A
Tipografia Lira
Elísio Augusto de Medeiros e Silva (in memoriam)
Quando comecei a
me entender de gente, fui apresentado àquela velha oficina gráfica: a
Tipografia Lira, a mais antiga de Natal, segundo diziam, que tinha sido do Dr.
Alfredo Lira, de quem herdara o nome. Em 1955, fora a mesma arrendada e,
posteriormente, vendida a Mozart Silva, seu último proprietário, fato que me
deu a oportunidade de conhecê-la.
No escritório,
aquela escrivaninha, ao lado da mesinha de máquina, feita de imbuia. Sobre a
mesinha, uma autêntica Remington 51, que tinha aposentado a Royal preta, de
teclas grandes e redondas, usada em época anterior à guerra. O velho telefone
preto Ericson, com o disco ligeiramente oxidado, tocava alto e estridente
quando, de fora, discavam 11-40.
Os lançamentos
da Willys Overland desenrolavam-se à nossa porta, pois a firma Santos & Cia.,
nossa vizinha, era a distribuidora daquela associação mercantil e, todas as
semanas, ali chegavam Rurais, Jeeps, Aero-Willis e Gordines para vender,
ficando os veículos expostos estacionados em frente à Tipografia, ao lado do
cartório de Alínio Azevedo.
Eu, ainda
menino, sentia-me fascinado por aquele mundo diferente... O mundo gráfico, com
cheiros fortes e variados de papel e tinta.
A sala dos
tipógrafos, profissão hoje extinta, ficava no final de um comprido salão, com
aquelas inúmeras estantes de madeira, possuindo gavetas e mais gavetas, cheias
de tipos de todas as fontes. Eram tipos que não acabavam mais! Vocês imaginem!
Cada fonte de tipo continha todas as letras do alfabeto, números e sinais
ortográficos. Isso mesmo: maiúsculo, minúsculo, negrito, caixa alta, caixa
baixa e por aí vai.
O cheiro de
gasolina era uma constante, pois a mesma era utilizada como o material de
limpeza das chapas, fruto do trabalho minucioso dos tipógrafos ou chapistas.
Essas chapas, depois de prontas, iam tirar uma prova para serem submetidas à
revisão, antes de serem engradadas nas máquinas, após a correção.
Depois de
utilizadas para o serviço, os tipógrafos faziam o trabalho inverso: tinham que
desmanchar tudo, com muito cuidado, pois havia o risco de empastelar; e, assim,
as letrinhas, com a ajuda de uma pinça, iam sendo colocadas, uma a uma, nos
seus lugares originais.
Tipos 12, 14,
16, 20 eram alguns dos tamanhos utilizados, mas, de vez em quando, tornavam-se
necessários outros tamanhos, dos quais a tipografia, às vezes, não dispunha.
Aí, entrava o espírito do companheirismo, entre as gráficas da época: uma
emprestava à outra a fonte necessária para a execução daquele serviço.
As máquinas
tipográficas, velhas Heildelberg alemãs, manuais, tinham a capacidade de 1.000
impressos por hora, limite a que nunca atingiam por que os rolos de gelatina,
que levavam a tinta dos tinteiros para as chapas, tinham um desgaste muito
grande, e necessitavam ser refeitos.
Naquela época,
idos dos anos 60, na Ribeira existiam muitas tipografias: Tipografia Santo
Antônio, Tipografia Lira, Tipografia Vilar, Tipografia Vitória, Tipografia
Galhardo, Tipografia Augusto Leite e Tipografia Internacional, porque, então,
todos se utilizavam dos serviços gráficos: para um santinho de primeira
comunhão, para um papel timbrado, cartões de visita, e até para os grandes
livros de escrituração pública ou comercial.
Existiam vários
tipos de papel: 14, 16, couché, fluor post, linho, apergaminhado, pele de
cabra. A utilização do tipo de papel dependia do serviço. O mais barato era o
papel jornal, que, normalmente, era utilizado nas últimas vias de talões, ou na
confecção de tablóides, que são aqueles jornais de formato quadrado, bem
menores do que o jornal tradicional.
Trabalhando ao
lado das velhas máquinas tipográficas, existia uma infinidade de máquinas
auxiliares, indispensáveis aos serviços. A grande guilhotina alemã, responsável
pelo corte dos papéis, era a cabeça do intrincado processo de impressão daquela
época. Era ela quem alimentava a praça de impressão. Suas lâminas de aço,
grandes e pesadas, eram afiadíssimas e precisavam de uma afiação periódica,
pois perdiam o corte. Havia pessoas que prestavam esse tipo de serviço aos
proprietários das tipografias.
Ao lado da
guilhotina, uma máquina de dourar era a responsável pela gravação de nomes em
lombos de livros.
Serena e
precisa, havia também a pequena máquina de serrilhar: manual ou a pedal, que
depois foi substituída por outra, mais moderna.
Tínhamos ainda o
grande grampeador, que grampeava, sem dificuldades, grandes volumes de papel
destinados à encadernação.
Na hora da
confecção dos blocos ou talões, utilizavam-se o grampeador ou tachas, dessas de
sapateiro, que eram batidas em cima de velhos trilhos de trem. Os trilhos
também serviam para prensar os papéis na hora da colagem.
Difíceis eram os
convites de casamento, ou santinhos de primeira comunhão e os cartões de Natal,
quando o cliente queria dourados ou prateados. Na hora da impressão, antes da
tinta secar, os papéis rapidamente eram levados para a mesa de dourar, a fim de
polvilhar o pó, na cor dourada ou prateada, ao gosto do freguês, que já deixava
tudo escolhido, ao fazer a encomenda.
Outra
dificuldade daquela época eram os clichês, que tinham de ser encomendados no
Recife. As aparas de papel eram convertidas em talões de jogo do bicho, ou em
notas de posto de gasolina. Lembro-me do papel em resmas chegando do Recife, em
cargas lonadas, que eram descarregadas no depósito, na Rua Câmara Cascudo.
Hoje,
praticamente, as tipografias foram substituídas por gráficas rápidas, bem mais
modernas. Vale salientar que os santinhos, calendários e convites finos para
casamento vinham com a policromia pronta de São Paulo: da Probus, Pombo,
Rotschild, etc. Aqui, eles eram apenas personalizados.
E assim, a
Tipografia Lira ia andando, até a chegada da década seguinte, quando foi
adquirida, em outro
Estado , uma impressora plana, de alta velocidade para a
época, e que precisou de um operário especializado a fim de operá-la. Era
utilizada nos grandes serviços, como por exemplo, na confecção dos talonários
do programa “Seu Talão Vale um Milhão”, da Secretaria da Fazenda do Estado.
Nesta época, gerenciava a Tipografia o Sr. Moisés Villar, bastante experiente
nesse ramo, um eterno aliado de Mozart.
Houve épocas em
que a Tipografia Lira funcionava direto das 7 às 23 horas, dado o grande volume
de serviços. Os funcionários faziam refeições normalmente na Peixada Potengi,
de Heronides, ao lado. Sob o lema: “serviço realizado, cliente conquistado”,
Mozart liderou o ramo gráfico, durante anos a fio, no Estado.
Todas as tardes,
lá para as 15 horas, passavam em frente à Tipografia Lira o menino das tapiocas
de coco, a moça que vendia bolo e a velha das cocadas, para a alegria dos
gráficos.
Os dias se
seguiam como as folhas impressas nas velhas máquinas. Muitos livros e livretos
passaram por lá e, de tipo a tipo, a Tipografia Lira cooperou com a construção
da História da Ribeira. Resistiu até o limite, quando cedeu à chegada do
progresso, com as modernas gráficas off-set e computadores, pois, aí, a luta
tinha ficado desigual.
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