Sobre Francisco Suárez (I)
Dos mestres de Salamanca, talvez – posso até dizer, provavelmente –
quem mais tenha exercido influência na ciência jurídica vindoura tenha
sido Francisco Suárez (1548-1617), jesuíta, teólogo, filósofo e
jurisconsulto espanhol, nascido em Granada. Em 1564, ainda jovem, Suárez
entrou para a Companhia de Jesus, tendo se ordenado em 1572.
Doutorou-se em teologia em Évora. Foi professor de teologia e filosofia
em Segóvia, Valladolid, Alcalá, Salamanca, Roma e Coimbra. Apelidado de
“Doctor Eximius”, foi um dos maiores escolásticos pós São Tomás de
Aquino (1225-1274) e um dos pais da “segunda escolástica”, embora do
santo e dos demais tomistas tenha dissentido em alguns pontos da
doutrina. Deixou vários escritos, entre eles “De Incarnatione Verbi”
(1590) e “Disputationes Metaphysicae” (1597). E foi da “nossa” Coimbra
(onde chegou no fim do século XVI), em 1612, que nos legou o seu
badalado “Tractatus de Legibus ac Deo Legislatore”, obra profunda,
exposta em uma dezena de tomos, nos quais se discutem teologia,
psicologia, ética, filosofia e direito.
Maior jusfilósofo católico nessa passagem dos séculos XVI e XVII,
Francisco Suárez foi, de toda sorte, um homem do seu tempo e da cultura
de então. Como explica Cabral de Moncada, na sua clássica “Filosofia do
Direito e do Estado” (vol. 1, Arménio Amado Editor Sucessor, 1955), no
embate de tradições “que caracteriza o final do século XVI e os começos
do imediato, Suárez é bem – pode dizer-se – o homem em quem, como
escreveu Bossuet, se deixa ver admiravelmente toda a escola a que ele
pertence; 'en lui on voit toute l'école'. Essa escola era a Escolástica
e, mais particularmente, a Escolástica tomista do século XIII”.
E pode-se dizer, como o faz Paulo Jorge Lima (no seu “Dicionário de
filosofia do direito”, publicado pela editora Sugestões Literárias em
1968), que Francisco Suárez “deu caráter sistemático à teoria tomista do
Direito e da Justiça, representando o seu tratado De Legibus o esforço
mais completo até hoje realizado no sentido de apresentar uma filosofia
do Direito segundo a concepção teológica”.
De fato, em termos gerais, as concepções filosóficas de Suárez eram
as mesmas da escolástica do “Doctor Angelicus”. Afinal, Suárez era,
antes de tudo, como já dito, um tomista.
Mas é incorreto afirmar que o “Doctor Eximius” tenha se limitado a
apenas reproduzir, sem qualquer originalidade, a doutrina tomista, como
ela havia sido imaginada no já distante século XIII. Se a filosofia de
Suárez era a escolástica, era “essa filosofia modernizada, actualizada”.
“E tal actualização”, como ainda registra Cabral de Moncada, “dava-lhe
sobretudo a nova situação histórica da Igreja, depois do Renascimento e
da Reforma protestante. É preciso nunca perder isto de vista. A
actualização residia, porém, mais na preferente acentuação de certas
problemáticas e soluções, aliás já conhecidas e esboçadas dentro da
Philosophia perennis, do que em qualquer profunda reforma da essência e
substância desta. Suárez, numa palavra, via e abraçava todas as grandes
soluções desta escola, mas como um homem do seu tempo, repensando-as com
extraordinária coerência e rigor lógico, à luz da sua
contemporaneidade, sob a pressão dos novos interesses espirituais e
políticos do Catolicismo”.
Na verdade, o grande jesuíta, professor em Salamanca e Coimbra, deu
diversos tons originais à sua filosofia do direito, ao ponto de ensejar
toda uma plêiade de discípulos, os chamados “suaristas”, que
frequentemente querelavam com os tomistas ortodoxos sobre temas de
direito nos quais havia alguma divergência entre os dois grupos.
Embora coincidente em muitos pontos – por exemplo, seguindo Santo
Agostinho (354-430) e, especialmente, São Tomás de Aquino, Suárez chega a
afirmar que a “lex injusta non est lex” –, a própria concepção do que é
o direito para Suárez diverge consideravelmente daquilo que é defendido
ortodoxamente pelos tomistas de antes e de então. Conforme ensina
Cabral de Moncada, Suárez “vê a essência deste muito mais na lei do que
numa ordem universal de que a lei fosse já uma manifestação. Enquanto
que S. Tomás partia do direito para a lei, o filósofo-jurista da
Companhia de Jesus parte da lei para o direito. Não é debalde que o seu
Tratado se chama De Legibus. Deus é para ele, antes de tudo, um
legislador. Numa linguagem moderna, dir-se-ia que Suárez, como jurista, é
muito mais normativista do que ordinalista. O seu tratado é sobretudo
um estudo atento dessa fonte de direito, a lei: sua essência, suas
características e requisitos, suas formas e modalidades, desde a lei
eterna até à lei humana positiva. Na sua definição de lei (preceito
comum, justo, estável, suficientemente promulgado) está muito mais perto
de nós. De algum modo, poderíamos considerá-lo, neste aspecto, muito
menos universalista e portanto mais nominalista do que o seu grande
émulo do século XIII”.
Ademais, fundado na matriz tomista, com a “Suma Teológica” em mãos,
Francisco Suárez, a seu modo, analisou não somente os temas gerais da
ciência jurídica (o conceito de Justiça, o direito divino, o direito
natural, a lei e por aí vai), mas, também, institutos específicos do
direito, vinculados aos ordenamentos jurídicos então vigentes, tais como
o direito de propriedade e o próprio conceito de Estado soberano. E
partindo de premissas teológicas, como de regra se dava com os mestres
da sua escola (aqui refiro-me à escola de Salamanca), mas também
profundo conhecedor do direito romano e dos vários “direitos” vigentes
no seu tempo, ele extraiu novos conceitos e definições jurídicas
precisas acerca dos muitos temas por ele analisados.
Alguns desses conceitos e definições nós veremos no artigo da semana que vem.
Rogo apenas um pouco de paciência.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP |
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