso sobre o que vai acontecer, no decorrer da trama, àqueles personagens principais, que, ao contrário do que se dá no policial de enigma, estão com a vida em jogo o tempo todo. Os exemplos mais típicos desse subtipo são, a meu ver, aquilo que Todorov apelidou de histórias/estórias de “suspeito-detetive”, nas quais o autor prescinde de um detetive profissional (ou mesmo amador) como personagem principal e condutor da investigação, pondo, nessa posição, o próprio suspeito do crime. Como explica Todorov, “nesse caso, um crime é cometido nas primeiras páginas e as suspeitas da polícia recaem sobre determinada pessoa (que é o personagem principal). Para provar sua inocência, essa pessoa tem de encontrar por conta própria o verdadeiro culpado, mesmo se para isso coloca a vida em perigo. Pode-se dizer que, nesse caso, esse personagem é ao mesmo tempo o detetive, o culpado (aos olhos da polícia) e a vítima (potencial, dos verdadeiros assassinos)”. Um exemplo desse tipo de romance que me vem logo à mente é “The Thirty-Nine Steps” (1915), de John Buchan (1875-1940), que foi brilhantemente adaptado para o cinema por Alfred Hitchcock (1899-1980). Até porque sou fã do “Mestre do Suspense”. 

Mas aí é que está o problema: será que estamos mesmo diante de um terceiro tipo de romance policial? Ou seria o caso de um outro gênero de literatura, o dos romances de suspense? 

Sei lá. 

Essa divisão de gênero é sempre muito complicada.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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