OBITUÁRIO DE OMISSÕES
Valério Mesquita*
É
no que Macaíba está se transformando. Sinto-me prisioneiro de mãos atadas,
apenas, conduzindo lembranças. A linguagem que eu falo é somente de epílogos.
Estive lá semana passada e não vi mais as esquinas, as ruas estreitas do centro
repletas de segredos, sentimentos, vultos amigos, antigos, furtivos, que as
curvas do tempo encobriram. Ninguém vê mais a lâmina d’água do rio Jundiaí no qual
navegou Severo, Auta, Alberto, os Castriciano na lancha de mestre Antônio. Uma
espessa floresta cobre o leito – e de luto morrem as recordações dos
antepassados. A ponte de sessenta e cinco anos nunca mais viu uma embarcação,
cansada de ser todo dia atropelada. Ali, no antigo e histórico cais do porto,
nunca mais surgiu enorme, carregada de mistérios, a lua cheia que nascia e
planava em cima do Solar do Ferreiro Torto.
A
cidade de Macaíba hoje é uma fotografia ampliada dez vezes, cuja memória
social, política, cultural, virou destroço, boletim de ocorrências. Um profundo
baú de ossos. Somente a retina e o amor telúrico, sensitivo, de alguns
macaibenses conseguem reconstruir, aqui e acolá, a passarela da sua história.
Vista do alto, comprova-se que a chaminé das constantes migrações aumentou a
população, os veículos, o barulho, a droga, o homicídio, acabando a paz
pastoral dos verdadeiros habitantes. Macaíba se abre fácil para os que chegam
de perto e da distância. Até motivo de pesquisa e estatística de uma televisão
ela e Parnamirim já foram noticias. O fato serve de alerta para que a juventude
nativa não deixe que apaguem as luzes. As luzes e as vozes dos que construíram
no passado, o seu futuro e o seu espírito. Que não permita que padeça nem
desapareça o sentimento de conterraneidade. Evitem o obituário de esquecimentos!!
Aquela reunião em Macaíba de autoridades locais com as da Segurança Pública do
Estado, em que ficou?
É
preciso plantar urgentes providencias, à nível federal, estadual e municipal. A
geração nova de macaibenses deve exigir oportunidades de trabalho, educação,
saúde, segurança e combate ao tráfico de drogas, sem olvidar o patrimônio
cultural de sua terra que já integra hoje a história da criminalidade do Rio
Grande do Norte. Que os migrantes e neo-macaibenses no exercício constante de
ir e vir não recusem o gesto de amor a cidade. Que venham e que cheguem como
quem ama uma flor recém descoberta. Que não entendam o município como
prolongamento de Natal devorado pelo capitalismo econômico e pelo
enriquecimento ilícito. Imponham os limites, um basta! Macaíba deve ser a cidade
que perdeu o medo, como se fosse a lâmina límpida de águas novas, extraída da
própria macaibanidade única e indivisível. Cada um de nós tem a mesma dor e mesma
canção.
O
esquecimento deliberado do poder público estadual em restaurar o Empório dos
Guarapes é outro crime perpetrado contra a história do comércio do Rio Grande
do Norte. Nas décadas de 1860
a 1880, em termos de comércio de importação e
exportação, Macaíba foi o maior porto do estado. Essa época de apogeu está
sendo apagada da história porque o projeto de restauração dorme em algum birô
do Centro Administrativo. A área foi desapropriada pelo governo, paga, tombada
por decreto oficial, o projeto técnico concluído, prometida a execução, mas o
recurso permanece no obituário da omissão. Na matriz de Nossa Senhora da
Conceição, em outubro passado, o aniversário de Macaíba foi celebrado missa contra
o esquecimento do projeto. Fabrício Gomes Pedroza, El espírito, esteve presente.
Se Lampião tivesse subido o monte dos Guarapes, numa chuva de balas, talvez os
Guarapes já tivesse sido restaurado. Mas as balas hoje disparadas estão matando
os jovens e rasgando a identidade da cidade.
(*) Escritor.
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