Criadores do direito?
Os juízes realmente criam direito ou eles apenas declaram um direito
(legislado, em regra) pré-existente? Essa é uma pergunta que me fazem –
e eu mesmo me faço – frequentemente.
Muitos juristas afirmam que o direito sempre preexiste às decisões
dos juízes. Para eles, a existência do direito, por vezes legislado,
outras vezes costumeiro (de uso imemorial e universalmente reconhecido
no país), independe da decisão judicial, que não é nada mais que uma
mera declaração ou prova de sua existência.
Mesmo tomando por base o direito do “common law”, onde as decisões
judiciais são de enorme importância, William Blackstone (1723-1780)
afirmou (em seus “Commentaries on the Law of England”, obra de
1765-1769) – ao responder a questão de como se conhece ou se prova que
determinada norma possui, por seu uso imemorial e universal, validade e
força de lei – que os juízes “são os depositários das leis; os oráculos
vivos que devem decidir em todos os casos de dúvida e que se encontram
obrigados, por um juramento, a decidir em conformidade com o direito do
país (...)”.
Vale lembrar que essa posição, com base em argumentos de ordem
constitucional e filosóficos, tais como a doutrina da separação de
poderes e a completude do sistema jurídico (sendo a decisão judicial um
mero explicitador deste), tem muitas vezes sido acolhida em
pronunciamentos judiciais. Um exemplo, citado por Victoria Iturralde
Sesma (em “El precedente en el common law”, 1995), é Ray v. Western
Pennsylvania Gas Co. (1981), em que se afirmou: “Os tribunais de mais
alta autoridade em todos os Estados dos Estados Unidos estão,
esporadicamente, obrigados a mudar suas regras sobre questões da maior
importância. Ao fazerem isso, não significa que o direito mudou, mas,
sim, que o tribunal estava equivocado na sua primeira decisão, e que o
direito é, e na realidade sempre foi, como foi exposto na última decisão
sobre a matéria. Não se pode dizer que os membros do Poder Judiciário
fazem ou mudam o direito. Eles simplesmente o expõem e aplicam aos casos
individuais”.
Doutra banda, muitos asseguram que o direito pode ser criado pelas
decisões judiciais, ou seja, que os “jugdes make law”. Segundo registra a
já citada Victoria Sesma, alguns juristas – como John Chipman Gray
(1839-1915), Oliver Wendel Holmes Jr. (1841-1935), Benjamin N. Cardozo
(1870-1938), Roscoe Pound (1870-1964) e John William Salmond (1862-1924)
– “assinalam que é uma ficção pueril conceber o direito como existente
independentemente e antes das decisões judiciais; ao contrário, defendem
que o common law não está constituído por costumes imemoriais, mas,
sim, pelas normas criadas pelos juízes ao decidirem os casos concretos
submetidos a sua consideração. Gray faz uma profunda análise crítica das
teses defendidas por Carter e Blackstone. Para ele, a tese declaratória
há de ser entendida como uma resistência de juízes e juristas em
reconhecerem o fato de que os tribunais, com o consentimento do Estado,
têm aplicado, na tomada de decisões, normas que não preexistiam e que,
em consequência, não podiam ser conhecidas pelas partes quando teve
lugar a controvérsia. Trata-se – diz Gray – da resistência frente ao
fato certo de que os tribunais estão criando continuamente direito ex
post facto”.
Na verdade, os principais argumentos dos que defendem a criação
judicial do direito são verdadeiras críticas à posição contrária (de
mera declaratividade das decisões judiciais). A principal crítica
decorre do fato de que os partidários da teoria declarativa afirmam, em
linhas gerais, que o direito sempre existiu e cabe ao juiz apenas
descobri-lo e declará-lo. Para os “constitutivistas”, essa afirmação não
procede. Inúmeras soluções hoje tomadas pelos tribunais cuidam de
assunto sequer imaginado em passado remoto ou mesmo recente. São
questões de direito onde a regra só é encontrada nas decisões dos
tribunais. Portanto, seria um erro afirmar que tais soluções ou o
direito já preexistiam no direito “não judicial”.
O mesmo John Chipman Gray (em “The Nature and Sources of the Law”,
cuja edição que possuo é de 1927), já aqui referido, põe uma questão
interessante que ilustra a tese dos “constitutivistas”: “Qual era o
Direito na época de Ricardo Coração de Leão sobre a responsabilidade de
uma companhia de telégrafos para com as pessoas a quem foi enviada uma
mensagem?”. É por não achar resposta para tal tipo de questionamento que
afirma Jaqueline Martin (em “English Legal System”, 1999): “Embora
houvesse uma escola cujo pensamento era o de que os juízes
verdadeiramente não ‘criavam’ direito novo, mas meramente o descobriam,
hoje em dia é aceito que os juízes realmente usam o precedente para
criar direito novo e para estender princípios antigos. Há muitas áreas
do direito que devem sua existência a decisões dos juízes”.
Aliás, vale lembrar que, mesmo na conservadora Inglaterra, na
outrora sua mais alta corte de justiça, a House of Lords, já se afirmou o
“judges make law”. Com moderação, é verdade, em razão do argumento
frequentemente usado, conhecido como “leave it to Parlamient”. Eis, para
ilustrar, as palavras do Lord Lloyd, em julgamento da House of Lords no
caso R v Clegg [1995] 1 ALL ER): “Eu não sou contrário a que juízes
desenvolvam o Direito, ou mesmo criem novo Direito, no caso de eles
poderem ver seu caminho claramente, mesmo quando questões de política
social estejam envolvidas. Um bom exemplo recente seria a confirmação
por esta House de decisão da Court of Appeal (Criminal Division) de que
um homem pode ser culpado de estuprar sua esposa (R v R – (rape: marital
exemption) [1991] 4 ALL ER 481, [1992] 1 AC 599; affg [1991] 2 ALL ER
257, [1991] 2 WLR 1.065)”.
Bom, e você, caro leitor, o que acha: criam ou não criam?
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP |
Nenhum comentário:
Postar um comentário