DOIS PERFÍS
Valério Mesquita*
Sentia-me
inadimplente com a memória de Emídio Pereira Filho, falecido com a idade
patriarcal de quase noventa e cinco anos. Emidinho, como o chamava D. Nazaré
Madruga Pereira, sua esposa e anjo bom, teve por Macaíba uma fidelidade
sacerdotal.
Não
foi herói nem poeta, mas a maior revelação de integração com o cotidiano da
cidade. Fiz a travessia da infância, da adolescência e da madureza de minha vida,
convivendo com ele. Seu Emídio participou de todos os instantes da política, da
cultura, do esporte de Macaíba, onde sempre era ouvido.
Nunca
foi candidato a nada, embora D. Nazaré tivesse sido vereadora e postulado a
vice-prefeitura, em certa eleição. Foi uma educadora modelar de várias gerações
e diretora do Grupo Escolar Auta de Souza.
Das
flores mais perfeitas, D. Nazaré foi beleza e dor. Quando chegou a sua noite
estava em sua casa e assisti os seus últimos e angustiantes momentos. Mas, a
beleza dos sentimentos não morrem pois Deus, no dizer do poeta, recolhe as
flores que o tempo desfolha. Ela se antecipou em alguns anos a seu Emídio. De
todos os golpes que ele já sofrera, o da ausência da companheira foi o mais
trágico.
Seu
Emídio era um taciturno. Um autodidata. Gostava de escrever. Memorialista,
deixou vários escritos biográficos sobre Auta de Souza, Augusto Severo, além de
escritores maiores da nossa literatura, sobre os quais discorria em palestras
radiofônicas, em escolas e clubes de serviço.
Além
de comerciante de algodão, castanha, foi proprietário de imóveis. Jamais ousou
as tentaculares investidas par o alto. Macaíba lhe bastava e soube, no tédio da
rotina da província, ser feliz e calmo. Ao longo de sua vida teve firme amizade
com o meu pai. Testemunhei muitas de suas conversas com Alfredo Mesquita.
Poucos foram as campanhas políticas que tiveram separados. Hoje, relembro o seu
vulto, a sua trajetória e me dou conta que desapareceu em Deus, com pouco
sofrimento e com a ternura dadivosa de uma idade biológica, tão difícil nos
dias de hoje.
Um
homem dentro de um século.
D.
Iná Cordeiro de Andrade era filha de Antônio Andrade de Lima, ex-prefeito e
líder político nos anos vinte e trinta. Com mais de oitenta anos de idade, ao
falecer ela conservava extraordinária lucidez. Falava de forma pausada, serena
e agradável.
Com
ela, anos passados, mergulhei nos distantes anos para recuperar fatos inéditos
e ressuscitar pessoas a fim de recompor não uma paisagem morta ou um universo
desaparecido, mas o sentido e o brilho de uma época política na qual a cidade
de Macaíba viveu o fausto da visita de dois presidentes da república.
Contou
D. Iná que o primeiro foi Washington Luís, em 1933, dois anos antes de ser
deposto pela revolução de 1935. O prefeito de Macaíba era Almir Freire. A
política situacionista era dominada pela família do coronel Manoel Mauricio
Freire. Na oposição militavam os Mesquita e os Andrade.
Em
1940, foi a vez de Getúlio Vargas, em pleno regime do Estado Novo. Governava a
cidade o prefeito Antônio Andrade de Lima, major Andrade, aliado do líder
político Alfredo Mesquita Filho.
Com
Getúlio vieram o então general de divisão Hildebrando Góis Monteiro, o coronel
Luiz Tavares Guerreiro, entre outros. Nessa visita foi solicitada ao presidente
a construção da primeira ponte sobre o rio Jundiaí. Getúlio foi recepcionado
nos salões da antiga prefeitura, prédio construído em 1933 e que hoje abriga a
Secretaria de finanças do município. A chegada do presidente, lembra D. Iná, se
fez um corredor constituído por moças da sociedade local que saudaram a
comitiva com flores e vivas, entre as quais pontificava a senhorinha Valda
Dantas, filha do então juiz de direito Virgílio Pacheco Dantas.
As
visitas de ambos os presidentes, se bem que, tenha alvoroçado e alimentado o
jogo do poder das lideranças locais, acima de tudo, conferiu à Macaíba, um
inegável grau de importância política, econômica, social e cultural perante o
Rio Grande do Norte, já engrandecida no passado recente pelos feitos dos seus
filhos ilustres: Augusto Severo, Alberto Maranhão, Tavares de Lyra, Henrique
Castriciano e Auta de Souza.
Saudades
de D. Iná, filha dos donatários do Solar do Caxangá, que o médico Olímpio
Maciel não deixou ruir, transformando-o no Instituto Pró-Memória de Macaíba.
(*) Escritor.
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