Sobre Francisco Suárez (II)
Como dito no artigo da semana passada, Francisco Suárez
(1548-1617), fundado na matriz tomista, tratou de diversos temas gerais
da ciência jurídica (o conceito de Justiça, o direito divino, o direito
natural, a lei e por aí vai) e, também, de institutos específicos do
direito, vinculados aos ordenamentos jurídicos então vigentes (tais como
o direito de propriedade e o próprio conceito de Estado soberano).
Entretanto, embora partindo dessas premissas teológicas (como de regra
se dava com os mestres de Salamanca), profundo conhecedor do direito
romano e dos vários direitos nacionais e locais vigentes no seu tempo,
ele extraiu novos conceitos e definições jurídicas precisas acerca dos
temas analisados.
Francisco Suárez, por exemplo, tinha uma visão bastante
interessante do direito natural e das instituições jurídicas de maneira
geral – visão mais moderna, com certeza, se comparada à ortodoxia
tomista de até então –, que deveriam ter fundamento não somente na
revelação divina, mas, também, a partir dos critérios da razão humana.
Como registra Paulo Jorge Lima (no seu “Dicionário de filosofia do
direito”, publicado pela editora Sugestões Literárias em 1968), Suárez,
entre outras coisas, “considerava a lei natural como uma lei ética de
sentido absoluto, superior e necessário, da qual Deus é o supremo
legislador, igual para todos os homens e para todos os tempos. O direito
natural é, pois, em si mesmo, imutável. Alguns dos seus preceitos,
porém, podem variar, segundo o conteúdo social a que se apliquem e as
situações históricas diferentes. Divide-se, assim, em direito natural
preceptivo e direito natural dominativo. O primeiro é formado pelas
determinações imutáveis e eternas, independentes da decisão humana,
como, por exemplo, os preceitos do Decálogo. O segundo tem aspecto mais
variável do que fixo, pois consiste em uma série de regras igualmente
possíveis, entre as quais é lícito ao arbítrio humano escolher”. A
título ilustrativo, indo do mais abstrato para o mais concreto, essa
visão tinha aplicação no direito penal, no qual, como anota Antonio
Padoa Schioppa (em “História do direito na Europa: da Idade Média à
Idade Contemporânea”, edição da WMF Martins Fontes, 2014),
“desenvolvendo motivos parcialmente presentes em De Vitória e, antes
dele, em outros teólogos e juristas medievais, o mestre de Salamanca
afirma que o poder de jurisdição, com a autoridade decorrente de punir
os criminosos, era inerente à própria existência de uma comunidade, em
virtude da razão natural, sem a necessidade de pressupor um pacto nem de
uma atribuição de autoridade por parte de Deus, mas unicamente com base
na vontade e no consenso da própria comunidade”.
Também foi objeto do escrutínio de Francisco Suárez a questão do
direito de propriedade, este que talvez seja o primeiro direito
“desenvolvido” pelos homens. Cuidava-se de uma questão complexa e
recorrente entre teólogos e juristas medievais: como aceitar a
propriedade privada como um direito natural, sendo pacificamente
reconhecido que, na origem dos tempos, a propriedade dos bens era comum a
todos os homens? A solução de Suárez foi bastante inteligente. Para
ele, a norma de direito natural pertinente à comunhão originária dos
bens, assim como várias outras normas jusnaturalistas, devia ser tida
como “permissiva” e não como “preceptiva”. A propriedade comum era
permitida, mas não necessária. Assim, admitia-se naturalmente a
propriedade privada dos bens móveis e imóveis, que, de toda sorte, era
já devidamente protegida, em quase todos os ordenamentos jurídicos de
então, pelos seus respectivos direitos positivos. Esse ponto de vista,
aliás, abre a possibilidade de criação de direitos naturais, no
desenrolar da história, pela razão ou por iniciativa dos homens, algo,
aliás, bastante vanguardista levando em conta a teologia/filosofia
jurídica de então.
Por derradeiro, nesse rol exemplificativo de temas jurídicos
analisados por Francisco Suárez, temos a sua concepção de Estado, que,
embora não tão original, é bastante refinada. Assim como para São Tomás
de Aquino (1225-1274) e para os ditos humanistas (vide os artigos “Os
humanistas” I e II), também para Francisco Suárez o Estado, tido como a
“sociedade perfeita”, era um resultado da natureza racional do ser
humano. E Suárez relaciona o Estado à soberania e ao poder do “príncipe”
ou governante. Como explica Cabral de Moncada (em “Filosofia do Direito
e do Estado”, vol. 1, Arménio Amado Editor Sucessor, 1955), para
Suárez, sem a soberania, “o Estado não pode existir. O homem nasceu
animal social e político, como nasceu racional; e, como não é possível o
Estado sem poder e soberania, segue-se daí que estes poder e soberania
tão-pouco são criação arbitrária do homem, mas sim exigência da mesma
lei natural e racional”. Doutra banda, “se o poder é inerente a estes
modos de ser do homem, daí decorre ainda que ele, inicialmente, não pode
deixar de residir na própria comunidade politicamente organizada para a
qual existe. O poder sobre os homens, que não vemos estar nas mãos nem
de Deus nem dos anjos, não pode pois estar senão nas mãos dos próprios
homens, embora não considerados separadamente, uti singuli, nem mesmo
como multidão amorfa, mas só como comunidade perfeita e já politicamente
unida, uti universi”. E é aqui que Francisco Suárez, “partindo das
premissas acima expostas, desenvolve com mais rigor certas ideias que,
se estavam já no Doutor Angélico, contudo, estavam longe de ter nele a
importância que depois alcançaram. Essas ideias são: a da
contratualidade na base do Estado e a da posterior transferência da
soberania do povo para o príncipe. Uma é a do pacto ou contrato social
(pactum unionis) pelo qual os homens se reúnem em comunidade perfeita; a
outra a do pacto ou acordo (pactum subjectionis) pelo qual eles
transferem depois o poder para os governantes”.
Para concluir, relembrando tanto Francisco de Vitória (1483?-1546),
sobre o qual conversamos aqui faz uns quinze dias, como Francisco
Suárez, mais uma vez anoto que a principal característica dos mestres de
Salamanca foi analisar o direito – as suas questões jurídicas mais
abstratas como também os seus diversos institutos – sob os pontos de
vista do direito romano e dos diversos ordenamentos jurídicos então
vigentes, mas submetendo-o, sempre, ao crivo dos valores e dos
princípios da teologia cristã. Diz-se que, pela primeira vez, após
séculos de exegese, sucessivamente pelos glosadores, pelos comentadores e
pelos humanistas, o direito romano justinianeu – referente ao Imperador
romano-bizantino Justiniano (483-565) e ao seu “Corpus Iuris Civilis” –
era também acuradamente avaliado por um critério externo a ele, que
podia, inclusive, levar à sua própria rejeição, se esse direito dos
homens estivesse irremediavelmente em descompasso com os preceitos
superiores, eternos e imutáveis da Revelação.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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