Marcelo Alves
O mais antigo código
No nosso artigo hoje e em alguns outros que se seguirão,
conversaremos sobre uma temática que, por passar ao largo das
tecnicalidades da ciência jurídica propriamente dita, assim como por sua
interdisciplinariedade, vai interessar a muitos leitores (pelo menos
assim espero), tenham eles formação jurídica ou não: a “história do
direito”.
E nesse afã de reconstruir aqui um pouco da história do direito,
começaremos tratando daquele que é por muitos apontado como o mais
antigo “código de leis” de que temos notícia (pelo menos o mais antigo
que chegou até nós), o Código de Ur-Nammu, que data de cerca de 2040
a.C.
Espacialmente, ao tratarmos existência/vigência do Código de
Ur-Nammu, estamos falando da Mesopotâmia, a famosa região do Oriente
Médio, delimitada pelos vales dos rios Tigre e Eufrates, que hoje
basicamente faz parte do atual Iraque, da Síria e do Kuwait, berço de
algumas das mais importantes civilizações da Antiguidade.
Temporal e politicamente, estamos falamos da época de dominação dos
Sumérios (nesse período já em grande simbiose com os Acadianos) na
Mesopotâmia, mais precisamente da 3ª Dinastia de Ur (cidade-estado da
Mesopotâmia), que durou aproximadamente de 2047-1940 a.C.
O fundador da 3ª Dinastia de Ur, também denominada de o “Novo
Império Sumério”, foi precisamente o rei Ur-Nammu, que dá nome ao Código
de que ora tratamos, sendo esse diploma legal certamente o seu maior
mais legado para a nossa civilização. Aliás, o prólogo do Código sugere
que o rei Ur-Nammu, pouquíssimo modesto, se achava empoderado (palavra
hoje na moda no vocabulário “politicamente correto”) pelos deuses para
proclamar sua lei, afirmando, ao final, algo como: “Eu fiz o mal, a
violência e o grito por justiça desaparecerem”.
O Código de Ur-Nammu, que reconhecidamente serviu de inspiração para
as codificações que vieram a lume nos séculos seguintes (Lipit-Ishtar,
Hammurabi e Eshnunna, notadamente), na dimensão como chegou até nós,
consiste em um conjunto de aproximadamente quarenta disposições
condicionais (de um total de quase sessenta que teria a versão completa
do Código). Algo como: se “X”, então “Y”, sendo “X” a conduta e “Y” a
consequência legal.
Curiosamente, diversamente das “cruéis” disposições retributivas do
famoso Código de Hammurabi (“olho por olho, dente por dente” e outras
coisas do tipo), que data de quase três séculos depois, cerca de 1792 a.
C., o Código de Ur-Nammu impunha penalidades pecuniárias para uma
grande variedade de tipos penais, incluindo hipóteses de lesões
corporais causadas a outrem, o que, sem dúvida, se mostra muito mais
consentâneo com a concepção humanitária do direito que temos hoje. Assim
se dava, como anota Michael H. Roffer (em “The Law Book: from Hammurabi
to the International Criminal Court, 250 Milestones in the History of
Law”, Sterling Publishng Co., 2015), em casos como os de tirar a visão
de outrem, quebrar os ossos de outrem, deflorar escravo alheio, cometer
perjúrio, divorciar-se da primeira mulher e por aí vai. Muito
interessante e elogiável também é o fato, apontado por Michael H.
Roffer, de que o Código de Ur-Nammu tratava de forma muito mais severa
os “ilícitos criminais” (levando em consideração o que são “ilícitos
criminais” na grande maioria dos sistemas jurídicos ocidentais
contemporâneos) do que os “ilícitos civis”, punindo, por exemplo, os
gravíssimos crimes de homicídio e estupro com pena de morte e o de
sequestro com prisão e multa.
Bom, o Código de Ur-Nammu pode não ser tão badalado quanto o Código
de Hammurabi, talvez porque, primeiramente descoberto/traduzido por
Samuel Noah Kramer (1897-1990) no começo dos anos 1950, até hoje não foi
possível, com base nos fragmentos já encontrados, reconstruir todas as
suas disposições. Entretanto, escrito no alfabeto cuneiforme e na língua
sumeriana, ele é, conforme faz questão de registrar Klass Veenhof
(1935-, apud Michael H. Roffer), professor da Universidade de Lieden e
grande especialista no tema, certamente o mais antigo texto
verdadeiramente legislativo que chegou até nós.
E isso, meus queridos leitores, é muitíssima coisa.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP |
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