14/09/2014

GG


 S A N T I A G O   D O   C H I L E
Por: GILENO GUANABARA, sócio efetivo do IHGRN

            Visitei Santiago. Na amanhecença do dia, através da imagem franqueada pelas asas do avião, vê-se a cordilheira majestosa em forma de geleira inconsútil e branca, precipícios eternizados no tempo, um véu de noiva alinhado até os pés, ou aclives íngremes dirigidos para o céu. A cidade saíra da noite e despertava do frio invernal que faz cobrir as ruas e jardins com o lençol de folhas secas e cinzas.

Revisitei o significado do nome Chili, que lhe deram os aborígenes. Ao ser repassado aos espanhóis, estes trocaram o “i” pelo “e”, passando-se a Chile. Diz-se que a origem, desde o antigo idioma quíchua, está na palavra Tchili, que significa o frio ou a neve. Outra explicação é a de bandos de pássaros que avoaçavam e trinavam a onomatopeia Chi-li...Chi-li... Era assim que as populações nativas denominavam o rio e o vale do Aconcágua. As terras eram chamadas Chili mapu, e o idioma falado era o Chili dugu (a língua de Chile).  No ano de 1535, o espanhol Almagro del Cuzco, durante seis meses, com centenas de infantes e índios, desceu ao Sul da Bolívia, tendo por guia Paullo Túpac. A Puna de Atacama, o frio perverso das montanhas, os dizimou e a expedição retornou.

Logo no primeiro dia, observei nas ruas e nas calçadas o burburinho de sua gente diferentemente composta e estratificada. Compreendi que Santiago estivera sempre prensada no quadrado entre corredores de cerros e montanhas que lhe ajustam as cordilheiras, uma delas a mais suntuosa. Do alto do seu cume desliza a caudal de água gélida que forma o Rio Mapucho, um canal vaginal que irriga a partir de seu ventre, com a força intermitente de sua correnteza, aparentemente inútil, garantia de vida de sua gente, descendo sempre impetuoso do Leste em direção ao Sul.

No Norte, um morro destacado do alto de sua imponência. Abrigou há centenas de anos o vulcão Polmo. Hoje, sonolento, abriga um bairro sofisticado, ao derredor do qual suas escarpas arborizadas logo acima ressaltam a geleira. São mansões em quarteirões de riscado rigoroso, com a tranquilidade de seus campos de golfe. Lá residem as famílias responsáveis pela exploração das minas de cobre, ao Norte do país, terras áridas e tórridas do deserto do Atacama. Conservam a herança cultural de irlandeses e ingleses, que se incorporaram à história mais recente da região. De outra parte, o extrato social dos que, por distinta personalidade, não se contaminam com os demais mortais: os descendentes indígenas. Nessa parte, a toponímia da cidade homenageia as batalhas e os heróis mortos, suas façanhas, dando-lhes nomes a ruas, distritos administrativos, estações do metrô, sítios e símbolos. Reverenciam a bravura de seus antepassados, que repetem de cor, guerreiros indômitos a quem devotam honrarias em praças e parques ecológicos.

Da miscigenação com espanhóis, ingleses, gregos e italianos, os chilenos incorporam deles um misto de cultura de refinamento que sobrevive, hábitos como o da pontualidade, o consumo do chá, o tráfego respeitoso ao pedestre; os jardins ao longo das ruas; a indumentária e a impetuosidade dos guerreiros indígenas, ao tempo da resistência aos invasores espanhóis; a persistência ao frio inclemente, que dizimou os colonizadores e seus cavalos durante a noite geladas; ou a habilidade das mulheres auracanas de produzir com a lã, nos teares rústicos, as piezas, mantas dos homens e os cinturones e cintas femininos, em finíssimo tecido e acabamento.

Hoje, rechaçam a presença incômoda dos vizinhos da cultura quíchua, peruanos e bolivianos, que emigram aos milhares em busca de melhores condições de vida. Em geral, um extremo de pouca escolaridade e especialização, facilmente identificados pela baixa compleição física, cabelos negros, olhos de amêndoa, reservando-lhes as tarefas de lupem urbano. Incorpora-se a discreta colônia dos descendentes de palestinos, um exército de menor qualificação profissional, não de menor importância no enduro social.

Ao caminhar pelas ruas de Santiago, trouxe-me a lembrança a sua história mais recente, a tragédia política transmitida pela emissora de Londres, em bom português sintonizado para o Brasil: a deposição e morte de Salvador Allende, o presidente. Caminhei com as minhas lembranças pelas calçadas da Praça que defronta o Palácio La Moneda; assisti ao hoje ritual da troca de sua gendarmaria, o poder militar que abafou os respiros democráticos do país. Ao lado do palácio, a fé e os mistérios da suntuosa catedral do Chile, os seus afrescos aplicados no teto da nave, os corredores sacros, as pias de água bendita, os confessionários outrora sede de recolhimento dos homens de preto, confidentes e resignatários de pecados confessos ou não, o som meditabundo que ecoa desde o piso secular ao vagão celestial dos seus mistérios.

A vida econômica do Chile gira em torno da rentabilidade econômica da exploração do minério, em especial, a de cobre, da produção pesqueira e da agro exportação de frutas do Sul. Destaca-se aí a cultura vinícola. Por fim, pela prestação de serviços, o turismo ocupa o posto destacado em lazer e negócio. Se na capital chilena a aptidão industrial passa longe, apesar do alto índice de poluição ambiental, o fluxo portuário de Valparaíso, ao Leste, comporta o vulto do empreendedorismo econômico, dirigido ao enclave econômico do Oceano Pacífico. Neste porto, no universo de ruas acidentadas e de casitas irmãs dependuradas na cordilheira do Bairro de La Sebastiana, Pablo Neruda organizou uma de suas moradas: Siento el cansancio de Santiago. Quiero hallar em Valparaíso uma casita para vivir y escribir tranquilo...No puede estar ni muy arriba ni muy abajo. Debe ser solitária, pero no incómoda...

As escolas de Santiago agasalham seus jovens. A Universidade de Chile e outras abrigam 95% aos que delas têm necessidade. São instituições públicas ou privadas. Ao aluno, ou a seus familiares, compete pactuar a reparação futura dos custos do período de aprendizado. Em Santiago o índice de analfabetos é ínfimo.

Certa noite, deitado, senti o abalo que me pareceu eterno enquanto durou. O sismo contaminou minhas referências: seja o que Deus quiser... Desprevenidos descemos todos à rua, à espera da normalidade. Santiago permaneceu impassível, pois não ocorrera um terremoto, apenas um aviso vindo das profundezas da cordilheira.

 

 

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