RELEMBRANDO NADIR
MEIRA GARCIA
Valério Mesquita*
Naquele dia frio e chuvoso de agosto de 2008, a Praça das Flores,
amanhecera mais triste. Havia falecido a mais antiga inquilina do seu jardim:
Nadir Meira Garcia. O casarão na confluência das ruas Dionísio Filgueira e
Joaquim Manoel estava sombrio e silencioso. O frontispício e os interiores da
casa me restituíam o casal: Enock e Nadir, numa doce e suave empatia com o
passado que aproxima as pessoas na distância do tempo e permite magicamente a
confraternização de gerações cronologicamente afastadas. Foi aí, nessa visão,
que estabeleci a simbiose perfeita com o nosso passado em Macaíba, lá no sítio
do dr. Enock, a residência urbana da família na minha meninice, ao lado dos
primos Roosevelt, Franklin, Wallace, Ana e Enoquinho.
A intercorrespondência íntima das duas memórias reveladas, faz-me captar
sinais ainda perceptíveis, rumores audíveis, movimentos distintos, brotados do
fundo da vida social, política e familiar de Macaíba dos anos quarenta e cinquenta
– que apesar de conhecidos e gastos com a morte de Nadir parece sepultar a
última herdeira desse universo desaparecido.
Mesmo aos noventa anos de idade, ela ainda detinha a energia dos
cristais, o senso agudo de observação das coisas ao seu redor. Lembro-me do seu
estilo informal de receber e acolher as pessoas, o brilho intenso dos olhos que
lembrava os da sua mãe Amélia Násia Mesquita Meira, minha tia, símbolo
admirável de fidelidade, caráter e honradez. Dela, a filha herdou a tenacidade
e a autenticidade de ser.
O que impressionava em Nadir era o lado político arrebatado, decidido e
determinado. Quando se envolvia, a política virava paixão avassaladora, pois
não sabia cultivar a neutralidade. Ainda tremulam na fachada daquela casa, como
um milagre de transfiguração, as imensas bandeiras de suas crenças partidárias,
pois não tinha medo de assumir a sua identidade coletiva. A idade avançada não
lhe trouxe melancolia nem o desinteresse pelos problemas da vida e dos filhos.
Buscava sempre o estímulo e o alento para desencadear o movimento da maturidade
de viver os netos e reviver os sonhos encantados que sonhou com o seu Enock.
Por tudo isso, não é demais reconhecer que Nadir desempenhou um papel
importante na educação dos filhos e ao lado do marido no desbravamento dos
caminhos da política, da advocacia, da administração pública e da vida do lar.
Posto-me, novamente, diante da casa da Praça das Flores na certeza de que
o passado não passa. O vento forte e monolítico finge permitir que tudo leva e
lava. Os meus olhos de vidente retrospectivo passeiam nos corredores, revendo
antigas cenas, cristaleiras, porcelanas, armários, lustres e conversas soltas
de antigas vigílias. Ali, ainda vejo Nadir e Enock cercados de filhos e netos,
apascentando o tempo e cultivando as flores.
(*) Escritor
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