A COLUNA
PRESTES E AS CERCAS DO SERTÃO
Nos feriados
da Semana Santa que passou visitei a cidade de Portalegre, os lados da “tromba
do Elefante”, na região Oeste do Estado. Amigos meus tinham-me cobrado uma lembrança
da passagem de Luís Carlos Prestes, durante os meados de 1926, no comando da
Coluna que tomou o seu nome e que marchou por entre aqueles serros e caatingas,
no entorno das pelejas desde o Piauí, passando pelo Ceará. Segundo Daniel Aarão
Reis (Luís Carlos Prestes - Um Revolucionário Entre Dois Mundos; C. das Letras,
2014), durante a passagem pelas comunidades sertanejas, a Comuna teria sofrido
duros ataques das populações, das tropas mobilizadas por fazendeiros e por líderes
políticos locais, inclusive com arregimentação de jagunços e das polícias
estaduais.
Na sequência
das aldeias assentadas por toda a Chapada do Apodi, anteriormente distanciadas
uma das outras, hoje mais aproximadas pelas estradas pavimentadas, se
descortina o progresso desvairado que atenta às tradições de gente e vínculos tão
sedimentados com a terra. Se a agricultura não mais encanta seus beiradeiros e
moradores, a Internet reforça o surto da juventude em busca de vida melhor, nas
grandes cidades do litoral.
Às indagações feitas ninguém mais se lembra
da Coluna Prestes que passou pela região. Nenhuma marca ficou guardada na memória
dos mais velhos. Nem mesmo a lembrança da histeria disseminada, segundo a qual
os revoltosos se apossariam da riqueza encontrada nas cidades por onde passasse.
Ou de que destruiriam as igrejas e capelas, em se tratando de agentes do
demônio, como se difundiu à época.
De lado a lado, entretanto, o
desconhecimento das intenções da luta tornava os homens indomáveis, tal a
aspereza da vida vivida no sertão. A Coluna teve de enfrentar as armas do
“Exército patriótico do padre Cícero”, a que se juntavam os batalhões civis, os
jagunços municiados pelo governo federal, sob o comando dos proprietários
rurais, a quem se agraciava com patentes da Guarda Nacional. A isso tudo se
juntava a população obstinada na perseguição da Coluna.
No dia 3 de fevereiro de 1926, a
Coluna Prestes subiu a serra de São Miguel e chegou na freguesia de Luís Gomes.
Em que pese a resistência da população, houve o saque daquelas cidades, com
prejuízos dos habitantes. Dois dias depois, a Coluna adentrou na Paraíba, onde
foi lançado o manifesto “Ao Povo paraibano”, subscrito por Miguel Costa,
Prestes e dois chefes que conspiravam na Paraíba. Saudava os tenentes
Aristóteles de Souza Dantas e Lourival Seroa da Mota. Por último, dava vivas ao
povo paraibano, ao marechal Isidoro Dias Lopes e a revolução brasileira.
A esse tempo, o nome de Prestes
tornara-se um mito, despertando em seus comandados a afeição pela retidão de
justiça, a capacidade de sacrifício, enquanto lendas corriam a seu respeito. É
que uma feiticeira – Tia Maria, que dançava nua perante o fogo das
metralhadoras, ao som de uma flauta - teria “fechado o corpo dos rebeldes”.
Ainda hoje, passados tantos anos, ao
alcance do atual registro histórico, é fácil perceber na junção da saliência íngreme
dos serrotes e nos pedregulhos incólumes os traços pastoris de que se serviu a ocupação
humana, ainda hoje conservados nas cercas e currais, na alimentação e no largo
uso do couro, forma de domínio e liderança: o rebenque usado
como instrumento de submissão do próprio homem ou dos animais.
Naquele sertão, ainda são vistas as
casas de fazenda, cujos currais são a extensão do oitão através de cercas espichadas
no rumo infinito da paisagem. São edificadas em vários estilos, de pedra, de
pau-a-pique, cerca viva de gravetos, de aveloz, de cardeiro, em maravalha, em
arame farpado, de tamanho nunca superior ao de um homem, que dê a visão de quem
está do lado de fora. Cercas só faccionadas por mata-burros. Cercas horizontais
que se projetam para além da casa grande, a fim de confinar a convivência do
homem com vegetais e animais íntimos de toda a vida: o milho, o feijão, o boi, os
porcos, cavalos, cabras e aves.
A necessidade da cerca teve razão no criatório
solto, cujo apartamento anual teria êxito no cuidado diário dispensado e mais aproximado
das reses. De outra, a proteção que dava nas áreas de agricultura mais intensa,
nos baixios e vazantes, para evitar a invasão dos bovinos e seu pisoteio
destruidor.
A configuração das cercas no sertão,
dado o declínio da dominação patriarcal, bem assim com a nova configuração
econômica das regiões em urbanização crescente e pela presença das estradas,
está em decadência. Dão-se outras formas de ocupação e itinerário, estabelecendo
novos espaços econômicos através de vias que tornam factíveis a mobilidade de
grandes negócios e de contingentes humanos.
As comunidades que há quase um século
viram um bando de “comunards”, liderados por visionários tenentistas, que
projetavam a esperança utópica da Revolução na figura de um líder, atravessando
as serras do alto Oeste, sofreram alterações inevitáveis, ao gosto da
modernidade e a perda de costumes seculares. É possível encontrar-se ainda relíquias
de velhas cercas de pedras empilhadas, lembranças amenas de um tempo, marcas
guardadas da ocupação por judeus errantes, ou de cangaceiros fora da lei, em
passagem, no rumo das charqueadas do Piauí, segundo o relato de Calazans
Fernandes (O Guerreiro do Yaco - Serra das Almas. FJA.2002). Foram e continuam sendo
cercas poéticas, cercas vivas, estilosas que insistem em guardar suas nuances e
limites, apesar da passagem do tempo.
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