S A N T I A G O D O C H I L E
Por: GILENO GUANABARA, sócio efetivo do IHGRN
Visitei Santiago.
Na amanhecença do dia, através da imagem franqueada pelas asas do avião, vê-se
a cordilheira majestosa em forma de geleira inconsútil e branca, precipícios eternizados
no tempo, um véu de noiva alinhado até os pés, ou aclives íngremes dirigidos para
o céu. A cidade saíra da noite e despertava do frio invernal que faz cobrir as
ruas e jardins com o lençol de folhas secas e cinzas.
Revisitei o significado do nome Chili, que lhe deram os aborígenes. Ao ser repassado aos espanhóis, estes
trocaram o “i” pelo “e”, passando-se a Chile.
Diz-se que a origem, desde o antigo idioma quíchua, está na palavra Tchili, que significa o frio ou a neve. Outra explicação é a de
bandos de pássaros que avoaçavam e trinavam a onomatopeia Chi-li...Chi-li... Era assim que as populações nativas denominavam
o rio e o vale do Aconcágua. As terras eram chamadas Chili mapu, e o idioma falado era o Chili dugu (a língua de
Chile). No ano de 1535, o espanhol Almagro del Cuzco,
durante seis meses, com centenas de infantes e índios, desceu ao Sul da
Bolívia, tendo por guia Paullo Túpac. A Puna
de Atacama, o frio perverso das montanhas, os dizimou e a expedição retornou.
Logo no primeiro dia, observei nas
ruas e nas calçadas o burburinho de sua gente diferentemente composta e
estratificada. Compreendi que Santiago estivera sempre prensada no quadrado
entre corredores de cerros e
montanhas que lhe ajustam as cordilheiras, uma delas a mais suntuosa. Do alto
do seu cume desliza a caudal de água gélida que forma o Rio Mapucho, um canal vaginal que irriga a partir de seu ventre, com
a força intermitente de sua correnteza, aparentemente inútil, garantia de vida
de sua gente, descendo sempre impetuoso do Leste em direção ao Sul.
No Norte, um morro destacado do alto
de sua imponência. Abrigou há centenas de anos o vulcão Polmo. Hoje, sonolento,
abriga um bairro sofisticado, ao derredor do qual suas escarpas arborizadas logo
acima ressaltam a geleira. São mansões em quarteirões de riscado rigoroso, com a
tranquilidade de seus campos de golfe. Lá residem as famílias responsáveis pela
exploração das minas de cobre, ao Norte do país, terras áridas e tórridas do
deserto do Atacama. Conservam a herança cultural de irlandeses e ingleses, que se
incorporaram à história mais recente da região. De outra parte, o extrato
social dos que, por distinta personalidade, não se contaminam com os demais mortais:
os descendentes indígenas. Nessa parte, a toponímia da cidade homenageia as
batalhas e os heróis mortos, suas façanhas, dando-lhes nomes a ruas, distritos
administrativos, estações do metrô, sítios e símbolos. Reverenciam a bravura de
seus antepassados, que repetem de cor, guerreiros indômitos a quem devotam
honrarias em praças e parques ecológicos.
Da miscigenação com espanhóis, ingleses,
gregos e italianos, os chilenos incorporam deles um misto de cultura de
refinamento que sobrevive, hábitos como o da pontualidade, o consumo do chá, o tráfego
respeitoso ao pedestre; os jardins ao longo das ruas; a indumentária e a
impetuosidade dos guerreiros indígenas, ao tempo da resistência aos invasores
espanhóis; a persistência ao frio inclemente, que dizimou os colonizadores e
seus cavalos durante a noite geladas; ou a habilidade das mulheres auracanas de
produzir com a lã, nos teares rústicos, as piezas,
mantas dos homens e os cinturones e cintas femininos, em finíssimo tecido e acabamento.
Hoje, rechaçam a presença incômoda dos
vizinhos da cultura quíchua, peruanos e bolivianos, que emigram aos milhares em
busca de melhores condições de vida. Em geral, um extremo de pouca escolaridade
e especialização, facilmente identificados pela baixa compleição física, cabelos
negros, olhos de amêndoa, reservando-lhes as tarefas de lupem urbano. Incorpora-se a discreta colônia dos descendentes de palestinos,
um exército de menor qualificação profissional, não de menor importância no
enduro social.
Ao caminhar pelas ruas de Santiago,
trouxe-me a lembrança a sua história mais recente, a tragédia política transmitida
pela emissora de Londres, em bom português sintonizado para o Brasil: a
deposição e morte de Salvador Allende, o presidente. Caminhei com as minhas
lembranças pelas calçadas da Praça que defronta o Palácio La Moneda; assisti ao hoje ritual da troca de sua gendarmaria, o
poder militar que abafou os respiros democráticos do país. Ao lado do palácio, a
fé e os mistérios da suntuosa catedral do Chile, os seus afrescos aplicados
no teto da nave, os corredores sacros, as pias de água bendita, os confessionários outrora sede de recolhimento dos homens de preto, confidentes e resignatários
de pecados confessos ou não, o som meditabundo que ecoa desde o piso secular ao
vagão celestial dos seus mistérios.
A vida econômica do Chile gira em
torno da rentabilidade econômica da exploração do minério, em especial, a de
cobre, da produção pesqueira e da agro exportação de frutas do Sul. Destaca-se
aí a cultura vinícola. Por fim, pela prestação de serviços, o turismo ocupa o posto
destacado em lazer e negócio. Se na capital chilena a aptidão industrial passa
longe, apesar do alto índice de poluição ambiental, o fluxo portuário de
Valparaíso, ao Leste, comporta o vulto do empreendedorismo econômico, dirigido ao
enclave econômico do Oceano Pacífico. Neste porto, no universo de ruas
acidentadas e de casitas irmãs
dependuradas na cordilheira do Bairro de La
Sebastiana, Pablo Neruda organizou uma de suas moradas: Siento el cansancio de Santiago. Quiero
hallar em Valparaíso uma casita para vivir y escribir tranquilo...No puede
estar ni muy arriba ni muy abajo. Debe ser solitária, pero no incómoda...
As escolas de Santiago agasalham seus
jovens. A Universidade de Chile e outras
abrigam 95% aos que delas têm necessidade. São instituições públicas ou
privadas. Ao aluno, ou a seus familiares, compete pactuar a reparação futura dos
custos do período de aprendizado. Em Santiago o índice de analfabetos é ínfimo.
Certa noite, deitado, senti o abalo que
me pareceu eterno enquanto durou. O sismo contaminou minhas referências: seja o que Deus quiser... Desprevenidos
descemos todos à rua, à espera da normalidade. Santiago permaneceu
impassível, pois não ocorrera um terremoto, apenas um aviso vindo das
profundezas da cordilheira.
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