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10/11/2016

   
Marcelo Alves


Criadores do direito?

Os juízes realmente criam direito ou eles apenas declaram um direito (legislado, em regra) pré-existente? Essa é uma pergunta que me fazem – e eu mesmo me faço – frequentemente. 

Muitos juristas afirmam que o direito sempre preexiste às decisões dos juízes. Para eles, a existência do direito, por vezes legislado, outras vezes costumeiro (de uso imemorial e universalmente reconhecido no país), independe da decisão judicial, que não é nada mais que uma mera declaração ou prova de sua existência. 

Mesmo tomando por base o direito do “common law”, onde as decisões judiciais são de enorme importância, William Blackstone (1723-1780) afirmou (em seus “Commentaries on the Law of England”, obra de 1765-1769) – ao responder a questão de como se conhece ou se prova que determinada norma possui, por seu uso imemorial e universal, validade e força de lei – que os juízes “são os depositários das leis; os oráculos vivos que devem decidir em todos os casos de dúvida e que se encontram obrigados, por um juramento, a decidir em conformidade com o direito do país (...)”. 

Vale lembrar que essa posição, com base em argumentos de ordem constitucional e filosóficos, tais como a doutrina da separação de poderes e a completude do sistema jurídico (sendo a decisão judicial um mero explicitador deste), tem muitas vezes sido acolhida em pronunciamentos judiciais. Um exemplo, citado por Victoria Iturralde Sesma (em “El precedente en el common law”, 1995), é Ray v. Western Pennsylvania Gas Co. (1981), em que se afirmou: “Os tribunais de mais alta autoridade em todos os Estados dos Estados Unidos estão, esporadicamente, obrigados a mudar suas regras sobre questões da maior importância. Ao fazerem isso, não significa que o direito mudou, mas, sim, que o tribunal estava equivocado na sua primeira decisão, e que o direito é, e na realidade sempre foi, como foi exposto na última decisão sobre a matéria. Não se pode dizer que os membros do Poder Judiciário fazem ou mudam o direito. Eles simplesmente o expõem e aplicam aos casos individuais”. 

Doutra banda, muitos asseguram que o direito pode ser criado pelas decisões judiciais, ou seja, que os “jugdes make law”. Segundo registra a já citada Victoria Sesma, alguns juristas – como John Chipman Gray (1839-1915), Oliver Wendel Holmes Jr. (1841-1935), Benjamin N. Cardozo (1870-1938), Roscoe Pound (1870-1964) e John William Salmond (1862-1924) – “assinalam que é uma ficção pueril conceber o direito como existente independentemente e antes das decisões judiciais; ao contrário, defendem que o common law não está constituído por costumes imemoriais, mas, sim, pelas normas criadas pelos juízes ao decidirem os casos concretos submetidos a sua consideração. Gray faz uma profunda análise crítica das teses defendidas por Carter e Blackstone. Para ele, a tese declaratória há de ser entendida como uma resistência de juízes e juristas em reconhecerem o fato de que os tribunais, com o consentimento do Estado, têm aplicado, na tomada de decisões, normas que não preexistiam e que, em consequência, não podiam ser conhecidas pelas partes quando teve lugar a controvérsia. Trata-se – diz Gray – da resistência frente ao fato certo de que os tribunais estão criando continuamente direito ex post facto”. 

Na verdade, os principais argumentos dos que defendem a criação judicial do direito são verdadeiras críticas à posição contrária (de mera declaratividade das decisões judiciais). A principal crítica decorre do fato de que os partidários da teoria declarativa afirmam, em linhas gerais, que o direito sempre existiu e cabe ao juiz apenas descobri-lo e declará-lo. Para os “constitutivistas”, essa afirmação não procede. Inúmeras soluções hoje tomadas pelos tribunais cuidam de assunto sequer imaginado em passado remoto ou mesmo recente. São questões de direito onde a regra só é encontrada nas decisões dos tribunais. Portanto, seria um erro afirmar que tais soluções ou o direito já preexistiam no direito “não judicial”. 

O mesmo John Chipman Gray (em “The Nature and Sources of the Law”, cuja edição que possuo é de 1927), já aqui referido, põe uma questão interessante que ilustra a tese dos “constitutivistas”: “Qual era o Direito na época de Ricardo Coração de Leão sobre a responsabilidade de uma companhia de telégrafos para com as pessoas a quem foi enviada uma mensagem?”. É por não achar resposta para tal tipo de questionamento que afirma Jaqueline Martin (em “English Legal System”, 1999): “Embora houvesse uma escola cujo pensamento era o de que os juízes verdadeiramente não ‘criavam’ direito novo, mas meramente o descobriam, hoje em dia é aceito que os juízes realmente usam o precedente para criar direito novo e para estender princípios antigos. Há muitas áreas do direito que devem sua existência a decisões dos juízes”. 

Aliás, vale lembrar que, mesmo na conservadora Inglaterra, na outrora sua mais alta corte de justiça, a House of Lords, já se afirmou o “judges make law”. Com moderação, é verdade, em razão do argumento frequentemente usado, conhecido como “leave it to Parlamient”. Eis, para ilustrar, as palavras do Lord Lloyd, em julgamento da House of Lords no caso R v Clegg [1995] 1 ALL ER): “Eu não sou contrário a que juízes desenvolvam o Direito, ou mesmo criem novo Direito, no caso de eles poderem ver seu caminho claramente, mesmo quando questões de política social estejam envolvidas. Um bom exemplo recente seria a confirmação por esta House de decisão da Court of Appeal (Criminal Division) de que um homem pode ser culpado de estuprar sua esposa (R v R – (rape: marital exemption) [1991] 4 ALL ER 481, [1992] 1 AC 599; affg [1991] 2 ALL ER 257, [1991] 2 WLR 1.065)”. 

Bom, e você, caro leitor, o que acha: criam ou não criam?

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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