Interpretação pública ou privada
Em dois artigos publicados aqui recentemente, tratei
dos significados de hermenêutica e de interpretação no direito. Volto
hoje (e nas semanas seguintes, muito provavelmente) ao assunto para,
trabalhando precisamente com a teoria hermenêutica, tentar sistematizar e
classificar, a partir de critérios preestabelecidos, essa “arte” da
interpretação.
Em regra, a interpretação jurídica é classificada a
partir de três critérios: a origem (isto é, quem é o agente ou a fonte
da interpretação); a natureza ou modo (cujas espécies são também
chamadas de “métodos de interpretação”); e o resultado. Escolhido um
ângulo de observação (ou critério), são apontadas as semelhanças e
dessemelhanças entre as várias espécies de interpretação, facilitando
assim a compreensão desse fenômeno do direito.
Levando em conta a origem ou a fonte da interpretação
jurídica – isto é, quem é o agente dessa operação –, esta pode ser
classificada em “pública” ou “privada”. A interpretação pública é aquela
realizada por órgãos do poder público, ou seja, do Estado. A
interpretação privada (ou não estatal), embora possa ser realizada por
qualquer um de nós, leigo ou com formação em direito, juridicamente
falando é aquela levada a cabo por jurisconsultos, doutrinadores e
professores em seus pareceres, livros, artigos etc.
Ademais, como explica Luiz Fernando Coelho (em “Lógica
jurídica e interpretação das leis”, Editora Forense, 1981), “levada a
efeito pelos agentes do poder público, a interpretação pública
subdivide-se em autêntica, judicial e administrativa”.
Diz-se que interpretação da lei é “autêntica” quando
realizada pelo próprio Poder Legislativo por intermédio de uma lei (e é
por isso também denominada “legislativa”). Esse é o significado
originário e mais corriqueiro dessa expressão, aludindo ao fato de que o
autor da norma (no caso, da lei) e o intérprete são,
institucionalmente, os mesmos. Embora nem sempre, uma vez que o
dispositivo interpretado e o dispositivo interpretativo podem pertencer
ao mesmo diploma legal, normalmente uma lei secundária (a lei
interpretativa) “interpreta” uma lei originária (lei interpretada),
sendo ambas oriundas do mesmo órgão legislativo.
Como base na simples circunstância de o autor da norma e
o intérprete serem institucionalmente os mesmos, há quem diga, sendo o
caso do já referido Luiz Fernando Coelho, que “será autêntica a
interpretação da norma regulamentar, levada a efeito pelo autor do
regulamento”, como se dá no caso de um decreto regulamentar presidencial
ser interpretado por outro decreto de mesma natureza, sendo que tais
diplomas legais, de autoria dos chefes do Poder Executivo (seja federal,
estadual ou municipal), não são leis em sentido estrito.
Lembremos que a lei interpretativa, via de regra,
retroage à data da lei interpretada, atingindo, assim, atos e fatos
pretéritos a ela (lei interpretativa). Lembremos, também, que não
devemos confundir a lei “corretiva” com a lei interpretativa. Grosso
modo, consoante Glauco Barreira Magalhães Filho (em seu “Curso de
hermenêutica jurídica”, Editora Atlas, 2013), a primeira procura
“resolver problemas redacionais, enquanto a segunda resolve um problema
de inteligibilidade”.
A interpretação “judicial” da lei é aquela realizada
por juízes e tribunais (sendo que aqui, de uma forma extensiva, dada as
muitas similitudes, podemos também incluir, como subespécie, aquela
interpretação realizada pelos representantes do Ministério Público,
também chamada de interpretação ministerial). Formando um precedente, a
interpretação judicial pode ser persuasiva ou vinculante para o futuro.
Se reiterada, no mesmo sentido, forma jurisprudência. Entre nós, se
assim entender o tribunal formador de jurisprudência, pode ser sumulada,
inclusive, no caso do Supremo Tribunal Federal, com caráter vinculante.
A interpretação “administrativa” é aquela realizada
pelos órgãos da Administração Pública, no exercício de atividade
administrativa típica, casuisticamente e, talvez com a única exceção do
exemplo dado acima (a interpretação da norma regulamentar pelo próprio
autor do regulamento), no exercício do seu poder regulamentar.
No mais, atentemos que a interpretação confiada ao
administrador e, sobretudo, ao juiz – que é “o intermediário entre a
norma e a vida”, como já dito aqui, fazendo uso das palavras de
Francesco Ferrara (“Interpretação e aplicação das leis”, tradução de
Manuel A. D. de Andrade, Arménio Amado Editor Sucessor, 1963) – faz
parte de um fenômeno mais amplo que, partindo do abstrato para o
concreto, dá aplicação ou completude ao mister de realizar o direito.
Para encerrar, no que toca à interpretação denominada
“privada”, ela pode ser subclassificada como “imprópria”, levando em
conta o fato evidente, já anotado por Luiz Fernando Coelho, “de que a
vida jurídica é um dos aspectos da existência humana social, e que todo
homem circunscrito em sua atividade pelas normas do Direito, as está
continuamente interpretando”. Mas cuida-se, aqui, a bem da verdade, de
algo estranho à hermenêutica jurídica, uma vez que essa, em sua dimensão
dogmática, deve exigir do interprete um conhecimento técnico do
fenômeno interpretado, a partir de um “preparo científico que lhe dá a
condição de jurista” e do “preenchimento dos requisitos legais que o
tornam um profissional do direito”. Posto isso, podemos dizer que a
interpretação privada “própria”, para fins hermenêuticos jurídicos, é
aquela levada a cabo pelos juristas (no sentido de profissionais do
direito), não como representantes do poder estatal, mas, sim, na sua
condição de pessoas privadas.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP |
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