Hermenêutica, interpretação e aplicação
Para os fins do direito (e mesmo no quadro das ciências
em geral), os vocábulos “hermenêutica” e “interpretação” significam a
mesma coisa? E qual a ligação da “hermenêutica” e da “interpretação”
jurídicas com a “aplicação” do direito?
Carlos Maximiliano (1873-1960), que foi Ministro da
Justiça e Negócios Interiores, Procurador-Geral da República e Ministro
do Supremo Tribunal Federal, entre outras honrarias, em sua
“Hermenêutica e aplicação do direito” (de 1924, mas do qual possuo uma
edição, a 14ª, de 1994, da Forense), obra clássica de nossas letras
jurídicas, bem distinguindo a “hermenêutica” e a “interpretação”
jurídicas, trata prontamente de dizer que não. E foi por meio de Carlos
Maximiliano, registre-se, que a maioria de nós, formados ainda no século
passado, deu os primeiros passos na arte da “interpretação” jurídica.
Para ele, com razão, “a Hermenêutica Jurídica tem por
objeto o estudo e a sistematização dos processos aplicáveis para
determinar o sentido e o alcance das expressões do Direito”. Já a
“interpretação” é uma arte, dotada de uma técnica e de métodos, voltada
para um fim, que é “determinar o sentido e o alcance das expressões do
Direito”. “Do exposto”, conclui o festejado autor, “ressalta o erro dos
que pretendem substituir uma palavra pela outra; almejam, ao invés de
Hermenêutica, – Interpretação. Esta é a aplicação daquela; a primeira
descobre e fixa os princípios que regem a segunda. A Hermenêutica é a
teoria científica da arte de interpretar”.
Outrossim, a “aplicação” do direito também não se
confunde com a “hermenêutica” e a “interpretação”. Antes de mais nada, a
“aplicação” do direito necessita tanto da “hermenêutica” como da
“interpretação”, como teoria e arte, respectivamente, para consecução
dos seus fins. Além disso, a “hermenêutica” e a “interpretação”, em seus
sentidos mais estritos, lidam unicamente com a lei/norma; a aplicação
lida também com os fatos.
Como ensina Francesco Ferrara (1877-1941), em outra
obra clássica do direito, “Interpretação e aplicação das leis” (que
possuo em texto traduzido por Manuel A. D. de Andrade, Arménio Amado
Editor Sucessor, 1963), na “aplicação” do direito, a atividade do
julgador desdobra-se em três operações: “I) Averiguar o estado de facto
que é objeto da controvérsia. II) Determinar a norma jurídica aplicável.
III) Pronunciar o resultado jurídico que deriva da subsunção do estado
de facto aos princípios jurídicos”.
Sendo que a segunda operação, que lida com a norma
jurídica, fazendo uso da “hermenêutica”, da “arte de interpretar” e de
outros instrumentos, desdobra-se em várias outras. Como anota o já
referido Carlos Maximiliano, “a adaptação de um preceito ao caso
concreto pressupõe: a) a Crítica, a fim de apurar a autenticidade e, em
seguida, a constitucionalidade da lei, regulamento ou ato jurídico; b) a
Interpretação, a fim de descobrir o sentido e o alcance do texto; c) o
suprimento das lacunas, com o auxílio da analogia e dos princípios
gerais do Direito; d) o exame das questões possíveis sobre ab-rogação,
ou simples derrogação de preceitos, bem como acerca da autoridade das
disposições expressas, relativamente ao espaço e ao tempo”.
A “aplicação” do direito – confiada ao administrador e,
sobretudo, ao juiz, que é, nas palavras poéticas do já citado Francesco
Ferrara, “o intermediário entre a norma e a vida” –, partindo do
abstrato para o concreto, dá fim, completude, à obra de “realizar” o
direito.
No mais, embora se diga, com certa razão formal, que o
julgamento, no desiderato de aplicar o direito, é um simples silogismo
em que a premissa maior é a lei/norma, a menor é o fato e o corolário é a
sentença, a verdade, no fundo, é que não é bem assim. Não se deve
acreditar, como bem lembra o mesmo Ferrara, “que a actividade judicial
se reduz a uma simples operação lógica, porque na aplicação do direito
entram ainda fatores psíquicos e apreciações de interesses,
especialmente no determinar o sentido da lei, e o juiz nunca deixa de
ser uma personalidade que pensa e tem consciência e vontade, para se
degradar num autômato de decisões”.
Mas isso é assunto para uma outra conversa.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP |
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