17/08/2018


  
Marcelo Alves


Sobre Francisco Suárez (I)

Dos mestres de Salamanca, talvez – posso até dizer, provavelmente – quem mais tenha exercido influência na ciência jurídica vindoura tenha sido Francisco Suárez (1548-1617), jesuíta, teólogo, filósofo e jurisconsulto espanhol, nascido em Granada. Em 1564, ainda jovem, Suárez entrou para a Companhia de Jesus, tendo se ordenado em 1572. Doutorou-se em teologia em Évora. Foi professor de teologia e filosofia em Segóvia, Valladolid, Alcalá, Salamanca, Roma e Coimbra. Apelidado de “Doctor Eximius”, foi um dos maiores escolásticos pós São Tomás de Aquino (1225-1274) e um dos pais da “segunda escolástica”, embora do santo e dos demais tomistas tenha dissentido em alguns pontos da doutrina. Deixou vários escritos, entre eles “De Incarnatione Verbi” (1590) e “Disputationes Metaphysicae” (1597). E foi da “nossa” Coimbra (onde chegou no fim do século XVI), em 1612, que nos legou o seu badalado “Tractatus de Legibus ac Deo Legislatore”, obra profunda, exposta em uma dezena de tomos, nos quais se discutem teologia, psicologia, ética, filosofia e direito. 

Maior jusfilósofo católico nessa passagem dos séculos XVI e XVII, Francisco Suárez foi, de toda sorte, um homem do seu tempo e da cultura de então. Como explica Cabral de Moncada, na sua clássica “Filosofia do Direito e do Estado” (vol. 1, Arménio Amado Editor Sucessor, 1955), no embate de tradições “que caracteriza o final do século XVI e os começos do imediato, Suárez é bem – pode dizer-se – o homem em quem, como escreveu Bossuet, se deixa ver admiravelmente toda a escola a que ele pertence; 'en lui on voit toute l'école'. Essa escola era a Escolástica e, mais particularmente, a Escolástica tomista do século XIII”. 

E pode-se dizer, como o faz Paulo Jorge Lima (no seu “Dicionário de filosofia do direito”, publicado pela editora Sugestões Literárias em 1968), que Francisco Suárez “deu caráter sistemático à teoria tomista do Direito e da Justiça, representando o seu tratado De Legibus o esforço mais completo até hoje realizado no sentido de apresentar uma filosofia do Direito segundo a concepção teológica”. 

De fato, em termos gerais, as concepções filosóficas de Suárez eram as mesmas da escolástica do “Doctor Angelicus”. Afinal, Suárez era, antes de tudo, como já dito, um tomista. 

Mas é incorreto afirmar que o “Doctor Eximius” tenha se limitado a apenas reproduzir, sem qualquer originalidade, a doutrina tomista, como ela havia sido imaginada no já distante século XIII. Se a filosofia de Suárez era a escolástica, era “essa filosofia modernizada, actualizada”. “E tal actualização”, como ainda registra Cabral de Moncada, “dava-lhe sobretudo a nova situação histórica da Igreja, depois do Renascimento e da Reforma protestante. É preciso nunca perder isto de vista. A actualização residia, porém, mais na preferente acentuação de certas problemáticas e soluções, aliás já conhecidas e esboçadas dentro da Philosophia perennis, do que em qualquer profunda reforma da essência e substância desta. Suárez, numa palavra, via e abraçava todas as grandes soluções desta escola, mas como um homem do seu tempo, repensando-as com extraordinária coerência e rigor lógico, à luz da sua contemporaneidade, sob a pressão dos novos interesses espirituais e políticos do Catolicismo”. 

Na verdade, o grande jesuíta, professor em Salamanca e Coimbra, deu diversos tons originais à sua filosofia do direito, ao ponto de ensejar toda uma plêiade de discípulos, os chamados “suaristas”, que frequentemente querelavam com os tomistas ortodoxos sobre temas de direito nos quais havia alguma divergência entre os dois grupos. 

Embora coincidente em muitos pontos – por exemplo, seguindo Santo Agostinho (354-430) e, especialmente, São Tomás de Aquino, Suárez chega a afirmar que a “lex injusta non est lex” –, a própria concepção do que é o direito para Suárez diverge consideravelmente daquilo que é defendido ortodoxamente pelos tomistas de antes e de então. Conforme ensina Cabral de Moncada, Suárez “vê a essência deste muito mais na lei do que numa ordem universal de que a lei fosse já uma manifestação. Enquanto que S. Tomás partia do direito para a lei, o filósofo-jurista da Companhia de Jesus parte da lei para o direito. Não é debalde que o seu Tratado se chama De Legibus. Deus é para ele, antes de tudo, um legislador. Numa linguagem moderna, dir-se-ia que Suárez, como jurista, é muito mais normativista do que ordinalista. O seu tratado é sobretudo um estudo atento dessa fonte de direito, a lei: sua essência, suas características e requisitos, suas formas e modalidades, desde a lei eterna até à lei humana positiva. Na sua definição de lei (preceito comum, justo, estável, suficientemente promulgado) está muito mais perto de nós. De algum modo, poderíamos considerá-lo, neste aspecto, muito menos universalista e portanto mais nominalista do que o seu grande émulo do século XIII”. 

Ademais, fundado na matriz tomista, com a “Suma Teológica” em mãos, Francisco Suárez, a seu modo, analisou não somente os temas gerais da ciência jurídica (o conceito de Justiça, o direito divino, o direito natural, a lei e por aí vai), mas, também, institutos específicos do direito, vinculados aos ordenamentos jurídicos então vigentes, tais como o direito de propriedade e o próprio conceito de Estado soberano. E partindo de premissas teológicas, como de regra se dava com os mestres da sua escola (aqui refiro-me à escola de Salamanca), mas também profundo conhecedor do direito romano e dos vários “direitos” vigentes no seu tempo, ele extraiu novos conceitos e definições jurídicas precisas acerca dos muitos temas por ele analisados. 

Alguns desses conceitos e definições nós veremos no artigo da semana que vem.

Rogo apenas um pouco de paciência.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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