A legitimidade das decisões judiciais (I)
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
Nunca as decisões judiciais no Brasil foram tão contestadas, por
profissionais do direito ou por leigos em geral (nas ruas, nas tais
redes sociais e por aí vai), como estão sendo hoje. Não só as decisões
judiciais; o trabalho do Ministério Público também. E, confesso, em
ambos os casos, algumas vezes, com inteira razão.
Essas
observações nos levam à questão da legitimidade das decisões judiciais,
que, por sua vez, envolve a necessária complementaridade entre o Estado
de Direito e a democracia. É verdade que a democracia é definida como o
governo da maioria, baseado na soberania popular; mas o Estado de
Direito consagra a supremacia da Constituição e das leis do país, o
respeito aos direitos fundamentais e o controle jurisdicional de todo o
poder estatal, para a proteção não só da maioria, mas, também (e
sobretudo), dos direitos das minorias (e mesmo em desfavor daquela, a
maioria). A regra da maioria ou da democracia, portanto, só se legitima
se respeitados, na forma da lei e da Constituição, os direitos de todos,
inclusive os das minorias.
Mas aí que está: nesta nossa
sociedade tão “líquida” – para usar uma palavra da moda, roubada do
sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017) –, onde o
individualismo, a desregulamentação e mesmo a balbúrdia prevalecem, como
fazemos para dar maior legitimidade às decisões do nosso Poder
Judiciário?
Além da correção em si das suas proposições – o que
seria o mais importante, por óbvio –, existem algumas providências
mínimas, de ordem técnica e procedimental, que ajudam a dar uma
legitimidade sempre maior às decisões judiciais.
Um bom
recrutamento dos juízes e a composição dos tribunais, por exemplo, são
pontos importantíssimos. A nossa Constituição Federal, em seu art. 93,
inciso I, estabelece: “ingresso na carreira, cujo cargo inicial será o
de juiz substituto, mediante concurso público de provas e títulos, com a
participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as fases,
exigindo-se do bacharel em direito, no mínimo, três anos de atividade
jurídica e obedecendo-se, nas nomeações, à ordem de classificação”. Não
vejo maior discussão quanto a essa diretriz. Outros países adotam outros
modelos, é verdade. Os Estados Unidos da América, por exemplo, em
muitos casos, adotam o modelo de eleição; o Reino Unido, um tipo
especial de cooptação entre os advogados mais prestigiados. Mas acho que
o Brasil, nesse ponto, adotou o modelo que melhor atende à sua cultura.
Eleições ou simples cooptação no Brasil, definitivamente, não dariam
certo.
O debate maior certamente se dá quanto à composição dos
tribunais e, em especial, de nossa Suprema Corte. Muito se fala. Muita
baboseira, inclusive. Até porque quase todos agora viraram grandes
especialistas em ciência política (li, não sei onde, que tem novo vírus
provocando essa “doença”). Mas podem ter certeza: o modelo brasileiro
para o STF – “Art. 101. O Supremo Tribunal Federal compõe-se de onze
Ministros, escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos
de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e
reputação ilibada. Parágrafo único. Os Ministros do Supremo Tribunal
Federal serão nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a
escolha pela maioria absoluta do Senado Federal.” – não tem nada de
errado. Nada. É assim ou parecido em qualquer parte do mundo para as
cortes constitucionais ou tribunais supremos que fazem as vezes destas.
Nos EUA (de onde nos inspiramos), na Áustria (berço da teoria de Kelsen
das cortes constitucionais), em Portugal (de quem fomos colônia), na
França, na Alemanha, na Espanha e por aí vai. No meu artigo “A escolha
do ministro” aqui já disse: o problema não está no modelo do processo de
indicação, até porque, pelo mundo afora, ainda não se descobriu algo
melhor. Não vai ser a esta altura do campeonato que vamos inventar a
roda. Claro que um ajuste aqui, outro acolá, pode ser discutido. Mas a
solução para que tenhamos sempre bons ministros do STF está na correção e
transparência do processo de escolha, com a participação realmente
efetiva do Senado Federal e o acompanhamento por parte da sociedade.
Aliás, a escolha desses ministros com a participação popular indireta –
do Presidente da República e do Senado, que são eleitos –, para além de
corolário da teoria dos “checks and balances” (“freios e contrapesos”),
é, sim, fator de legitimação das decisões do Supremo Tribunal Federal.
Doutra banda, a imparcialidade do juiz e uma distribuição processual
impessoal e transparente, para se evitar qualquer tipo de suspeição em
relação ao magistrado julgador, são também fatores determinantes para
garantir a legitimidade das decisões judiciais. A nossa Constituição
Federal e as leis do país tentam nos garantir isso. O art. 95 da CF, com
seu parágrafo único e seus vários incisos, está lá discriminando as
várias garantias e vedações do juízes. O Código de Processo Civil, nos
seus artigos 142 a 148, trata da matéria dos impedimentos e suspeições. E
por aí vai.
E, convenhamos, o juiz ganha prestígio com o seu
trabalho. Falo do bom prestígio, do renome, como magistrado probo,
preparado e diligente. Seja na Inglaterra, seja no Brasil, em princípio,
o prestígio dos juízes é algo que formalmente não podemos medir, já
que, em teoria, todos os juízes são igualmente detentores de uma parcela
do poder do Estado (e, se juízes de mesma hierarquia, isso fica ainda
mais claro). Mas, na prática, as decisões de alguns juízes são
consideradas com mais respeito – são consideradas mais “legítimas” – que
às de outros. É fato. No Brasil de hoje, infelizmente num grau
preocupante.
Bom, não é só isso. O grau de convencimento –
leia-se, aqui, de legitimidade – de uma decisão judicial depende, podem
ter certeza, de muitos outros fatores: a excelência da motivação em si,
sua acessibilidade, a aceitação pelos demais poderes, o respeito a
determinados valores (estabilidade, previsibilidade, celeridade,
igualdade), sua expressa fundamentação na Constituição e nas leis do
país, desaguando tudo isso na própria aceitação popular.
Mas disso tudo nós só trataremos nas nossas próximas conversas. Com muito cuidado e legitimamente.
Marcelo Alves Dias de SouzaProcurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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