LÚCIA HELENA(*)
Embriagado de tanto azul azul e inebriado de iluminado verde, a se envolver no calor da poesia de Carlos Pena Filho, o viandante faz a sua peregrinação pelo vale verde, por suas querências, tantas que até já perdeu a conta. Não sei bem desde que horas ele saiu de casa em busca desse mundo "encantado" , desse porvir de estranha felicidade, quando, não mais menino, sai em busca se um mundo que ele teima em aclamar e enaltecer, redescobrindo os próprios passos e banhando-se nas águas enfeitiçadas dos olheiros encantados. Seria talvez a "Manhã da Criação" (de Nilo Pereira), em que se viu acordado e despertando todo o vale, para ouvir o silêncio da hora e o despertar dos ruídos do cotidiano.
E ele faz essa viagem de regresso, tomando em suas mãos as aquarelas de Dorian Gray, para rever o tempo que passou como se fosse uma tela mágica, a mover-se e dilatar- se da alma e dos olhos, sobre aquele cenário iluminado do seu olhar de infância. Talvez Van Gogh tenha embebido os olhos naquele paraíso distante e sua íris de artista tenha se infiltrado nos lumes das águas do olheiros românticos a dizerem de esperanças, a conhecerem aquele claustro - a Matriz do vale verde. E lá estava ela, imponente e gorda, soberana e esguia, a bendizer seus filhos! Lá estava a Senhora da Conceição do Rio dos Homens Lembrou-se de muitas coisas, de muita gente, de música e alegrias. Lembrou-se de um vale brejeiro e dos cantadores que executavam seus "hinos" e juntavam gente para ouvir a lira romântica de cada hora, quando o dobre dos sinos anunciava o anoitecer e o vale ganhava sombras dos banquetes e mordomias dos céus, carregados de luz e negror! No dia seguinte as nuvens dançavam de azul e branco, como o manto da Virgem Santa. Durante a sua peregrinação mágica o homem reviu a cidadezinha lobatiana, andou até onde o cansaço não lhe exigiu repouso. Andou por aquela estrada com todo o seu fascínio. Observou os que passavam diante dos seus olhos, revendo a história de cada um, história que ele decantava com rara honra, sem esquecer, absolutamente, de nada e de ninguém. Nomes incansáveis brotavam do seu recordar íntimo, como se diante dele houvessem imensos cartazes com a história de cada um. Mero engano, todo o elenco e enredo dessa incrível memória estavam no script de sua alma, subindo e descendo ladeiras e de onde viam, como alegorias desbotadas, objetos, guloseimas e outras coisas de outrora, incluindo os saborosos confeitos cuquitas, de forma arredondada, que se comprava a tostão e eram a sensação. O menino não esquecia nada, nenhum detalhe, e como bandeiras hasteadas, nomes apareciam na moldura de luz do seu olhar: a figura de Zé Gago com o saxofone, que se não fazia chorar, enriquecia os momentos! Nomes e nomes como: Ilha Bela, Diamante, Capela, Santa Águeda, Oiteiro, Guaporé, nascença! Figuras marcantes como Manoel Pereira, Herbert Dantas, "Major" Onofre Soares, Abel Antunes Pereira, Ruy Antunes Pereira, Jorge Câmara, Lourdinha de Darrow, Cleto Brandão e seu famoso "Café", e outros, muitos outros. Lembrava a feira de cada sábado, na rua principal do vale, variedade de legumes, hortaliças e frutas sem agrotóxicos, além de objetos os mais diversos, e de onde se via algum cortejo fúnebre e, sempre, por alguma razão, a banda-de-música e os folguedos. E se era época de política e por uma coincidência, a boa presença de Frei Damião, ai se garantia distribuição de santinhos e as bençãos do querido beato - um acontecimento abençoado. Recorda, o nosso viandante, sobre as folias momescas de cada ano, quando o vale se enchia de festa e o cordão na frevança, fazia a alegria e na quarta-feira de cinzas, o bom banho de mar, para curar a ressaca! Pedro Simões Neto, de memória infalível, traz esse desfile diante dos nossos olhos, traz o povo cearamirinense ou os que lá viveram, e, diga-se, sem esquecer ninguém! Nesse particular, um capítulo muito enobrece minhas lembranças, quando ele descreve a sua participação na primeira festa de São João, na casa dos meus pais e o revela com um carinho singular, ele, menino, impactado com o encanto daqueles momentos, até então, desconhecidos. Sobre as páginas escritas por meu amigo Pedro Simões, diria, como Antoine de Saint- Exupéry: "...Mais coisas sobre nós nos ensina a Terra, que todos os livros, porque oferece resistência". E o nosso amigo tem sido mestre na arte de lembrar, para tal reúne os cabedais da inteligência e da fidelidade do coração. Depois de vovó Madalena, tia Etelvina, tio Juvenal, Nilo Pereira, Edgar Barbosa, papai e os tios: Vicente e Ruy, o primo Roberto Varela, o amigo Franklin Jorge e o fotógrafo e poeta Gibson Machado, julguei que ninguém, jamais, em Ceará-Mirim, saberia decantar o vale, com os lumes de suas paisagens, sua gente, sua história e o seu encanto. Estava enganada, o vale verde tem o grande memorialista Pedro Simões Neto, com essencial talento, com exuberante sensibilidade e a rica mensagem de amor à memória ancestral do vale. FUNDAMENTOS DA CRIAÇÃO DA FREGUESIA DE NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO DO RIO DOS HOMENS, escrito por Pedro Simões, é uma oração, um momento de fé, a homenagem de quem sabe o quanto merece a arte de bem lembrar! Ei-lo de volta, como menino, cheio de saudade, nesse vôo pela alma dos tempos, na peregrinação mágica, de regresso, guiando-nos pelos caminhos da dor e da saudade.
O (*) Menina de Ceará- Mirim
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